Diretora Rosely Boschini Gerente Editorial Marília Chaves Estagiária Natália Domene Alcaide Editora de Produção Editorial Rosângela de Araujo Pinheiro Barbosa Controle de Produção Karina Única é um selo da Editora Gente. Groschitz Título original: Through the killing glass Tradução Copyright © 2012 by Mainak Dhar Publicado Amanda Moura mediante acordo com Pontas Literary & Film Agency. Preparação Todos os direitos desta edição são reservados Entrelinhas Editorial Projeto Gráfico e à Editora Gente. Diagramação Osmane Garcia Filho Revisão Rua Pedro Soares de Almeida, 114 Vero Verbo Serviços Editoriais Capa São Paulo, SP – CEP 05029-030 Telefone: (11) 3670-2500 Thiago de Barros Site: http://www.editoragente.com.br Produção do e-book Schäffer Editorial E-mail: [email protected] Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Dhar, Mainak Alice e as armadilhas do outro lado do espelho / Mainak Dhar; tradução de Amanda Moura. — São Paulo: Única, 2016. Título original: Through the killing glass ISBN 978-85- 67028-88-0 1. Ficção indiana em inglês I. Título II. Moura, Amanda 16-0074 CDD In823 Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção indiana em inglês In823 Como não poderia deixar de ser, a Puja & Aaditya. um O QUE ALICE MAIS LAMENTAVA ERA NÃO TER MAIS A capacidade de chorar, uma vez que não era mais totalmente humana. Mais de um ano se passara desde que ela, ao seguir um Mordedor com orelhas de coelho e entrar num buraco, deu início a uma série de acontecimentos que mudaram sua vida e a de todos no País das Armadilhas. Esses fatos levaram à criação de um novo assentamento, diferente de qualquer outro que o mundo vira desde a Insurreição. O resultado foi o reassentamento da cidade de Déli, ocupada por milhares de humanos que se deslocaram do País das Armadilhas para viver juntos em comunidade. Uma comunidade que tinha leis, segurança e moradia para seus habitantes. Uma comunidade que não tinha medo de ser saqueada pelos Mordedores nem atacada pela Guarda Vermelha à noite. Uma comunidade que agora era simplesmente conhecida como o País das Maravilhas. No entanto, essa vitória custou caro. Milhares tinham morrido no País das Armadilhas durante o combate contra a Guarda Vermelha, e outras centenas não resistiram aos ataques aéreos que começaram assim que Alice foi capturada. E tudo isso também teve um custo alto para Alice. Ela perdera a família e a própria identidade; já não era mais a menina de quinze anos travessa que o pai tanto amava. Agora, a jovem se transformara na Rainha do País das Maravilhas e era encarada com reverência e admiração. Contudo, como era metade Mordedora, jamais voltaria a sentir o gosto dos alimentos; Alice simplesmente não precisava mais comer. Assim como jamais sonharia com a família, porque os Mordedores não têm capacidade de sonhar e, embora muitas vezes tenha refletido sobre tudo o que perdera, não poderia chorar para aliviar a dor, pois os Mordedores não derramam lágrimas. Para seus inimigos, Alice era uma adversária exemplar, cujo treinamento e instinto de batalha de um soldado humano de elite foram postos à prova, e também com vigor inesgotável e imunidade a todas as formas de ataque. Para seus seguidores humanos, ela era uma espécie de messias que os resgatara do País das Armadilhas e lhes trouxera a esperança de voltar a viver como pessoas civilizadas. Para os Mordedores que a seguiam, ela era a líder do bando a quem obedecer com instinto animal e devoção. Para si, porém, ela ainda era Alice Gladwell, a única remanescente de uma família assassinada. Ela se vingara da Guarda Vermelha, e o que havia começado como uma missão de vingança se transformara em algo muito maior. Alice nunca tinha se imaginado no papel de líder, mas sabia que, agora, mais de dez mil humanos do País das Armadilhas dependiam dela. Gostasse ou não desse fardo, teria de carregá-lo e estava determinada a não decepcionar quem contava com ela. Alice passou boa parte da infância em combates, e sua educação consistiu basicamente em aprender a lutar e a sobreviver no País das Armadilhas, mas, hoje, ela estava prestes a fazer algo que nunca havia feito antes: inaugurar a primeira escola do País das Maravilhas. Entre os milhares reunidos, houve um silêncio assim que ela subiu ao palanque. Arjun, seu confidente e conselheiro de confiança, com o senso de humor de sempre, foi quem escolheu o lugar. A escola seria instalada onde antes havia sido o zoológico de Déli. — Moradores do País das Maravilhas, muito obrigada por terem vindo. Falando por mim, posso dizer que recebi pouca instrução além de aprender a sobreviver no País das Armadilhas, mas, a partir de hoje, nossas crianças vão aprender o que as pessoas faziam antes da Insurreição e, um dia, terão a oportunidade de viver no mundo do modo como ele era. Alice foi ovacionada, mas, ao sair do palanque, sentiu um vazio por dentro. Ela não conhecera a vida antes da Insurreição e, embora estivesse orgulhosa daquilo que haviam conquistado juntos, perguntava- se se sua presença ainda era necessária no País das Maravilhas. A jovem não fazia a menor ideia do que era administrar uma cidade, desde as disputas por água até as questões mais triviais. Alice ansiava pelo espírito cooperativista que aprendera no assentamento onde todos se conheciam e onde não havia o anonimato da vida urbana na qual as pessoas se amontoam em apartamentos no centro das antigas colônias luxuosas do governo de Déli. Ela avistou um casal jovem de mãos dadas e desviou o olhar. Essa era outra experiência que nunca tivera. Alice era nova e humana o suficiente para lamentar nunca ter sido amada, assim como também era Mordedora o suficiente para nunca mais sentir essas emoções. Além disso, sua aparência física já bastaria para pôr fim a qualquer ideia desse tipo. Enquanto voltava para o quarto que antes fora o Centro de Comando da Guarda Vermelha, no coração de Nova Déli, Arjun veio falar com ela. — Alice, esta semana mandamos nossas tropas de novo para o norte da País das Maravilhas, mas as pessoas estão começando a reclamar da patrulha. Dizem que não veem ninguém da Guarda Vermelha há meses. Alice virou-se para Arjun e, com pesar, percebeu quanto até ele tinha permitido que seu campo de visão encolhesse. O sorriso travesso e os olhos cintilantes de Alice se foram e deram lugar a um olhar amarelado e a uma pele que aparentava estar em decomposição e exalava um cheiro horrível. Então, ela desvia o olhar, evitando o rosto dele. — Arjun, as pessoas estão satisfeitas e felizes. Elas se esquecem de que esse sentimento de segurança foi conquistado com sangue e suor, de que a guerra continua do lado de fora do apartamento de cada uma delas e de que, qualquer dia, pode voltar para nos assombrar. Arjun estava do lado de Alice, ela sabia disso, mas também sabia da pressão pela qual ele passava. Não fazia mais sentido continuar falando sobre a guerra. Depois da derrota vergonhosa na batalha, a Guarda Vermelha tinha efetivamente cedido o controle do antigo País das Armadilhas ao norte da Índia. Vez ou outra se via uma aeronave sobrevoando a área, mas nunca se aproximariam muito. Afinal, todos sabiam que aquela área contava com mísseis capazes de intervir em quaisquer ataques aéreos e operados por soldados experientes que já haviam servido Zeus, o exército mercenário que fizera um acordo com o Comitê Central antes de se rebelar e de a Guarda Vermelha ter sido convocada pela China. Em momentos como esse, Alice pegava sua bicicleta e andava sozinha, cruzando o rio Yamuna, atualmente seco, até chegar à área florestal, agora reservada para os Mordedores. Alguém comentara que a região parecia uma reserva animal de antes da Insurreição, e, estranhamente, Alice se incomodou com o comentário. Os Mordedores eram mantidos confinados numa espécie de bosque protegido por cerca elétrica, e lá havia túneis através dos quais podiam ir até o País das Maravilhas. Será que o lado Mordedor de Alice era mais forte agora a ponto de fazê-la se identificar mais com eles do que com os humanos? Ela continuou pedalando contra o vento que soprava e açoitava o cabelo loiro. Era essa a única parte do seu corpo que não havia mudado desde que se transformara numa espécie híbrida. Àquela altura, o sol estava se pondo e começava a anoitecer na floresta. Alice avistou alguns vultos familiares. Ao se aproximar mais, viu um Mordedor usando orelhas de coelho caminhar de um jeito arrastado, sem uma das mãos que havia sido arrancada logo abaixo do cotovelo por uma granada arremessada pela Guarda Vermelha. O segundo era um Mordedor desajeitado que usava um chapéu. Se Alice era a líder do bando, o Orelhudo e o Chapeleiro eram seus escudeiros. Depois da transformação, Alice percebeu que, embora os Mordedores não pudessem se comunicar por meio de algum tipo de linguagem humana, eles o faziam assim como os animais e tinham forte senso de mentalidade primitiva. Pôr fim a uma guerra no País das Armadilhas significava não só entrar num combate sangrento contra a Guarda Vermelha como também garantir que Mordedores e humanos pudessem ao menos coexistir, e quem sabe até se unir para o bem comum. No entanto, isso implicaria a Alice impor-se como a líder do bando. Agora, ela comandava um exército de milhares de Mordedores que emergiriam das profundezas de uma floresta sombria e se prostrariam diante dela. Alice carregava na mão esquerda um livro velho e carbonizado. Era o último exemplar que restara do País das Armadilhas, e o vira pela primeira vez numa base subterrânea dos Mordedores, nas mãos da Rainha Mordedora. O título era: Alice no País das Maravilhas. A rainha acreditava que havia no livro uma profecia de cura para a humanidade e que Alice seria a responsável por concretizá-la. Agora que aperfeiçoara sua habilidade de leitura, a jovem era capaz de compreender as coincidências que faziam a Rainha acreditar na “profecia” e no envolvimento de Alice. Ela não sabia ao certo se havia alguma verdade nessa suposta profecia, mas tinha certeza de duas coisas. A primeira era que, até que alguém de fato se dedicasse a escrever outro livro, talvez este fosse mesmo o último exemplar do País das Armadilhas, e isso, por si só, já era suficiente para considerá- lo algo precioso a ser protegido. A segunda era que os Mordedores tinham profunda admiração por ele, como se fosse algo sagrado, e por isso ela sempre o carregava consigo ao se dirigir a eles. Alice também percebeu que, em se tratando dos Mordedores, a lealdade nunca era uma certeza, uma vez que eram tão impulsivos e agressivos quanto animais raivosos e, quando um ou outro desconhecido se aproximava dela, o Chapeleiro se impunha e tratava de afastá-los. Antes, o cheiro fétido e insuportável a incomodava. Agora, mal o percebia. Ela se sentou ao pé de uma árvore e ficou olhando para o céu estrelado. Contudo, havia mais do que estrelas iluminando o que uma vez fora o País das Armadilhas: as luzes de uma porção de apartamentos pontilhavam a escuridão. — Eles estão tranquilos. Iluminaram o assentamento e se tornaram um alvo ainda mais fácil, que pode ser visto a quilômetros e quilômetros de distância — sussurrou para si, mas o Orelhudo se aproximou e sentou-se perto dela, aguardando suas ordens. Embora os Mordedores se comunicassem com grunhidos e guinchos, pareciam entender a linguagem humana até certo ponto. Talvez algumas partes do cérebro deles continuassem funcionando, apesar do vírus que os tinha reduzido a essa condição. — Não se preocupe, Orelhudo. Não é nada que eu não possa resolver. Alice fez um sinal para dispensá-lo no momento em que o walkie- talkie, preso no cinto, emitiu um sinal. — Rainha Branca, aqui é a Torre Branca. Por favor, dirija-se ao espelho imediatamente. Alice levantou-se e correu em direção ao templo próximo dali. Esse local servia como um centro de comunicação entre eles, a única janela real que tinham para observar o que acontecia no mundo externo. Satish — ou Torre Branca — batizara o lugar de Espelho. Satish fora um soldado desertado de Zeus que, com o passar do tempo, tornou-se efetivamente a peça principal das Forças Armadas do País das Maravilhas. Durante meses, eles tentaram entrar em contato com a resistência que se localizava onde tinham sido os Estados Unidos, mas não tiveram sucesso. Além disso, usaram computadores apreendidos e tablets para monitorar o que o Comitê Central e seus adeptos estavam tramando. Não havia outra notícia além daquilo que o Comitê Central permitia transmitir, mas pelo menos eles tinham uma ideia do que estava acontecendo do lado de fora do assentamento. A princípio, o Espelho fora posto no centro da cidade, mas depois as pessoas pediram que fosse levado para as regiões mais afastadas, pois não queriam ouvir as más notícias do mundo lá fora. Esse era mais um sinal de que a