A BuscaLegis ® .ccj.ufsc.br Anatomia de uma fraude à Constituição Adriano Benayon* Pedro Antônio Dourado de Rezende** Resumo: Este artigo registra uma investigação, e sua publicação visa a dois objetivos: o de preencher uma lacuna na história do Brasil, e o de evidenciar a importância da retenção de documentos de valor histórico ou jurídico em registro material, de forma a permitir, a qualquer um, formar juízo sobre sua autenticidade por meios próprios. A investigação revela como foi inserido na Constituição Federal, de forma ilegal e solerte, dispositivo que acarreta danos cada vez mais pesados à economia e à sociedade brasileiras. Sumário: I. Introdução; A ilegalidade; Elementos tipificadores. II. Serviço da Dívida; Conseqüências Socioeconômicas; Implicações Jurídicas. III. Antecedentes e Conseqüentes; Na magistratura; No poder; Bibliografia. I - Introdução Devido ao lapso de quase vinte anos desde os fatos, esta narrativa começa revendo alguns aspectos importantes do processo constituinte. A Assembléia Nacional Constituinte (ANC), eleita no Brasil em 1987, começou seus trabalhos aprovando, por meio da sua Resolução n° 2, seu Regimento Interno. Nesse diploma legal, publicado nos registros oficiais da ANC -- o Diário da Assembléia Nacional Constituinte (DANC) -- em 25 de março de 1987, foram definidas as regras para condução dos debates e elaboração, votação e promulgação do texto da Constituição Federal de 1988. O Regimento Interno da Constituinte estabelece três etapas para a elaboração do novo texto constitucional. • Na primeira etapa, seriam votados, em primeiro turno, o Projeto de lei constitucional, as emendas e os destaques propostos por parlamentares constituintes. O resultado dessa etapa foi denominado, em documentos do DANC, Projeto (A). • Na segunda etapa, o Projeto (A), aprovado em primeiro turno, seria submetido a um processo de sistematização, antes da votação em segundo B turno. A sistematização destinava-se a corrigir erros e inconsistências na indexação e nas referências internas dos dispositivos no Projeto (A). • Na terceira etapa, o resultado da sistematização, a saber, o projeto (B), denominado "vencido" no artigo 28, seria encaminhado a votação em segundo turno. No segundo turno só poderiam ser apresentadas e votadas alterações no vencido através de emendas supressivas ou corretivas, estas relativas a omissões, erros ou contradições, inclusive os de redação, e no prazo de 15 dias (art 29, em destaque no fac-símile do Quadro 1 abaixo, conectado à página correspondente do DANC [ref. 1] no portal Internet da Câmara dos Deputados). Quadro 1 - Art. 28 e 29 do Regimento Interno da ANC Da linguagem do artigo 29, surge uma questão que cumpre esclarecer: Que tipo de omissões ou erros poderia, excepcionalmente, ser sanado por emendas em segundo turno? Da assertiva grifada em vermelho no Quadro 1, a que veda novas emendas excetuando as supressivas e as sanativas, pode-se concluir que as omissões e erros sanáveis em segundo turno são os de natureza que não de mérito. Com efeito, o próprio formulário para submissão de emendas de segundo turno assim o esclarece, conforme referências aqui citadas [ref. 6]. Ademais, essa conclusão é confirmada em despachos do Presidente da ANC, negando acolhimento a propostas de Emenda que, apesar de declaradas sanativas pelo autor, continham inovação de mérito, conforme exemplifica o despacho ao pedido n° 454 [A.1.3]. A ilegalidade Esclarecida essa questão regimental, vê-se que ocorreu alteração de mérito no artigo que trata das diretrizes orçamentárias, o de número 195 no Projeto (A) – mais precisamente, nos seus § 3° e 4°, dispositivos que haviam sido preservados, com o restante do referido artigo, na etapa de sistematização. O locus da irregularidade está destacado no Quadro 2, abaixo, em amarelo sobre fac-símile da página correspondente do DANC [ref. 2] (A imagem no Quadro 2 conecta-se à C versão eletrônica da página correspondente publicada no portal Internet da Câmara dos Deputados). Quadro 2 – Artigo 195 aprovado em 1º turno na ANC Na etapa de sistematização, afora o fato de ter sido renumerado para 172, esse artigo passou à votação em segundo turno sem qualquer alteração, em 27 de agosto de 1988, acompanhado de propostas de Emenda que lhes diziam respeito, mostradas no Anexo 2. As partes do artigo que iriam sofrer supressão ou correção nos termos regimentais estão destacadas, no Quadro 2, em grifo verde. Mas naquela votação houve também alterações de mérito, como mostra o fac-símile na imagem do Quadro 3. Ao cumprir a Ordem do Dia, o presidente da ANC anunciou a "fusão" das propostas de Emenda ao artigo 172, com outras relativas aos arts. 171 e 173, pondo em votação um único texto (para os três D artigos), que supostamente as reunia para votação simultânea, como indicado na primeira coluna do quadro abaixo. A questão, não respondida pelo Relator, é se as reunia mesmo, e se as reunia conforme o disposto na Resolução n° 3 (A.1.1) E Quadro 3 - Proposta regimental para os art. 171 e 173, ilegal para o 172 O Quadro 3 aponta dispositivos ilegalmente adicionados à transcrição da redação aprovada no 1º Turno, da qual eles não constavam. A transcrição tinha que ser fiel ao texto aprovado no 1º Turno, pois as propostas de Emenda acolhidas para os três artigos, citadas ou não para aquela votação, eram supressivas ou corretivas; e a única corretiva, a de n° 1785, propunha deslocar uma frase de um inciso para o seu caput (A.3). Os dispositivos adicionados, destacados na parte superior do Quadro 3 em vermelho, surgiram somente no Requerimento apresentado no dia de votação, sob o pretexto de fundir as propostas citadas. F Quadro 4- Resumo da votação que (r)emendou o artigo 172 em 2° turno O quadro 4 mostra: • O resultado da votação que inseriu ilegalmente, no texto final da Constituição de 1988, os dispositivos destacados no Quadro 3; • O número dessa votação (914); • A data em que ocorreu a votação n° 914, i.e., na véspera da data de sua publicação no DANC (intervenção do Sr. Denisar Arneiro). A imagem superior do Quadro 3 conecta-se à página correspondente do DANC ([ref. 5], p. 13468), e a imagem inferior, ao Anexo 3, que lista as propostas de Emenda relativas aos art. 172, 173 e 174, encaminhadas pelo Relator da ANC para votação em 2° turno. A imagem esquerda do Quadro 4 conecta-se à página correspondente do DANC ([ref. 5], pp. 13469), e a imagem direita, idem ([ref. 5], pp. 13470). Elementos tipificadores G Da ilegalidade mostrada no Quadro 3, surgem os seguintes elementos tipificadores: 1. No Requerimento de fusão levado à votação n° 914 em 27.8.88, foram adicionados ao § 3° do art. 172 do Projeto (B) dispositivos • inexistentes no texto constitucional submetido a votação em 2° turno (A.2), • inexistentes em qualquer proposta de Emenda citada no tal Requerimento de fusão (A.3), • inexistentes em qualquer proposta de Emenda encaminhada pelo Relator da ANC a votação em 2° turno (A.4), admissíveis numa tal fusão, violando o art. 29 da Resolução n° 2 e o § 2° do art. 3° da Resolução n° 3 da ANC, por conter inovação de mérito (A.1); 2. No Requerimento de fusão, votado em plenário após leitura pelo presidente da ANC... • falta a assinatura, bem como qualquer outra manifestação, do autor da única proposta de Emenda (A.3.10), citada para fusão, ao § 3° do art. 172 (A.5.3), onde se adicionou dispositivos ilegalmente propostos, • faltam as rubricas dos autores das propostas de Emenda citadas para fusão, na página (folha 2) que contém os dispositivos ilegalmente propostos (A.5.2), • faltam, ademais, rubricas de 12 dos 14 líderes partidários que teriam assinado na última folha o tal Requerimento, as quais pudessem comprovar a autenticidade do que foi lido e votado em plenário, à guisa de conteúdo do dito Requerimento (A.5.1 e 5.2), violando o § 2° do art. 3° da Resolução n° 3, pelo fato desse Requerimento não ter sido assinado por qualquer constituinte que houvera proposto emenda ao artigo objeto de adições ilegais (§ 3° do art. 172 do Projeto B); 3. Nos registros da referida votação, lavrados pela Secretaria Geral da Mesa da ANC e arquivados no Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados... • não consta, no Fundo Arquivístico, que a votação desse Requerimento, em 27 de agosto, tenha incluído qualquer dispositivo do artigo objeto de adições ilegais (art. 172, projeto B), nem o número da votação (A.5.4), • não consta, na ata da votação n° 914, que o Relator se tenha manifestado quanto ao encaminhamento desse Requerimento (quadro 3), nem a data da sua votação em plenário, • não consta, seja no Fundo Arquivístico ou em ata, que o conteúdo votado tenha sido divulgado antes da leitura para votação, realizada de súbito (A.8.5) e num sábado (quadro 4), e da qual esteve ausente o único autor (João Alves) de proposta de Emenda (A.4.7) ao artigo objeto de adições ilegais, quem tampouco havia autorizado fusão de sua proposta, H caracterizando a forma solerte como foi encaminhada, conduzida e despistada a referida votação (n° 914, de 27.8.88); 4. Em declarações espontâneas, por parte de quem teria rubricado a página do Requerimento (folha 2) contendo dispositivos ilegalmente adicionados (ao § 3° do art. 172 - Projeto B) à guisa de fusão de propostas de Emenda supressivas ou sanativas... • Ao jornal Correio Braziliense, admitindo sua participação em atos dessa natureza (A.6.1), • Ao portal Folha on-line, recusando-se a esclarecer quais dispositivos constitucionais teriam sido alvo de tais atos (A.6.2), • À agência Estado, alegando transparência de tais atos e anuência dos pares (A.6.3), em flagrante contradição com elementos aqui já arrolados e por arrolar (Anexos A.7, A.8), mormente no que tange à anuência dos pares, em violação, agravada por antecedentes (A.9), do requisito de idoneidade necessário ao cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal, exercido por Nelson Jobim quando de sua confissão pública. II - Serviço da Dívida Para compreender a gravidade das conseqüências da adição ilegal de dispositivos constitucionais acima descrita, há que avaliar o significado do serviço da dívida no contexto da disputa por recursos orçamentários. O dispositivo ilegal excetua o serviço da dívida das restrições ao remanejamento desses recursos, mediante a adição de texto ao inciso II do atual artigo 166 da Constituição de 1988 (alínea b). A questão das despesas com juros e amortizações da dívida pública estava no centro das preocupações que suscitaram a própria convocação da Assembléia Nacional Constituinte, em 1986. Recordamos, tomando como referência a edição de 22.01.86 da revista Veja [ref. 9], o contexto político então presente: Em setembro de 1982, num gesto espetacular, o México declara moratória em plena reunião do Fundo Monetário Internacional (FMI) em Toronto. Traumatizados, os banqueiros fecham as torneiras dos empréstimos aos países endividados e, pego em cheio, o Brasil quebra. Em novembro de 1982, o ministro do Planejamento, Delfim Netto, começa a arquitetar uma operação de socorro com o FMI. Sem recursos internacionais, o Brasil já não pagava os juros de sua dívida externa. Nada é revelado. O país acorda para a entrada do FMI e as visitas dos seus fiscais após as eleições [estaduais] de Novembro. I Em dezembro, no Plaza Hotel, em Nova Iorque, o presidente do Banco Central, Carlos Langoni, acerta com os banqueiros os famosos ´4 projetos´, entre eles a prorrogação do pagamento dos 4 bilhões de dólares que o Brasil devia saldar ao longo de 1983 e um empréstimo jumbo de US$ 4 bilhões. Em janeiro de 1983, o governo João Figueiredo despacha para Washington sua primeira ´Carta de Intenções´ para o FMI. Nela se compromete a baixar a inflação, eliminar o déficit público e diminuir o número de empresas estatais, entre uma copiosa lista de promessas. Em fevereiro de 1983, é formulada uma segunda Carta de Intenções, uma vez que as promessas da primeira foram tragadas pela realidade. Á segunda carta seguem-se outras cinco, todas com o mesmo destino. Entre uma e outra, o Brasil mergulhava numa longa recessão de 3 anos. Uma exemplar demonstração do estado de espírito dos credores do País pôde ser colhida numa frase proferida pelo diretor-presidente do FMI, Jaques de Larosière: ´ Se o Brasil não se acertar com o programa do FMI, vai desaparecer pelo ralo´. O Brasil gera, no entanto, superávits comerciais crescentes para pagar os juros -- em 1984 alcança o record histórico de US$ 13.1 bilhões de saldo em seu comércio exterior. Em fevereiro de 1985, "às vésperas da mudança de governo, o presidente do Banco Central, Afonso Pastore, tenta arrancar dos bancos e do FMI uma superprorrogação de 16 anos do pagamento das dívidas do país. Não deu certo. Em março, o ministro da Fazenda do novo governo, Francisco Dorneles, tenta retomar essas negociações e envia um plano de ajuste econômico ao FMI sob intenso sigilo. Em agosto, o plano é devolvido. Em setembro de 1985, o presidente José Sarney investe, na ONU, contra a terapia recessionista do FMI e diz que a economia vai se recuperar à base do crescimento. Em outubro, na reunião do FMI em Seul, na Coréia do Sul, o novo ministro da Economia, Dilson Funaro, reafirma a fala de Sarney. Em Janeiro de 1986, pela primeira vez o Brasil ganha: o presidente do Banco Central, Fernão Bracher, capitaneia em Nova Iorque a renegociação da dívida externa Brasileira -- sem que o governo submeta sua política econômica ao FMI. O ministro do planejamento, João Sayad, afirma: ´Nós temos condições de ser uma ovelha desgarrada´. J Em março de 1986, é lançado o Plano Cruzado. A partir de julho, o País sofre escassez e ágios, pelas distorções no congelamento de preços. Em fevereiro de 1987, dias antes de se instalar a Assembléia Nacional Constituinte, o presidente Sarney declara nova moratória. Em agosto, o então maior Partido político do Brasil, o PMDB, veta acordo com o FMI, fazendo manter suspenso o pagamento dos juros da dívida externa, depois retomado em novembro de 1987. Em janeiro de 1988 o ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega, volta a negociar com o FMI. Em maio ele anuncia um novo acordo, que veio a ser assinado em junho, numa oitava Carta de Intenções pela qual, além de comprometer-se a estimular a privatização do seu patrimônio, o Brasil, pela primeira vez, concede aos bancos o direito de retaliar. Também em junho, ocorre a fundação do PSDB, por parlamentares que se desligam do PMDB, dentre os quais o líder do partido, Mário Covas. Com isso, assume a liderança do PMDB o então vice-líder, deputado em primeiro mandato Nelson Jobim (A.8.6), que futuramente viria a ser ministro e presidente do STF. É ele quem, juntamente com o então líder e atual membro da diretiva nacional do PTB, no auge da frenética maratona de votação de 2° turno (A.8.1 e 8.5), teria rubricado a folha do Requerimento "de fusão" da qual se produziu a adição ilegal destinada a privilegiar as despesas com o serviço da dívida, como mostra o Anexo 5.2. Conseqüências socioeconômicas Essa adição ao Texto Maior criou, de forma ilegal e ilegítima, exceções à norma do inciso II do atual art. 166 que contemplam, além do serviço da dívida (alínea b), também as despesas com pessoal (alínea a) e as transferências constitucionais a Estados e Municípios (alínea c). Porém, ao contrário do serviço da dívida, esses dois tipos de gastos não são depressivos para a economia. Bem ao contrário, destinam-se a atividades indispensáveis ao funcionamento dos governos federal e locais. E por não dependerem de injunções dos mercados financeiros mundiais, como depende o serviço da dívida, as decisões a respeito das transferências locais e das despesas de pessoal podem ser tomadas sem ferir a soberania nacional, consagrada no art. 1º da Constituição. A Tabela 1, a seguir, mostra gastos nos três tipos de despesa privilegiados pelo dispositivo ilegal, bem como as despesas de investimento federal. A base das comparações é 1986, ano em que foi eleita a Assembléia Nacional Constituinte (o ano em que foi instalada, 1987, foi atípico por efeito da moratória). A Tabela 1 coteja o ano base com as médias 1988/1989 e 2003/2004, em valores atualizados a preços de 2004. Tabela 1 ORÇAMENTOS FISCAL 1986 1989-90 1989-90 2003- 2003-04
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