ANA CLAUDIA BALIEIRO LODI A LEITURA COMO ESPAÇO DISCURSIVO DE CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS: OFICINAS COM SURDOS Doutorado Programa de Estudos Pós-Graduados em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem Pontifícia Universidade Católica de São Paulo SÃO PAULO 2004 ANA CLAUDIA BALIEIRO LODI A LEITURA COMO ESPAÇO DISCURSIVO DE CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS: OFICINAS COM SURDOS Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem, sob a orientação da Profª Drª Roxane Helena Rodrigues Rojo. Resumo _________________________ Este estudo, desenvolvido à luz da teoria da enunciação bakhtiniana, teve como objetivo compreender as práticas de leitura utilizadas por um grupo de surdos adultos quando na interação com textos escritos em português, de diferentes gêneros discursivos, a partir de interações discursivas em LIBRAS. Para a realização desta pesquisa, foram desenvolvidas nove oficinas de leitura nas quais participaram o grupo de surdos e a pesquisadora. A análise dos dados evidenciou que o grupo de surdos fez uso, basicamente, de dois tipos de práticas letradas. O primeiro esteve voltado aos aspectos verbais- textuais e enfatizou os itens lexicais. Esta prática de leitura foi compreendida como decorrente da história educacional e clínica a que foram submetidos e que determinou que os sujeitos não diferenciassem a LIBRAS e a língua portuguesa, buscando, dessa forma, parear sinais/palavras. A segunda prática de leitura desenvolvida tomou como base os conhecimentos construídos no decorrer das práticas sociais cotidianas dos sujeitos. Ela permitiu que eles trouxessem suas histórias para dialogar com os textos e com o grupo e foi, sobretudo, sobre ela, que os diferentes sentidos puderam ser construídos durante a leitura. As oficinas de leitura, por possibilitarem que a LIBRAS fosse o locus de construção de sentidos, permitiram o estabelecimento de um processo interacional de ordem discursiva, uma transformação dos lugares sociais assumidos pelos sujeitos surdos e o reconhecimento, pelo menos inicial, pelo grupo dos processos enunciativos próprios desta língua e do português. Pode-se concluir que a presença da LIBRAS no espaço das oficinas foi um fator importante para os processos de leitura desenvolvidos pelos sujeitos surdos, pois, por seu intermédio, foi possível um movimento dos sujeitos em relação à sua constituição como leitores. Desta forma, seu valor educacional mostrou-se inegável, pois ela permitiu que os sujeitos realizassem uma leitura compreensiva e dialógica, frente a uma diversidade genérica e lingüística pouco discutida no caso de surdos. Abstract _________________________ This study, developed under the light of the bakhtinian theory of enunciation, was designed to understand the reading practices used by a group of deaf adults when interacting with Portuguese written texts of different discursive genre, through discursives interactions in LIBRAS. To accomplish this research nine bilingual reading workshops were developed with the involvement of one group of seven deaf people and the researcher. The analysis of the data made evident that the group of deaf basically used two types of literate practices. The first type focused on the textual-verbal aspects, and emphasized the lexical items. This reading practice was understood as an outcome of the clinical and educational history to which they were submitted, and determined that the subjects should not differentiate LIBRAS from Portuguese, aiming, consequently, to make equal the meaning of signs/words of both languages. The second reading practice used as a base the knowledge built during the subjects’ daily social practices. This practice allowed them to bring in their own history to establish a dialogue with the texts and with the group, and was mostly through this practice that the different meanings could be built during the reading process. The reading workshops, by granting LIBRAS to be the locus to build the meanings, allowed to establish a discursive interacting process, a transformation of the social standing assumed by the deaf subjects, and the recognition by the group, at least in the beginning, of the specific enunciation processes of LIBRAS and Portuguese. As a conclusion, one can say that using LIBRAS in the workshop was an aspect of differentiation to the reading processes developed by the deaf subjects. Through its usage, it was possible to perceive in the subjects a transformation in the way they see themselves as readers. Based on these grounds, its educational value proves to be undeniable by the recognition that it has allowed the subjects to accomplish a comprehensive, dialogical and interactive reading when facing a generic and linguistic diversity – as it was in this research – hardly discussed, in the case of deaf people. Sumário _________________________ Introdução 1 1. Linguagem escrita e prestígio social: Uma relação histórica 2 2. Letramentos: Práticas sociais de linguagem 7 3. Leitura e Surdez: O desenvolvimento de oficinas de leitura com um grupo de surdos adultos 12 Capítulo 1 Plurilingüísmo e Educação dos Surdos: Uma leitura bakhtiniana da história 14 1.1. A educação dos surdos no Brasil nos dias atuais 32 Capítulo 2 Uma visão histórica das principais teorias de leitura: Dos modelos de processamento às vertentes discursiva e enunciativa 40 2.1. A leitura e as Teorias Cognitivas: Os modelos de processamento 42 2.1.1. Modelo de processamento ascendente (bottom-up) 42 2.1.2. Modelo de processamento descendente (top-down) ou Modelo psicolingüístico 45 2.1.3. Modelo de processamento ascendente/descendente ou Modelo Interativo 48 2.1.4. O impacto dos modelos cognitivos de leitura na educação dos surdos 51 2.1.5. Os modelos de processamento: Uma (re)leitura bakhtiniana 54 2.2. A leitura nas vertentes discursiva e enunciativa 58 2.2.1. A leitura segundo a Associação Francesa de Leitura: Os estudos de Foucambert 60 2.2.2. A leitura para a Semiologia: O trabalho de Barthes & Compagnon 67 2.2.3. A leitura segundo a Análise do Discurso de linha francesa 69 Sumário 2.2.4. A leitura a partir da Teoria Enunciativa Bakhtiniana 78 Capítulo 3 Metodologia de pesquisa 96 3.1. Metodologia de coleta dos dados 97 3.1.1. O contexto da pesquisa 99 3.1.2. Caracterização dos sujeitos 100 3.1.3. Organização das oficinas 104 3.2. Transcrição 108 3.2.1. Quadro resumo do sistema de transcrição 119 3.3. Metodologia de análise dos dados 122 Capítulo 4 A leitura como espaço discursivo de construção de sentidos: Oficinas com surdos 125 4.1. O gênero receita 126 4.2. O gênero reportagem de revista 145 4.2.1. O mundo aos pés de Júlia 149 4.3. O gênero artigo assinado 194 Capítulo 5 Considerações Finais 231 Capítulo 6 Referências bibliográficas 245 Anexo 1 258 Anexo 2 262 Anexo 3 271 Anexo 4 275 Anexo 5 278 Introdução _________________________ Em meio à diversidade social de linguagens que circulam em nossa sociedade, a comunidade de surdos tem, ao longo das duas últimas décadas, reivindicado o direito a uma educação que considere e utilize a língua brasileira de sinais (LIBRAS) nos espaços escolares, base lingüística para que possam se apropriar da linguagem escrita da língua portuguesa, propiciando, assim, sua constituição como bilíngüe. Historicamente, no Brasil, os surdos, sejam os incluídos em classes regulares de ensino sejam os que cursam classes e/ou escolas para surdos, têm sofrido uma escolarização que desconsidera suas particularidades e que os submete a práticas pedagógicas em português, pensadas e planejadas para ouvintes. No entanto, as questões educacionais dos surdos não podem ser reduzidas, unicamente, à diferença lingüística: elas se inscrevem em uma discussão maior que envolve as políticas educacionais como um todo e que vem ganhando relevância, principalmente, nos estudos realizados com grupos de menor prestígio social: a das diferenças nos tipos e níveis de letramento e a da desigual distribuição social dos bens culturais. Por este motivo, nesta introdução, serão abordados dois aspectos relativos à essa ampla discussão. Primeiramente, será realizada uma breve descrição sobre a influência que os conhecimentos propiciados pelo domínio da escrita tiveram nas formações sociais iniciais no período da colonização da América Latina. Esta discussão torna-se relevante na medida em que a compreensão desta história, considerando-se os interesses e os fatores determinantes do desenvolvimento da escrita no Novo Continente, pode auxiliar no entendimento de alguns pontos que vem permeando algumas questões educacionais da atualidade. Para tal, tomou-se como base os estudos de Rama (1996), Lahire (1993, 1995, 1998)1, Abreu (1999, 2001) e Galvão (2001). 1 As datas dos trabalhos referidos neste estudo correspondem à do copyright da primeira edição ou ao ano em que a obra foi escrita. Introdução Em seguida, as questões relativas ao conceito de letramento serão discutidas a partir de uma retrospectiva histórica das últimas três décadas de estudo. Os trabalhos que deram sustentação a estas discussões foram: Kato (1985), Zilberman & Silva (1988), Kleiman (1995), Tfouni (1995), Rojo (1995, 1998 e 2001) e Signorini (2001a). Para finalizar, serão apresentados os objetivos deste estudo e a forma como esta tese foi organizada. 1. LINGUAGEM ESCRITA E PRESTÍGIO SOCIAL: UMA RELAÇÃO HISTÓRICA Muitos estudos têm sido desenvolvidos denunciando e discutindo as questões que perpassam a educação no Brasil desde sua colonização. A linguagem escrita que, desde sua origem, consistiu em uma marca de poder, foi, na própria constituição da América Latina, o instrumento de perpetuação das elites e, portanto, a linha divisória entre as classes sociais. Por seu intermédio, buscou-se, no Novo Continente, a reprodução (por imposição) da ideologia que dava sustentação à monarquia dos países europeus de centralização de poder e de constituição de uma sociedade hierarquizada. Segundo Rama (1996), no período da descoberta e colonização da América Latina, as nações européias absolutistas, apoiadas pelas instituições religiosas que centralizavam seu poder na corte, procuravam impor uma formação social hierárquica ao resto da sociedade. Este ideal de ordem encontrou fortes resistências nas cidades européias e, conseqüentemente, pouca transformação foi obtida. Frente ao território recém conquistado, vislumbrou-se uma boa oportunidade para que os planos da monarquia fossem levados a cabo. A linguagem escrita começou a ganhar prestígio no Novo Continente a partir da necessidade do registro dos atos de fundação e das escrituras de posses de terras. Acreditava-se que, frente ao caráter permanente da escrita, esse material ganharia certa autonomia e manter-se-ia livre das vicissitudes e das metamorfoses da história. Com o desenvolvimento de um projeto de urbanização que representasse os princípios organizacionais de uma sociedade hierarquizada, passou-se a dar 2 Introdução especial atenção ao povo, pois caso isso não ocorresse, a ordem social idealizada não poderia ser imposta. Estabeleceu-se, assim, algumas normas, sendo a principal delas, a educação dos nativos. No entanto, antes de educar o “povo selvagem”, este deveria ser evangelizado, dando lugar ao empreendimento europeu de imposição cultural. Conforme descreveu Galvão (2001), a leitura era, no período colonial brasileiro, restrita aos homens brancos e seu ensino realizado por homens, brancos e que fossem religiosos. Os indígenas eram mais catequizados do que instruídos. Os poucos livros disponíveis produzidos, principalmente, em Portugal, eram a base da ação educativa e, portanto, de leitura obrigatória pelos professores jesuítas. As práticas de escolarização eram desenvolvidas nos próprios engenhos ou fazendas, por um letrado, padre, capelão ou mestre-escola, contratado, unicamente, para esse fim. Segundo a autora, a oferta de escolarização da população começou a ser ampliada somente com a chegada da corte portuguesa e após a independência, pois a sociedade ganhava maior complexidade, novos postos de trabalho surgiam, ao mesmo tempo em que outros hábitos culturais eram desenvolvidos. Com isso, a instrução e a educação começaram a ser vistas como necessárias ao desenvolvimento econômico e cultural do país e um dos signos de civilidade (Galvão, 2001: 81). Dessa forma, paralelamente ao projeto de evangelização dos nativos, outra parcela da população passou a ser contemplada: a dos brancos nascidos na nova terra, tidos como aqueles que possuíam “maior facilidade e aptidão” para a escrita e que representavam as classes de poder. Formou-se, assim, um pequeno e novo grupo social que, em subordinação direta à metrópole, tornou-se especialista na manipulação da linguagem escrita, passando a desempenhar papel de destaque na administração colonial. Rama (1996) denominou este grupo social de cidade letrada. No entanto, a maioria da população permanecia analfabeta. A divisão social estabelecida pela linguagem escrita separava, assim, aqueles que dominavam a linguagem “culta” (conhecimento permitido, apenas, pela escrita), adequada às ocasiões públicas, formais, religiosas e oficiais, daqueles que utilizavam uma fala informal, do cotidiano, uma visão da língua usada pelos pobres e despretensiosos 3 Introdução de poder e que raramente aparecia escrita. As diversas linguagens sociais em circulação em todas as esferas sociais, embora resistissem e fizessem oposição às forças de unificação lingüística e cultural, num processo contínuo de desunificação e de descentralização lingüística e ideológica, eram tidas como inferiores e, portanto, funcionavam como uma forma de exclusão social, pois a hierarquia cristalizada pela língua servia aos processos de centralização sócio-político e cultural, como forma de perpetuação da ideologia dominante. No entanto, absorvendo todos os tipos de contribuições e apesar das resistências dos letrados, crescia e se desenvolvia uma miríade de variações regionais, uma linguagem própria, nascida nas diversas regiões e países do Continente Americano, aquela da maioria da população. Considerando-se, então, que é neste embate de natureza sócio-ideológica que a língua vive e se torna dinâmica (Bakhtin, 1934-1935/1975)2 e, frente ao plurilingüísmo cada vez mais crescente opondo-se à língua única determinada pelas sociedades européias (e mantida pelos letrados), a conservação do purismo lingüístico foi sendo banida, pouco a pouco, das relações cotidianas, permanecendo, apenas, na escrita. Os letrados mantinham inalterada sua posição social, contrariando o desenvolvimento das cidades, cuja existência histórica permitia transformações sociais. Os conflitos entre as duas eram inevitáveis e, dados os conhecimentos adquiridos e transmitidos por seus antecessores pela escrita, os letrados desenvolveram formas de adaptação às transformações sociais, tornando-se uma classe cada vez mais independente. Com a independência dos novos países, a atividade dos letrados continuou central, pois passaram a ser os responsáveis pelo delineamento de leis, editais, regulamentos e constituição para os estados novos. A função da escrita tornou-se oficial, idealizada e destacada da realidade, prolongando, assim, a mesma disjunção entre a vida social e as estruturas legais que existiram no período colonial. Os letrados da América Latina assumiram também a responsabilidade de criar instituições educacionais nacionais com o objetivo de democratizar o ensino, possibilitando, às classes populares, o acesso à escrita. No entanto, uma vez mais, 2 As referências com barras indicam a data de redação do texto/data do copyright da primeira edição 4
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