DEBATE DEBATE 509 QUESTÕESEPISTEMOLÓGICASDASNEUROCIÊNCIASCOGNITIVAS EPISTEMOLOGICALQUESTIONSOFTHECOGNITIVENEUROSCIENCES 1 AlfredoPereiraJr. Resumo Nesteensaio,identificam-sequatroques- Abstract Thisessaypinpointsfourkeyissuesthat tõescentraisfundamentaisparaaepistemologiada arecentraltotheepistemologyofcognition-oriented neurociência de orientação cognitiva: a multiplici- neurosciences: the multiple levels of analysis in dadedeníveisdeanálisenoestudodasfunçõesdo thestudyofthebrainfunctions,theconfrontation cérebro;oconfrontoentremodeloscomputacionaise betweenthecomputationalanddynamicistmodels; dinamicistas;otratamentoadequadodasinterações thepropertreatmentoftheinteractionsamongthe entrecérebro,corpoeambiente;eosproblemasfilo- brain,thebody,andtheenvironment;andthephilo- sóficos encontrados nas tentativas de se construir sophicalproblemsencounteredintheattemptsmade umateorianeurobiológicadosprocessosconscientes tobuildaneurobiologicaltheoryofconsciousand edalinguagemhumana. humanlanguageprocesses. Palavras-chave epistemologia;neurociênciacogni- Keywords epistemology; cognitive neuroscience; tiva;representações;consciência;linguagem. representations;consciousness;language. Trab.Educ.Saúde,RiodeJaneiro,v.8n.3,p.509-520,nov.2010/fev.2011 510 AlfredoPereiraJr. Introdução Osresultadosdaspesquisasneurocientíficastêminfluenciado,pormeiode suasaplicaçõesmédicas,diversosaspectosdavidahumana;noentanto,as basesconceituaisdaneurociênciatêmrecebidopoucaatenção.Apesquisa empíricatemgeradoumgrandenúmeroderesultadosexperimentais,mas talconhecimentoaindanãofoiintegradoemumquadroconvincentedeco- moosprocessoscognitivossãorealizadospelocérebro.Issosedeveafatores metodológicosesociológicosqueconduziramàproliferaçãodedadossema concomitantesofisticaçãoteórica.Aslimitaçõesdecorrem,possivelmente, da dificuldade intrínseca em se produzir uma teoria unificada da função cognitivadocérebroedahiperespecializaçãodavidaacadêmica,fazendo que as carreiras científicas dos pesquisadores se estabeleçam dentro de recortesconceituaisemetodológicoslimitados. A neurociência cognitiva se originou de um esforço colaborativo re- cente,seguindoumpadrãohistóricodetrabalhointerdisciplinarnasciên- ciasdocérebroedocomportamento.Taisesforçosincluemapsicologiafisioló- gicadoiníciodoséculoXX,aneuropsicologiademeadosdoséculopassado atéopresente,eoprópriotermo‘neurociências’,queapareceunosanos1960, denotandoumaáreamaisamplaqueaneuroanatomiaeneurofisiologia.Tais esforçostentaramrelacionarestudosdedicadosaaspectosdiversosdocére- bro, e que podem ser pensados em três dimensões: a) ‘vertical’: referin- do-se a níveis de organização estrutural, e respectivas funções – átomos, moléculas,células,tecidos,subsistemas,redesdeamplaescala; b)‘horizontal’: referindo-se a interações entre cérebro, corpo e ambiente de organismos; c)temporal:referindo-seaprocessosfilogenéticoseontogenéticosquede- terminamestruturaefunçãodecérebrosdeorganismosindividuais. Taisdimensõeserespectivosníveisdeanáliseparecemserirredutíveis edifíceisdeintegrar.Emfacedessasdificuldades,algunscientistas como G.Edelman(1987;1989),A.Damasio(1999)eR.Llinás(2002)têmseproposto adiscutirproblemasepistemológicos,oqueconduziuacontribuiçõesorigi- naisepertinentesarespeitodosparadigmasneurocientíficos.Amigraçãocon- versa,defilósofosquediscutemneurociência,temsidonotavelmentepequena. Os Churchland são exceções importantes a esse respeito (ver Churchland, 1986;Churchland,1988),apesardesuapropostadesubstituiçãodadescri- ção de senso comum dos estados mentais pela linguagem neurocientífica (materialismoeliminativo)nãoterencontradooapoioqueesperavam. Osparadigmascomputacionaledinamicista OsdoisprincipaistiposdemodeloscognitivosutilizadosnoséculoXXparase entenderofuncionamentocerebralsãoocombinatorial(ou‘computacional’) Trab.Educ.Saúde,RiodeJaneiro,v.8n.3,p.509-520,nov.2010/fev.2011 Questõesepistemológicasdasneurociênciascognitivas 511 eodesistemasdinâmicos,frequentementetomadoscomoopostoseexclu- dentes. Já no Simpósio Hixon, realizado em 1948, foram defendidas duas visõesdafunçãocerebral.Osqueaconceberamemtermosdacomputação depulsoselétricos(vonNeumann,1951;McCulloch,1951)discordaramdos queapensaramemtermosde‘campos’(Kohler,1951)oude‘açãodemas- sas’(Lashley,1960).Dapropostadosprimeiros,derivou-seaneurociência computacional, uma tentativa de explicar as funções cognitivas com base emmecanismosdeprocessamentodeinformaçãoeconstruçãoderepresenta- çõesmentaisquevicejouaofinaldoséculoXX.Dapropostadossegundos, deriva-se a corrente dinamicista, que concebe os processos cognitivos em umadimensãocorpóreaeinterativacomoambiente,favorecendomodelos decunhoecológicoqueenfocamasaçõesdossistemascognitivosemseus respectivoscontextos.Assim,asfunçõesderepresentaçãoficariamemsegundo plano,entendendo-seacogniçãocomoumprocessodeadaptaçãoativa. Nos anos 1950 e 1960, o uso do eletroencefalograma para o estudo de cogniçãosugeriuumaconcepçãodefunçãocerebralemtermosdepadrões dinâmicos(Walter,1963;RoyJohn,1967),ideiaaindadefendidaporinvesti- gadoresempercepção(Pribram,1991)eproponentesdemetodologiasdina- micistasemneurociência(Kelso,1995;vanGelder,1997).Nãoobstante,nos anos1970,aépocadeourodainteligênciaartificial,omodelodocomputador digitalfoifrequentementeconsideradoadequadoparaapreenderasfunções cognitivasdocérebro. Oparadigmacomputacionalteminfluídonainterpretaçãodedadosobti- dospormeiodetecnologiasdeimagemdaatividadecerebral,PET-scanners eMRIfuncional.Esforçosignificativotemsidodedicadoaomapeamentodo cérebroemtermosde‘módulos’,seguindooconceitopropostoporFodor (1983).Taisinterpretaçõessupõemqueasdiversasregiõesdocérebro(em especial,doneocórtex)seriamespecializadasemfunçõescognitivascomo memória,atençãoepensamento.Tambémtêmsidousadosmodelosdetipo ‘conexionista’(oude‘redesneurais’)simuladosporcomputadoresdigitais, parasedescreverapossívelarquiteturadetais‘módulos’.Esseparadigma dominouaneurociênciacognitivanosanos1990,massinaisdeesgotamento sãovisíveis,acompanhadosporumatendênciaarefocalizarosproblemasda integraçãoesincronização. Ahistóriadaneurociênciaexibeumaênfasealternadanasquestõeses- pecialização e integração de função. Tal alternância refletiria a ‘dialética fundamental’daorganizaçãodocérebro(FritheFriston,1997),consistindo em oposição e ao mesmo tempo complementaridade entre especialização e integração de função. Alguns processos cerebrais parecem ser mais bem analisadosemtermosdesistemascombinatoriaisbiologicamenteespeciali- zados(processosbioquímicosnasinapse,codificaçãodainformaçãosensorial pelafrequênciadosdisparosneuronais),aopassoqueoutrosseriammaisbem Trab.Educ.Saúde,RiodeJaneiro,v.8n.3,p.509-520,nov.2010/fev.2011 512 AlfredoPereiraJr. analisadosemtermosdesistemasdinâmicosapoiadospormecanismosfísi- cosgerais(porexemplo,adifusãodeíonsdecálcio,ainteraçãodecampos eletromagnéticos,osciclosdepercepçãoeação,ofuncionamentodosistema vestibularetc.).Defato,seriasurpreendentesecérebrosanimaisusassemsó umadessasestratégias.Umreconhecimentodetalcomplementaridadefaria diferençanoestudodasfunçõescerebrais,levandoaodescréditoosmode- losqueassumemexclusivamenteumavisãocomputacionaloudinamicista. Interaçõescérebro,corpoeambiente Arelevânciadasinteraçõesentrecérebro,corpoeambientedeorganismos foiantecipadanumtrabalhoteórico,escritoem1938,dopioneirodaetologia JakobvonUexkull(1957),enapesquisaempercepçãovisual(porexemplo, HeldeHein,1963;Gibson,1979).Recentementeessaquestãoreemergiucomo avisão‘encarnada’(embodied)dacognição,propostanaciênciacognitiva (porexemplo,Clark,1996),narobótica(porexemplo,Brooks,1991)enaneu- rociência(porexemplo,Ballardetal.,1997).Ainteraçãoentrecérebro,corpoe ambienteenvolvedifíceisproblemasepistemológicosrelativosàinfluência depadrõesexternosdeinformaçãonasinapseenaatividademetabólicado neurônio,eàgênesedaintencionalidadesubjacenteàconsciência.Aquien- focareidoistópicoscentrais,adistinçãoentre‘reconhecimento’e‘represen- tação’,eadimensãopragmáticadosprocessoscomputacionaisdocérebro. O conceito de ‘reconhecimento’ de padrões é aqui entendido como a formação de correspondências parciais entre propriedades dos estímulos queexcitamosistemanervosoperiféricoeoscorrespondentespadrõesde atividade neuronal no sistema nervoso central (SNC) elicitados pelos pri- meiros–oconceitode‘correspondênciaparcial’entreestruturasemmodelos científicosfoipropostoporDaCostaeFrench(1990).Aformaçãodecorres- pondênciasparciaissugereummecanismode‘ressonância’,comoproposto nomodeloderedesneuraisART(AdaptiveResonanceTheory)deS.Grossberg (verGrossbergeMerrill,1996;paraumapropostasemelhante,vertambém Amit,1995).Épossívelqueospadrõesressonantestenhamumaestrutura temporal,descritívelemtermosdeautocorrelação,ouseja,váriaspartesde umsistema,emdiferentesescalastemporais,apresentampadrõesdeativi- dadesemelhantes(verCariani,1994). Oconceitode‘representação’,porsuavez,implicaumarelaçãoisomór- ficaentreaestruturaquerepresentaeaestruturarepresentada(Newell,1990); seu uso, portanto, deve restringir-se a processos em que tal isomorfismo esteja presente. Na neurociência, estes processos seriam aqueles em que padrões formados em uma parte do cérebro são copiados e recombinados poroutrapartedocérebro.Processosdereconhecimentodepadrõesexternos Trab.Educ.Saúde,RiodeJaneiro,v.8n.3,p.509-520,nov.2010/fev.2011 Questõesepistemológicasdasneurociênciascognitivas 513 ocorremnasáreasperceptuais,formando‘matrizes’quesãocopiadasere- combinadaspelo‘sistemaexecutivo’,gerandonovospadrõesinformacionais, úteisparaoplanejamentoeocontroledocomportamento.Asmatrizessão reutilizadasemprocessosdeimaginação,nosonhoenorelembrar,podendo aindaseralteradasmedianteprocessosperceptuaisnovos. A distinção entre reconhecimento e representação seria semelhante entãoàdistinçãoentre‘entender’e‘raciocinar’.‘Entender’correspondea processosdereconhecimento,queemparelhampadrõesinternoseexternos. ‘Raciocinar’correspondeaprocessoscombinatoriaisendógenosquecons- troem padrões mais complexos com base em recombinações de cópias das matrizesperceptuais,independentementedaestruturadomundoexterno (noexemploclássico,pode-seformaraimagemdeumunicórniopelarecom- binaçãodepadrõesdeanimaispercebidos). Naliteraturacientífica,notamosquetaldistinçãonãoéfeita,resultando emumusoindiscriminadodotermo‘representaçãomental’parasereferirà atividadedecircuitoscerebraisquepresumivelmentedariamsuporteapro- cessoscognitivos.Esseusopodeserconsideradoumdosmaioresproblemas epistemológicos das neurociências cognitivas, ensejando muitas críticas e tentativas de eliminação de sua utilização, uma vez que o termo carrega consigodeterminadassuposiçõesoriundasdafilosofiamodernaequeforam absorvidaspelasciênciascognitivas.Dentreelas,destacoasseguintes: • identificação de processos mentais com processos lógicos: o ser humano seriaumagenteexclusivamenteracionalquepautariasuacondutaemracio- cínioscorretos,pormeiodosquaisasalternativasdeaçãoseriamrepresen- tadasexplicitamenteafimdequehouvesseumaescolhaconsciente; •intencionalidadecognitiva:amentehumanaseriaumsistemafundamen- talmentecognitivocujaconsciênciasempreserefereaobjetosintencionais, ouseja,aquelescujaexistênciaestánodomíniodaprópriamentee/ouem ummundoplatônicodasideias.Opensamentoserefereaobjetosintencio- nais mediante representações, sendo a linguagem o meio mais apropriado paraseelaboraremasmesmas; •exclusividadecognitiva:mesmoqueseconsideremosprocessosafetivose emocionaiscomoconstituintesdamentehumana,elessãorebaixadosase- gundoplano,atuandocomoperturbaçõesdosprocessoscognitivos. Particularmenteespinhosaéadiscussãodousodotermo‘representação’ parafazerreferênciaaestadosafetivoseemocionais.Seráqueocérebrore- presentasensações(comocalor,fome,dor)esentimentos(feelingseminglês, incluindo,porexemplo,tristeza,raivaemedo)?Nãoseriamaisapropriado dizerqueoindivíduocomoumtodovivenciataissensaçõeseemoções? Encontramos,nasituaçãoacimadescrita,doisnovosproblemaslinguís- ticos,queacabamtornando-seproblemasepistemológicos:aatribuiçãodosesta- dosmentaisaocérebro,enãoàpessoacomoumtodo,easuposiçãodeorigem Trab.Educ.Saúde,RiodeJaneiro,v.8n.3,p.509-520,nov.2010/fev.2011 514 AlfredoPereiraJr. racionalista,possivelmentecartesiana,equealinguísticadeChomskyherdou, dequeestadosafetivoseemocionaisseriamredutíveisaestadoscognitivos. Umacomputaçãopragmática? Nossistemasvivossubmetidosàpressãoadaptativa,oprocessoderecom- binaçãodeconteúdosmentaiséguiadoporobjetivos.Cérebrosreconhecem padrõesnaturaisoriundosdosambientesnosquaisosanimaislutampara sobreviver,erecombinamtaispadrõesobedecendoaparâmetrospragmáticos. Emcomputadoresdigitaisfaltaadimensãopragmática,derivadadapressão seletivapelasobrevivênciaepelareprodução;oscomputadoresseriammá- quinasqueassociamrepresentaçõesartificialmentecodificadas,deacordo comfunçõespreviamenteprogramadas. Nos sistemas vivos, as recombinações são monitoradas por meio de mecanismosdereaferência(reafference),quealertamoorganismosobreos resultadosdeaçõesprévias.Oplanejamentodeaçõesnovasestábaseadona correçãodediscrepâncias(mismatches)entreoresultadointencionadoeas consequênciaspercebidasdeaçõesprévias. Nocérebrodosmamíferos,caracterizadopelodesenvolvimentodasáreas neocorticais,arecombinaçãodepadrõesconstituiriaomodusoperandido ‘sistemaexecutivo’,compostopelocórtexpré-frontalesuasconexõescom áreasassociativasperceptuais–aparietaleaínfero-temporalposterior–,e pelosistemalímbico(verD’EspositoeGrossman,1996).Essavisãoécom- patívelcomaconcepçãofuncionaldocérebrocomocompostodeumnível básicodeprocessadoresparalelosquesecombinacomumsegundonívelde processamento de tipo serial (ver Dennett, 1991). Os sistemas perceptuais de reconhecimento seriam os processadores paralelos, e a biocomputação realizadapelosistemaexecutivoconstituiriaoprocessamentoserial. Entretanto,osmodeloscomputacionais,quesebaseiamnacodificação digitaldainformação,podemserincompatíveiscomosaspectosafetivose emocionaisdaexperiênciaconsciente.Ora,osmecanismosdereaferênciasó setornamefetivosquandogeramrespostasafetivas/emocionaisquepossi- bilitamaoindivíduoavaliar–emtermosexistenciais,queincluem,masnão selimitam,aoprocessamentológico–aadequaçãodesuasações.Porexem- plo,acredita-sequeaexistênciadadorsirvacomosinaldealertaparaque os indivíduos procurem se afastar de determinadas situações que possam colocar em risco a sua integridade físico-biológica. Nesse caso, o compo- nente dor seria essencial em modelos computacionais da cognição, porém comoimplementarofenômenodadoremcomputadoresourobôs? Seriapossíveldistinguircomputacionalmente,pormeiodeumacodifi- caçãodigital,adoreoprazer?Taltarefapareceserimpossível,poisinclu- Trab.Educ.Saúde,RiodeJaneiro,v.8n.3,p.509-520,nov.2010/fev.2011 Questõesepistemológicasdasneurociênciascognitivas 515 sivenoplanobiológicotaldistinçãoénebulosa.Porexemplo,umaregiãodo cérebro chamada ínsula é ativada em ambas as situações, ou seja, quando umapessoasentecertostiposdedorequantosentecertostiposdeprazer. Para explicar os feelings em termos físico-biológicos, possivelmente seja necessário um novo tipo de abordagem (ver, por exemplo, Pereira Jr. e Furlan,2010). Atividadecerebraleatividademental Umaconcepçãodeprocessoscognitivosbaseadaemcategoriasdasciências docérebronãoimplicaatesedequeascategoriaspsicológicasseriamteori- camenteredutíveisa–ouelimináveis,emprolde–categoriasneurobioló- gicas,oquetinhasidopropostoporChurchland(1986)eCrick(1994).Ao contrário,nosestudosexperimentaisdaneurociênciacognitiva,cadanível defunçãodocérebroéacessadoporumametodologiadiferente,encontrando- sepossíveiscorrelaçõesquandoosresultadossãocomparados.Porexemplo, em uma sessão de fMRI (functional Magnetic Resonance Imaging/Resso- nânciaMagnéticaFuncional)osujeitoexecutatarefascognitivasenquanto seucérebroéesquadrinhadopeloequipamentodeneuroimagem.Énainter- pretação de resultados que os dados da neuroimagem são correlacionados comosdadoscomportamentaisdatarefacognitiva,induzindo-seumapos- sívelrelação(causalounão)entreeles. Explicaçõescausaisdecogniçãoemtermosdeprocessoscerebraissão possíveisecientificamentedesejáveis,emboratalvezincompletas.Osefeitos deneurotransmissoresereceptoressobreestadoscognitivoseemocionais estãosendoprogressivamentedescobertos.Oprogressodoconhecimentoda fisiologiadocérebronãofaráasdisputasfilosóficassobreanaturezadamente desaparecerem,maspodeprovocarumamudançadoestilodediscussão:em vezdeumconfrontodeposiçõesemnívelpuramenteteórico,pode-sepassar adiscussõesbaseadasnainterpretaçãodosdadosempíricos.Porexemplo, ao se discutir se um transtorno mental – como a esquizofrenia – tem uma basegenética,épossívelclassificarosdiversostiposdealteraçõescerebrais correlacionadoscomaspsicopatologiaseverificarseexistemelementosco- munsemsuasdiversasmanifestações. Umaconclusãosugeridapelosestudosdelesõescerebraisealterações farmacológicas é que de alguma maneira (a ser elucidada) processos cere- brais‘causam’processosconscientes(oquetemsidodiscutidoporSearle, 1997).Nessesestudos,porexemplo,sãocomparadosdoiscomportamentos emumúnicoorganismo:oprimeiro,anterior,eosegundo,imediatamente posterioraumalesãocerebralouaumaalteraçãobioquímica.Ainferência usualmentefeitaéqueadiferençapertinentesedeveàausênciadaestrutura Trab.Educ.Saúde,RiodeJaneiro,v.8n.3,p.509-520,nov.2010/fev.2011 516 AlfredoPereiraJr. subtraídapelalesãooupelaalteraçãodeconcentraçãodecompostosbioquí- micos.Talinferênciaésemelhanteaoqueéfeitoemoutrasáreasdeciência. Quandooutrapremissaplausíveléacrescentada–adequeasmudançasde comportamentoindicammudançasnosprocessosconscientes–,aconclusão emquestãoéobtida,ouseja,quealteraçõesemestadoscerebrais‘causariam’ mudançasnosprocessosconscientes. Manifesta-se aqui o problema de se entender como é possível que processos eletroquímicos na rede neuronal contribuam de alguma forma para‘causar’aexperiênciaconsciente,umavezqueascategoriasquedes- crevem a experiência consciente (por exemplo, as qualidades sensoriais, comocoresesons,chamadaspelosfilósofosdequalia)nãoseriamdedutiva oumesmosemanticamentederiváveisdosreferidosprocessosneuronais.Tal visãoimplicariaumconceitopeculiardecausaçãoquenãofoidiscutidopor Searle(1997):haveriarelaçõescausaisentreprocessosdescritosporcatego- riasdiferenteselógico/semanticamenteirredutíveis?Oefeitonãoseriauma consequência lógica, nem pertenceria à mesma categoria semântica da causa.Umaconsequênciadissoéquepropriedadesdoefeito(conteúdosdos processos conscientes) não poderiam ser deduzidas das propriedades da causa(característicasdosprocessoscerebrais). Em outras palavras, embora a neurociência cognitiva descubra corre- laçõesentreocérebroeamente,um‘fossoexplicativo’(explanatorygap,de acordocomLevine,1983)restaria.Essavisãoparecedesafiartantooclássico princípioderazãosuficiente,deLeibiniz,oqualafirmaquetudoaquiloque existetemumarazão,nosentidodeexplicaçãoracional,quantoomodelode leidecobertura(Nagel,1961),usadoparaaexplicaçãocientíficadosfenômenos equepostulaseremaspropriedadesdosefeitosdedutíveisdasproprieda- desdascausas(usando-secomopremissasasleiscientíficaseascondições iniciaisdosistemaemestudo).Umacontribuiçãooriginaldaepistemologia daneurociênciacognitivaseriaaanálisedapossibilidadedeefetivaexpli- caçãodeprocessoscognitivoscombaseemcategoriasneurobiológicas. Nocasodeseconcluirporumaimpossibilidade,restaaindaaalternati- va epistemológica de construção de modelos das relações entre processos cerebraiseprocessos mentais conscientes,comopropostoporLungarzoe Pereira Jr. (2009). O monismo de duplo aspecto (Pereira Jr. et al., 2010) é umaposiçãofilosóficaqueentende seremindissociáveisosaspectosfísicos ementais,ambosconstituintesfundamentaisdomundoemquevivemos,e nãopoderemsereliminadosoureduzidosumaooutro.Nessaperspectiva emqueomundofísicoeomundomentalconstituemumaunidadedotipo yin-yang, a tarefa da neurociência cognitiva seria justamente a de encon- trarasdevidascorrespondências(isomorfismosouhomeomorfismos)entre padrões de atividade biofísica do cérebro e padrões de atividade mental (conscienteouinconsciente). Trab.Educ.Saúde,RiodeJaneiro,v.8n.3,p.509-520,nov.2010/fev.2011 Questõesepistemológicasdasneurociênciascognitivas 517 Comentáriosfinais Osquatrotemasepistemológicosaquiresenhadosconvergemnoproblema principal da neurociência cognitiva: entender como processos cognitivos sãoexecutadospelocérebro,emsuasinteraçõescomo(restantedo)corpoe o ambiente. Tais temas refletem o avanço de pesquisa neurocientífica em umaáreapreviamenteocupadaporfilósofosepsicólogos. Uma discussão mais detalhada desses temas pode ser encontrada nas seguintespublicaçõesdoautor:PereiraJr.,1997;PereiraJr.,1998;Pereira Jr. e Rocha, 2000; Pereira Jr., 2001; Rocha, Pereira Jr. e Coutinho, 2001; PereiraJr.,2003;PereiraJr.,2007a;PereiraJr.,2007b;TeixeiraePereiraJr., 2009; Pereira Jr., 2008; Pereira Jr. e Ricke, 2009; Pereira Jr. et al., 2010 e PereiraJr.eFurlan,2010.Nesseúltimotrabalho,apresentamosumanova perspectivaarespeitodofuncionamentocerebraledaconsciênciahumana, considerandoaparticipaçãodecélulasgliais–emparticular,dosastrócitos – como componentes centrais no processamento da informação cerebral e instanciaçãodosconteúdosconscientes. Agradecimentos AoConselhoNacionaldeDesenvolvimentoCientíficoeTecnológico(CNPq) eàFundaçãodeAmparoàPesquisadoEstadodeSãoPaulo(Fapesp). Trab.Educ.Saúde,RiodeJaneiro,v.8n.3,p.509-520,nov.2010/fev.2011 518 AlfredoPereiraJr. Notas 1ProfessoradjuntodoDepartamentodeEducaçãodoInstitutodeBiociênciasdaUni- versidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), São Paulo, Brasil. Doutor em Lógica e Filosofia da Ciência pela Universidade Estadual de Campinas. Pós-Douto- rado em Ciências do Cérebro e da Cognição no Massachusetts Institute ofTechnology. <[email protected]> Correspondência: Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Campus de Botucatu,DistritodeRubiãoJúnior,s/n,CEP18.618-970,Botucatu,SãoPaulo,Brasil. Referências AMIT, Daniel A. The Hebbian Paradigm DACOSTA,Newton.C.A.;FRENCH,Steven. Reintegrated: Local Reverberations as In- R.D.TheModel-TheoreticApproachinthe ternalRepresentations.BehavioralandBrain PhilosophyofScience.PhilosophyofScience, Sciences,v.18,n.4,p.617-657,1995. n.57,p.248-265,1990. BALLARD,DanaH.etal.DeicticCodesfor DAMASIO, Antonio. 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