ALQUIMIA DE CATEGORIAS SOCIAIS NA PRODUÇÃO DOS SUJEITOS POLÍTICOS Gênero, Raça e Geração entre Lideres do Sindicato de Trabalhadores Domésticos em Salvador* MARY GARCIA CASTRO Como os vários sistemas de privilégios que afetam as re- lações sociais são referidos por sujeitos políticos mulheres em uma situação de trabalho específica'? Em que medida a bus- ca de uma identidade de classe, pelas trabalhadoras domés- ticas, implica em também privilegiar questões de gênero, ra- ça e geração ou em secundarizá-las? Como são reapropria- dos os constructos dessas questões? Como os sujeitos políti- cos mulheres utilizam os conceitos de público e privado, pró- prios da tônica de essencialidade do feminismo'? Tais questionamentos podem ser formulados a partir das biografias e idealizações das trabalhadoras domésticas orga- nizadas, tendo como referência o enfoque da política da di- versidade, Por este, a cultura política das mulheres deve ser construída no reconhecimento, e não na negação, das hete- rogeneidades, para melhor se compreender como estão divi- didas entre si, evitando-se, porém, cortes individualizantes Para Barrett e Hamilton (1987) "apreender a diversidade, sem perder-se na fragmentação, vem-se tornando um dos maiores desafios do trabalho de corte feminista, hoje". Sujeitos políticos, para estas autoras, são mulheres que escolheram como arena o domínio público, onde o self entre- meia-se a um coletivo através de suas práticas Isso se traduz em um estar junto ou ser parte de um projeto comum de mu- dança de uma identidade social imposta ao seu grupo de re- * Este estudo é parte de um programa de pesquisas que esta- mos desenvolvendo, denominado "Dividindo para somar a produção de sujeitos políticos mulheres (O caso de líderes sin- dicais do setor bancário e do setor de serviço doméstico, Sal- vador - Bahia"), que recebe auxílio do CNPq P P 57 a 73 ESTUDOS FEMINISTAS 57 N 0/92 ferência por interesses de um poder antagônico A identida- de de referência do sujeito político vai sendo traçada na rela- ção entre biografia e história, um processo com diversos mo- mentos e situações. Tal processo é marcado por projetos atra- vés dos quais as experiências são reelaboradas. No caso das trabalhadoras domésticas, o projeto de se- rem reconhecidas como membros da classe trabalhadora reelabora, por um lado, vivências sobre questões de gênero, de raça, de geração e até de classe e, por outro, redimensio- na significados de constructos do conhecimento feminista, como os de público e privado. Situações de vivência do público e do privado por dife- rentes mulheres questionam a propriedade de teses calca- das na essencialidade de dimensões da reprodução, como o trabalho doméstico e a desprivatização da casa, para o pro- cesso de constituição da identidade feminina No caso das empregadas domésticas, a vivência do público e do priva- do historicamente não se alinha ao retratado por outras mulheres, em distintas situações de classe e de práticas de trabalho. Para essas mulheres, a casa não é necessaria- mente sítio do reino das necessidades, ainda que o públi- co possa ser o do reino da liberdade (Hegel, cit. in Haber- mas, 1984) Sennett (1976), referindo-se ao século XIX, chama aten- ção para a diferença de significados do público para ho- mens e mulheres O público seria o lugar onde a mulher corre- ria o risco de "perder a virtude, enxovalhar-se, ser envolvida em um estonteante e desordenado torvelinho". Já para o ho- mem burguês, o público seria o espaço que lhe permitiria des- pir-se de suas "características de respeitabilidade que se supu- nha estarem encarnadas na sua pessoa, enquanto marido e pai, no lar". Habermas (1984) retraça a etimologia do público e do privado, identificando as demarcações entre as esferas da polis e da oikos, rigorosamente separadas na cidade-estado grega A polis era de domínio dos cidadãos livres Habermas advoga a persistência normativa de tal modelo e nos leva a refletir porque, no projeto de classe das empregadas do- mésticas, não basta estar na polis, já que os cidadãos não somente estariam dispensados do trabalho produtivo, co- mo também gozariam de "autonomia privada como senho- res da casa". Não é por acaso que um dos vetores da es- 1. Toma-se de Poulantzas sencialidade do conhecimento feminista foi a conquista (1968) o conceito de catego- do público e a desprivatização do lar, buscando a fusão ria social "Por categoria so- dos espaços sociais cial, entendemos particular- As trabalhadoras domésticas organizadas reivindicam a mente os conjuntos sociais com 'efeitos pertinentes — separação dos espaços e a sua realização enquanto mem- que podem tornar-se, como bros da classe operária Isso significa privilegiar o público, co- Linin mostrou, torças sociais mo espaço político, sem refutar o direito ao privado, pelo di- — cujo traço distintivo repou- vórcio entre lugar do trabalho e lugar de residência, e a exi- sa na sua relação especifica e sObredeterminante com gência de cidadania (Habermas, 1984) outras estruturas além das Gênero, geração e raça são categorias aqui usadas pa- econômicas" ra o debate sobre a alquimia das categorias sociais] e o eu ANO 058 2Q SEMESTRE dividido, ou seja, o jogo entre encontros, contradições, trans- formação e parcialização das rebeliões ou seleção de fren- tes de rebeliões. A metáfora da alquimia não é gratuita. É preferida àquela de simbiose (Saffioti, 1992), que sugere fusão ou anula- ção de uma categoria pela outra. O teorema subjacente ao conhecimento alquimista era de que haveria uma prima matéria, comum a metais bastan- te diferentes entre si, Para a produção de um metal superior - o ouro - haveria que combinar, por exemplo, cobre, ferro e prata. Chegar a tal matéria, transformando-a, exigia do alqui- mista experiência nas técnicas de laboratório e uma postura filosófica própria (Frater, 1976). O alquimista, ao juntar catego- rias ou elementos para uma transformação, transforma-se, chegando a um conhecimento próprio singular e a um al- ter/auto conhecimento de si. As categorias de raças, gênero e geração têm em co- mum serem atributos naturais com significados políticos, cultu- rais e econômicos, organizados por hierarquias, privilégios e desigualdades, aparados por símbolos particulares, e 'natura- lizados' (Stolcke, 1990; Suárez, 1991). A combinação de cate- gorias é de fácil comprovação; já o seu produto leva a ou- tros resultados e o seu conhecimento exige saber que se ini- cia por ruptura com os esquemas duais, Poulantzas (1968) defende que os interesses das catego- rias sociais atravessariam as fronteiras de classe, embora ad- vogue que as alianças podem ocorrer entre indivíduos de di- ferentes classes sociais se - e tão-somente neste caso -seus interesses de classe não estiverem ameaçados. Concordamos que a estrutura de classe condiciona prá- ticas, mas não as determina, nem limita alianças construídas em nome de interesses de algumas categorias sociais, Na al- quimia das categorias, nem o conceito de classe se reproduz na íntegra, estando sujeito a reapropriações. A alquimia das categorias sociais está presente na cons- trução de subjetividades, que, somente para fins analíticos, seriam referidas como específicas, ou seja, segundo a classe, gênero, a geração ou etnicidade Contudo, se se trata de ação coletiva, no plano da subjetividade coletiva são elabo- radas seleções quanto a referências. A tese é que, em se tra- tando de trabalhadoras domésticas que enfrentam o estig- ma da não consideração do seu trabalho como tal, o norte é uma subjetividade de classe, que guarda distância do que tradicionalmente se convencionou chamar classe. A produção de subjetividade não é um componente ideológico ou uma parte da super-estrutura. É parte de um sis- tema econômico, político e cultural que se reproduz por dife- rentes mecanismos (Guattari e Rolnik, 1986). O conceito de subjetividade é aqui entendido como resultado da interação entre atos e idéias que identificam o self na sua relação com os outros A subjetividade coletiva junta os atos orientados por referências do cotidiano pessoal e a preocupação com projetos orientados ao coletivo em termos de impulso ou esti- ESTUDOS FEMINISTAS 59 N 0/92 mulo à mudança. Com tal raciocínio, melhor se equacionam as relações feitas nas referências de vida, ou para frentes de luta, além dos rótulos de alienação Também evita-se o des- lumbramento com as representações, com o dito, risco fre- quente se se trabalha com testemunhos. Há que relacionar desejos, modelos de identidade às "máquinas de produção de subjetividades" Guattari (1986) assim expressa tal postura: "Tudo o que é produzido pela subjetivação capitalística - tu- do o que nos chega pela linguagem, pela família, pelos equi- pamentos que nos rodeiam - não é apenas uma questão de Idéia, não é apenas uma transmissão de significações com pólos maternos, paternos, etc. Trata-se de sistemas de cone- xão direta entre as grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social e as instâncias psíquicas que de- finem a maneira de perceber o mundo... Todos os fenômenos importantes da atualidades envolvem dimensões do desejo e da subjetividade". Categorias sociais e diversidade Na literatura feminista, são lugar comum as disputas de competência entre gênero e classe. Também nos escritos so- bre raça, tais disputas se repetem, alguns antepondo, outros mesclando as propriedades de um sistema de raça e as de um sistema de classe, Buscamos um caminho diferente de análise, ao reco- nhecer que, na sociedade brasileira, identificam-se historica- mente sistemas de privilégios que se perfilam de forma nítida, podendo-se referir a um sistema de raça, a um sistema de gê- nero e a um sistema de geração, com hierarquias próprias e relações legitimadas Tais sistemas não são explicados por causações lineares ordenadas pela questão de classe Reconhecer a pluralidade dos sistemas de privilégios e hierarquias implica no exercício da crítica ao essencialismo, tão empregado pelos movimentos sociais e pelos conheci- mentos competentes, especializados. Pela modelagem da es- sencialidade, a desvalorização social do trabalho doméstico seria explicada porque historicamente exercida por mulheres (explicação de certas correntes do feminismo) ou porque re- miniscência do trabalho negro escravo (explicação de cor- rentes do conhecimento sobre relações raciais e sobre clas- ses sociais). Mas não é esta parte da modelagem - reconhecimen- to de distintos sistemas de privilégios - que emprestaria singu- laridade ao caminho analítico aqui proposto Insistir no reco- nhecimento da pluralidade de sistemas de hierarquizações sociais, consistiria em circular no campo da posição althusse- riana das autonomias relativas Além da pluralidade, a tradução dos sistemas de privilé- gios (por categorias sociais) se dá por vivências Isto é, realiza- ções de uma sociedade de classe em tempos e lugares defi- nidos Tais sistemas de privilégios se entrelaçam, resultando em especificidades que se afastam dos modelos puros. Neste sentido, a analise, pautada por uma perspectiva de gênero, 2. ANO 0 60 SEMESTRE será pobre para a compreensão das situações de todas as mulheres de diferentes raças e em distintos ciclos de geração e posição de classe Gênero seria um - não exclusivo - con- teúdo de relações sociais pautado por hierarquias e subordi- nações (Scott, 1988) A vivência de relações sociais racistas, com marcas de gênero e códigos de geração por sexo, leva tanto à frag- mentação da identidade por referências exclusivas, indirecio- nais, quanto a combinações entre identidades, resultando em significados próprios de constructos básicos de cada siste- ma de discriminação Em tal raciocínio está ancorada a expressão alquimia de categorias sociais (raça, gênero e geração). Esta alqui- mia não ocorreria em um vacuum, resultando em um tipo de perfil próprio. Seus significados e suas reelaborações, por sujei- tos políticos, numa trajetória de se assumirem como tal, são pautados por práticas sociais e projetos específicos Tal alqui- mia é levada a extremos em uma sociedade de classe, que ideologicamente a reinterpreta para difusão de responsabili- dades Não só se naturalizam questões de gênero, raça e ge- ração, como estas são filtradas por questões de classe, diluin- do-se identidades e, portanto, percepções e ações críticas a suas lógicas. Dilui-se também a propriedade compreensiva dos quadros conceituais próprios a cada sistema de relações (Stolcke, 1990) As líderes do serviço doméstico organizado em Salvador se identificam como feministas, mas não compartem as críti- cas feitas pelo movimento feminista ao trabalho doméstico. Ao contrário, lutam pela valorização desse trabalho como técnica, especialidade. Têm como norte a desprivatização do trabalho doméstico quando remunnerado e recusam as analogias entre trabalho e serviço doméstico. Tendem a enfa- tizar o público como o espaço por excelência da sua consti- tuição enquanto sujeitos políticos e separam, em termos de sua prática ocupacional, o que seria espaço da produção (serviço doméstico) e da reprodução (trabalho doméstico). Não compartem tampouco as críticas feministas sobre famí- lia, pois ter uma família sua, realizar o trabalho doméstico pa- ra os seus, se configura numa aspiração e passo importante na definição de distintas espacialidades (lugar de trabalho x lugar de morar ou de ter família) Tal separação é considera- da essencial na construção da identidade de trabalhadora, isto é, pela alteridade, que além da separação mencionada, entre vida privada e vida pública, implica em avaliações dis- tintas, As sindicalistas contam casos de racismo, filtrados por re- lações de classe, indicam casos de sexismo no interior das re- lações raciais e rotulam como distintos os problemas das mu- lheres mais jovens e das mais velhas. Elas destacam que o fa- zer-se sujeito de classe, trabalhadora doméstica sindicaliza- da, é obstaculizado pelos códigos, quer do sistema de gera- ção - o sindicato sena lugar de mulher mais velha -, quer do sistema de gênero - as relações afetivas entre homem e mu- ESTUDOS FEMINISTAS 61 N 0/92 Iher levariam as empregadas domésticas a se afastarem do sindicato, principalmente se mais jovens -, quer, enfim, por códigos do sistema de raça - as trabalhadoras domésticas não se sindicalizariam porque o trabalho doméstico remune- rado é menosprezado socialmente como trabalho de negro. As múltiplas discriminações se reforçam e podem tam- bém impedir a construção de identidades específicas, ou o reconhecimento das lógicas de privilégios de cada sistema. À medida que o norte prioritário das trabalhadoras domésti- cas é serem reconhecidas socialmente como trabalhadores, tanto pelo pólo em oposição (Estado e patrões), como pelo pólo parâmetro de identificação (outros sindicatos e centrais sindicais), secundariza-se o debate sobre a realização das di- versas categorias sociais, enquanto relações pautadas por discriminações. As sindicalistas entrevistadas concordam que, pelo fato de o trabalho doméstico trazer o estigma das relações de es- cravidão e/ou ser papel de mulher, sua desvalorização social é reforçada. Consideram, no entanto, que o vetor básico do trabalho sindical são as relações de exploração próprias do serviço doméstico Não lhes atrai o debate sobre o trabalho doméstico como privativo do gênero feminino e tendem a uma maior lealdade com o movimento negro do que com o movimento feminista, em especial porque aquele lhes propor- ciona uma referência, uma ancestralidade, uma história que não descobrem neste Uma história que se confunde com a história dos dominados Nas relações sociais de classe, ser ne- gro é ser pobre, já ser mulher pode também significar ser pa- troa, o outro pólo de oposição. A identificação das sindicalistas, trabalhadoras domésti- cas, baianas, com o movimento negro, passa, portanto, pela imbricação entre classe e raça (ou etnicicfade), pela lingua- gem comum - a história - da relação de discriminação com um outro totalizado o branco, rico e patrão A ambiguidade do eu no outro complica lealdades entre mulheres de diferen- tes posições sociais A mulher feminista patroa é percebida, principalmente, como patroa pela sindicalista empregada doméstica, Empiricamente, tais associações podem ser remo- deladas, pois a alquimia entre raça, classe, gênero e gera- ção resulta em produtos heterogêneos A geração é outra categoria naturalizada com códigos sociais rígidos na sociedade brasileira. Até um certo limite, ge- ração comparte com raça e sexo a qualidade de ser 'natu- ral' e socialmente recodificada, uma vez que também está imersa em estereótipos culturais e econômicos direcionados a cada ciclo de vida. A interação entre gênero e geração afeta em especial as mulheres. Limita o que é ou não próprio das mulheres de certa idade, fazendo variar os códigos de seleção econômi- ca e sexual e os de valorações sociais As entrevistas com líderes do serviço domestico de Sal- vador mostram discriminação segundo o ciclo geracional, tais como: exploração do trabalho infantil, abuso sexual de ANO 0 62 29 SEMESTRE 2 Discriminação racial ír cnanças e adolescentes, seletividade no emprego por conta aqui usada de acordo com da idade e abandono por seus mandos ou companheiros por a definição estabelecido pe- envelhecerem Mas, enquanto as líderes entrevistadas concor- la convenção internacional dam que a discriminação contra as mulheres e a discriminação para a eliminação de todas as formas de discriminação racial2 ou mesmo as desigualdades econômicas e raciais po- racial, citada por Stoicker dem e devem ser abolidas, consideram também que não há (1990), e apud M Banton formas de combater os estereótipos geracionais uma vez que, (1988) qualquer distinção, de acordo com uma das entrevistadas, "isso sempre foi assim". exclusão, restrição e prefe- rência baseada na raça, A complexidade da geração como categoria social cor, descendência ou ori- também se relaciona com o problema de identificação do gem nacional ou etnica sujeito com um ciclo de idade. Os sujeitos se movem entre ci- clos de vida, mudando, portanto, referências, símbolos de re- lações. Ciclos geracionais que estão em xeque não estão re- lacionados ao mesmo grupo de pessoas e aquela situação específica é naturalmente suplantada com um novo ciclo de vida Esta particularidade bloqueia a autopercepção e a construção de uma subjetividade coletiva Perfil e organização das trabalhadoras domésticas de Salvador Na Região Metropolitana de Salvador, excetuando-se o emprego doméstico, um terço dos assalariados são mulheres. Já a maioria das empregadas domésticas é mulher (92,5%), sendo elevada a participação das mais jovens Há dez vezes mais crianças e adolescentes, entre 10 e 17 anos, trabalhan- do como empregada doméstica do que era outras ocupa- ções assalariadas. Salvador é um dos principais núcleos do movimento ne- gro no Brasil, detacando-se o significado da ancestralidade africana na formação da cultura, da história e da economia É ainda hoje bastante expressiva a participação dos afrobra- sileiros na população total, cerca de 65% da população em 1989. A raça empresta singularidade à seletividade da força de trabalho Há quase três vezes mais pessoas de cor branca entre as diversas categorias de assalariados do que entre as trabalhadoras domésticas de Salvador. Enquanto 93% das tra- balhadoras domésticas são mulheres não brancas, estas são 77% das demais assalariadas. A relação entre raça e classe é mais evidente se considerarmos, por exemplo, a posição na ocupação Entre os empregadores, a proporção de não brancos é de apenas 45% em 1985 (SUTRAB/PED, 1989). Não chega a duzentos o número de trabalhadoras do- mésticas sindicalizadas na cidade de Salvador, apesar de uma diretoria ativa e presente constantemente na mídia. Obter o estatuto legal de sindicato (1989) e adquirir uma sede (1988), com o apoio da OXFAM (agência interna- cional), foram os objetivos que mais mobilizaram as emprega- das domésticas organizadas na cidade de Salvador Tais objetivos se relacionam com seu desejo de reconhe- cimento social como trabalhadoras. serem aceitas como iguais por outros trabalhadores garantindo a sua autonomia em relação aos partidos políticos, entidades religiosas e ou- tros movimentos sociais ESTUDOS FEMINISTAS 63 N 0/92 Geração , As líderes do serviço doméstico em Salvador, em média, são mais velhas do que a maioria das empregadas domésti- cas Sua idade varia entre 21 e 41 anos Geração é um fator seletivo na sindicalização. As líde- res se queixam da dificuldade em atrair mulheres jovens para o sindicato, porque o coletivo do serviço doméstico como grupo ocupacional não é parte do projeto de vida das ado- lescentes. Ao contrário, as trabalhadoras domésticas jovens não querem ser reconhecidas como tal, pois acreditam na possibilidade de uma mobilidade social O sindicalismo é tam- bém considerado pelas jovens trabalhadoras como próprio das mulheres mais velhas, daquelas que não têm marido ou das que não são amadas. As líderes sindicais admitem que o ciclo de vida das mu- lheres limita as suas atividades públicas Não há mulheres ca- sadas no sindicato, mas há várias mães solteiras, o que suge- re que a carga de trabalho nas suas casas, como o fato de terem filhos pequenos, não é um fator de limitação da sua participação no sindicato. Porém, o marido ou namorado aparecem como um forte empecilho à sindicalização de mui- tas delas. Códigos sociais geracionats também afetam os projetos coletivos de gênero, considerando-se estereótipos de beleza e seletividade nas relações homem/mulher. Algumas líderes mais velhas contam casos de abandono por parte de seus namorados, envolvidos em outra relação, geralmente com uma mulher mais jovem A dinâmica social das relações pautadas por códigos geracionais são interpretadas por um prisma fatalista. As mu- lheres mais velhas, acima dos trinta anos, não teriam mais chances de vir a ser selecionadas ou de "arranjar um ho- mem", não havendo, para as sindicalistas, como alterar tal quadro. Raça Ao serem interrogadas sobre a cor da sua pele, bem co- mo a de seus pais e irmãos, as líderes sindicais deram respos- tas variadas Entre as mulheres negras, algumas responde- ram "Sou muito escura", "preta", ou da "raça negra". Nós não mencionamos o termo raça na nossa pergunta. Esta última resposta, raça negra, é dada por líderes do serviço domésti- co que também militam no MNU (Movimento Negro Unifica- do). Três entre as quatorze trabalhadoras domésticas entrevis- tadas integram esse movimento Aquelas que nas estatísticas oficiais seriam classificadas de pardas se referem a si próprias como "marrom", "escura", "clarinha", "claramente", "um pouco escurinha", "clara" e "mar- rom clara", "não muito escura" ou "morena". Tal reconheci- mento de raça ou disfarce está de acordo com pesquisas de- senvolvidas especificamente sobre questões raciais (Maggie e Sermello, 1989, Agier, 1989, entre outros) Em vez de uma di- ANO o 64 2gSEMESTRE ferenciação aguda entre negros e brancos, um contínuo de cores é estabelecido. Agier (1989) adverte que esta prática de "auto-embranquecimento" ou de apagamento da própria identidade racial teria o efeito de uma "violência simbólica" (Bourdieu, 1989) que os negros cometem contra si próprios, uma vez que o sistema de poder racial é reproduzido sem re- belião, mas com cumplicidade. Esse tipo de violência também operaria por outro racio- cínio, o da identidade, relacionada com a pobreza. Nesses termos, não haveria uma questão de gênero ou uma ques- tão de raça e muito menos de geração, tudo se resumindo a uma questão de classe Algumas respostas à pergunta sobre a cor de pele ilus- tram as ambiguidades referidas e também os diferentes está- gios no processo de produção da subjetividade racial: "Algumas pessoas dizem que sou branca, enquanto ou- tras dizem que eu sou morena. Eu penso que sou branca, e sou um pouquinho amarelada Esta corzinha que tá aqui é do sol" "Eu sou moreninha" "Eu sou mulher negra". "Eu sou uma mulher negra, empregada doméstica". E visível o ganho, em termos de dignidade e auto-respei- to, quando se centraliza a discussão sobre raça, e a influên- cia de princípios difundidos pelo movimento negro Dentre as entrevistadas, aquelas que são militantes de movimento negro declararam que a escravidão é parte da história das empregadas domésticas e argumentaram sobre a necessária relação entre raça e classe no caso das empre- gadas domésticas Já outros tópicos constantes da agenda do movimento negro, como o resgate da cultura e das raízes africanas, não entusiasmam de igual forma As sindicalistas declararam que é bom receber apoio de grupos do movimento negro considerando que "a maioria das empregadas domésticas é negra". Mas também acres- centaram que os interesses do movimento negro e os do Sin- dicato não são necessariamente os mesmos, uma vez que "há muito intelectual no movimento negro". "Eles, lá no movi- mento negro, não lidam diretamente com o caso das empre- gadas domésticas, são apenas solidários conosco" Quando a referência é raça, os temas que perpassam os discursos orientam-se para os casos de negros pobres e, para todas, o movimento negro é um movimento para os po- bres, ainda que algumas citem a presença de "doutores" no movimento como barreira para uma maior integração entre o sindicato e o movimento negro, Segundo Luiza Bairros, tam- bém membro do M NU, a composição desse movimento é ba- sicamente de trabalhadores e funcionários, sem presença de classe media Se o movimento negro é percebido como um movimen- to para os pobres, este não é o caso do movimento feminis- ta "Alguns militantes homens, do movimento negro, são um bocado machistas e nem todos eles respeitam nosso sindica- ESTUDOS FEMINISTAS 65 N 0/92 to como sendo uma organização representativa dos traba- lhadores, Mas nós somos da mesma raça e eles têm sido bas- tante ativos na defesa dos direitos dos pobres.... As feministas têm nos ajudado, mas nós não temos muita coisa em comum com o movimento feminista .. bem, talvez alguma coisa, uma vez que nós somos todas mulheres". Gênero Vivências moldadas pelo sistema social de gênero são retratadas quando a vida familiar na infância é focalizada. O pai é a figura mais forte. No discurso das líderes é o protetor, autoritário, que toma decisões. Muitas complementam que "ele só queria o melhor para nós, os filhos, A mãe é lembrada como uma pessoa dócil, cúmplice da filha nas questões amo- rosas. A maneira como algumas entrevistadas mencionam a ocupação de cada um dos pais indica o modo subliminar co- mo opera a ideologia de gênero. "Meu pai, ele trabalhava fabricando fogos de artifícios para vender, minha mãe apenas o ajudava. Ela era dona de casa", "Meu pai trabalhava duro na plantação. Minha mãe aju- dava, Nós, minha mãe, meus irmãos e eu ajudávamos o pai lá na roça". "Ela ficava a cargo do trabalho doméstico, Ele era um trabalhador rural". Não somente a divisão sexual do trabalho, mas tam- bém a divisão sexual do poder e do prazer são parte das bio- grafias Ao pai cabia a decisão de migrar para a cidade De- cisão sempre difícil, pois os pais gostariam que os filhos ficas- sem na área rural A decisão era tomada considerando a si- tuação de pobreza. O pai tinha um papel ativo na ordena- ção das relações das entrevistadas com seus amigos do sexo masculino enquanto permaneciam na casa paterna Os ir- mãos tinham permissão de sair à noite e voltar tarde. Esse não era o caso das mulheres, das meninas ou das moças. Es- ses fatos não são revelados espontaneamente e, quando ci- tados, não há nenhuma recriminação ou reconhecimento de desigualdade ou discriminação. Algumas mencionam o comportamento autoritário do pai, mas também costumam suavizar a questão, enfatizando que, em contrapartida, pro- tegia a família. A família primária é uma importante referência para as entrevistadas, que se sentem mais gratificadas por terem sido educadas por valores austeros, com "cuidados". Muitas não se sentem à vontade para falar de sexuali- dade Volta e meia lembram que são "mulheres direitas", "mo- ças direitas". Algumas ainda associam o feminismo com um movimento que prega práticas sexuais "diferentes" ou "sexo li- vre, o que contribui para que não se sintam parte do movi- mento feminista Poucas escaparam a casos de "coração partido" ou a "uma desilusão amorosa", sendo comuns comentários amar- gos sobre as relações com os companheiros, durante a juven- ANO 0 66 22 SEMESTRE
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