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Alexandra David-Néel PDF

15 Pages·2007·0.12 MB·French
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Alexandra David-Néel: uma orientalista percorrendo a Ásia ∗ Carmen Lícia Palazzo Resumo Alexandra David-Néel (1868–1969), escritora e orientalista francesa, passou muitos anos percorrendo a Ásia e publicou uma vasta obra da qual constam relatos de viagens, reflexões sobre o pensamento oriental e romances ambientados na sociedade tibetana. Em seus deslocamentos passou longas temporadas na Índia, no Tibete, na China e no Sikkim mas visitou também o Japão, a Coréia, a Birmânia, a Malásia e o que era então a Indochina. Contribuiu para a divulgação do Oriente na Europa através de textos ricos e densos, frutos de um interesse que ultrapassava a curiosidade superficial pelo Outro. A imersão de Alexandra nas sociedades asiáticas onde viveu foi profunda e marcante em sua própria vida, levando-a a abandonar sua formação tradicional cristã convertendo-se ao budismo. Palavras-chave: relatos de viagens; alteridade; orientalismo; Ásia. Abstract Alexandra David-Néel (1868–1969), a French writer and orientalist, spent several years wandering through Asia and published an extensive body of work comprising travel journals, reflections on Eastern thought, and novels set in the Tibetan society. During her journeys she remained for long periods in India, Tibet, China and Sikkim, but she also visited Japan, Korea, Myanmar, Malaysia and then-Indochina. She contributed to increase the awareness of the East in Europe by means of rich writings, stemming from an interest which went beyond mere curiosity for the Other. The immersion of Alexandra in the Asian societies in which she lived was deep and decisive in her own life, leading her to give up her traditional Christian education and convert to Buddhism. Key-words: Travel journals, alterity, orientalism, Asia ∗ Carmen Lícia Palazzo é doutora em História pela UnB com cursos de especialização em Roma, Paris e Montevidéu. Foi pesquisadora visitante da Georgetown University em Washington, D.C. e atualmente é pesquisadora convidada do UniCeub. Publicou artigos no Brasil, no Uruguai e na Argentina e o livro Entre mitos utopias e razão: os olhares franceses sobre o Brasil (Porto Alegre: Edipucrs, 2002). Carmen Lícia Pallazo - Alexandra David-Néel: uma orientalista percorrendo a Ásia Introdução Relatos de viajantes se constituem, sem dúvida, em fontes importantes para a reflexão sobre a alteridade. No que diz respeito ao Oriente, a chamada literatura de viagens que tanto prosperou, principalmente na Europa, foi responsável pela construção de múltiplas imagens – como múltiplos foram os relatos daqueles que descreveram o Outro a partir de suas próprias inquietações. No século XIX, o geógrafo e explorador alemão Ferdinand von Richthofen batizou com o evocativo nome de Rota da Seda1 uma vasta rede de caminhos que atravessavam a Ásia até os portos do Mediterrâneo e que eram percorridos por mercadores, peregrinos e aventureiros, desde a Antiguidade. Na Idade Média, Marco Polo, Rubruck, del Carpine contribuíram em larga escala para a ênfase na descrição de um Oriente mítico, repleto de maravilhas. Partir, portanto, em busca do lucro proporcionado pelas mercadorias de luxo, tais como a seda, o jade, o sândalo, entre outras, mas também na esperança do encontro com mitos e utopias ancorados durante muitos séculos no imaginário ocidental, não era incomum para os europeus de diversas épocas. Mulheres viajantes, porém, que se deslocaram através da Ásia sem a companhia de um marido ou sem vinculação com as estruturas missionárias foram extremamente raras e, ao que se saiba, nenhuma delas deixou uma obra escrita tão densa e volumosa quanto a de Alexandra David-Néel. Nascida na França, nas proximidades de Paris, no ano de 1868, Alexandra era filha de um jornalista francês livre-pensador e de uma belga, católica e monarquista. No decorrer de sua longa existência (pois viveu até as vésperas de completar 101 anos) esteve no continente asiático em várias oportunidades sendo que, em duas ocasiões, suas viagens converteram-se em longas estadias. Com base nas detalhadas referências encontradas nos inúmeros livros e artigos que escreveu é possível calcular que, entre 1891 e 1946, passou, ao todo, cerca de 24 anos no Oriente. Por duas vezes, de 1911 a 1924 e de 1937 a 1946, as permanências foram longas e contínuas, excluindo qualquer retorno à Europa. No presente 1 A Rota da Seda tem sido estudada por pesquisadores tanto no Ocidente quanto no Oriente e, muitas vezes, por equipes de diversos paises, o que tem originado a publicação de trabalhos importantes em várias áreas, como história, geografia, antropologia, religiões comparadas, etc. Para uma idéia do que tem sido feito, e informações bibliográficas, consultar a página do Projeto Rota da Seda: www.silkroadproject.org. PADÊ:estudos em filosofia, raça, gênero e direitos humanos,UniCEUB,FACJS, Vol.2,N.1/07 6 1 ISSN 1980-8887 Carmen Lícia Pallazo - Alexandra David-Néel: uma orientalista percorrendo a Ásia artigo será analisada apenas uma das grandes aventuras de Alexandra, a viagem que a orientalista realizou entre 1911 e 1924 e que lhe valeu a conquista de um imenso prestígio como escritora especializada em Oriente. Antes, porém, uma breve síntese de sua formação e de seus primeiros contatos com a Ásia permite entender melhor uma mulher tão fora dos padrões de sua época. O período de formação Alexandra, nos seus livros e artigos, não se detém muito na descrição de seus anos de adolescência e juventude. Deixa, no entanto, claro, que não sofreu pressões familiares para se adequar aos comportamentos que, no final do século XIX e início do XX, eram esperados de uma jovem pertencente à alta sociedade. O pai, Louis David, havia participado ativamente da revolução de 1848 e em conseqüência se exilara em Bruxelas, onde casou–se, surpreendentemente, com uma católica fervorosa e monarquista, Alexandrina Borghmans, retornando depois de algum tempo a Paris. O casal desfrutava de uma boa situação financeira e Louis mantinha relações com diversas personalidades de sua época, como Victor Hugo e o geógrafo Élisée Réclus. Alexandra era filha única e recebeu uma educação esmerada, dedicando-se desde cedo à leitura.2 Ainda que não especifique uma data, deixa bem claro que desde muito jovem desinteressou-se do cristianismo e foi procurar resposta às sua curiosidade espiritual nas filosofias do Oriente. Aos vinte anos de idade parte para Londres com dois objetivos bem definidos: aperfeiçoar seus conhecimentos de inglês e fazer contato com pessoas que freqüentassem grupos de estudos de caráter “orientalizante”3. Não faz referência, em nenhum de seus livros, a qualquer tipo de oposição familiar às suas viagens. Corria o ano de 1888 e o fato do império colonial inglês estender-se largamente pelo subcontinente indiano favorecia a divulgação, na capital britânica, de relatos sobre aquele pedaço de Oriente, distante, exótico, mas de uma certa forma atingível porque conectado administrativamente à metrópole. Depois de alguns meses na Inglaterra, Alexandra decide instalar-se em Paris para estudar sânscrito. Durante quase três anos, até 2 Diversos dados biográficos sobre Alexandra encontram-se esparsos em sua obra mas duas boas sínteses são: CHALON, Jean. Le lumineux destin d’Alexandra David-Néel, Paris, Librairie Académique Perrin, 1985 e MIDDLETON, Ruth. Alexandra David-Neel: Portrait of an Adventurer, Boston: Shambala, 1999, este último cobrindo apenas os primeiros cinqüenta anos da longa vida da viajante. 3 DAVID-NÉEL, Alexandra. Le sortilège du mystère. Paris: Plon, 1972, p.20-22. PADÊ:estudos em filosofia, raça, gênero e direitos humanos,UniCEUB,FACJS, Vol.2,N.1/07 6 2 ISSN 1980-8887 Carmen Lícia Pallazo - Alexandra David-Néel: uma orientalista percorrendo a Ásia 1891, permaneceu na capital francesa seguindo cursos dos professores Edouard Foucaux e Sylvain Lévi, no Collège de France e na Sorbonne. Sobre Foucaux, escreveu: O professor Foucaux era também especialista em Tibete; ele tinha traduzido a versão tibetana do Lalita vistara (o Gyatcher rolpa). Foi ele quem primeiro me falou do Tibete e eu nem imaginava, naquela época, o papel que este país deveria ter mais tarde na minha vida 4. Alexandra freqüentava o Museu Guimet, recém instalado em Paris e dotado de um grande acervo de arte asiática. Para a jovem orientalista principiante estar naquele recinto era a felicidade suprema. “Eu tinha (…) mantido contato com o museu Guimet e sua biblioteca onde me iniciava maravilhada na literatura e na filosofia da Índia e da China”5. Surge então a oportunidade de uma primeira viagem ao Oriente, tornada possível em virtude de uma herança que recebe de sua madrinha. Será um contato inicial relativamente breve se comparado com as aventuras que virão mais tarde. Entre o final de 1891 e o início de 1892, chegou à Índia, onde permaneceu por dezoito meses. O prestígio da viagem, inusitada para uma jovem sozinha, proporcionou a Alexandra, na volta à Europa, uma série de convites para proferir palestras e também para a publicação de diversos artigos em periódicos franceses, belgas e ingleses.6 Buscando, porém, o sustento numa atividade regular, retornou aos estudos de música que havia iniciado quando muito jovem. Após uma breve passagem pelo Conservatório de Bruxelas, deixou a Bélgica mais uma vez pela França. Em Paris, concluiu o curso de canto lírico e conseguiu uma colocação, em 1895, como primeira soprano na ópera de Hanói, na então Indochina francesa.7 Acaso ou nova busca pelo Oriente? Após a passagem pela Indochina e depois de algumas apresentações pelo interior da França, seguiu para a Tunísia, no ano de 1900, onde foi contratada como diretora artística do Cassino da capital. Em Tunis aceitou o pedido de casamento que lhe fez Philippe Néel, engenheiro francês ali radicado e chefe da Rede de Estradas de Ferro do Norte da África. A cerimônia se realizou em 1904, quando Alexandra tinha trinta e seis anos e Philippe, 4 Idem, p. 83-84. (Traduções minhas nas citações da obra de Alexandra David-Néel). 5 Idem, p. 84. 6 CHALON, Jean. Op. cit., p. 91-92. 7 MARCHAND, Joëlle Désiré. Les itinéraires d’Alexandra David-Néel. Paris: Arthaud, 1996, p.48-49. PADÊ:estudos em filosofia, raça, gênero e direitos humanos,UniCEUB,FACJS, Vol.2,N.1/07 6 3 ISSN 1980-8887 Carmen Lícia Pallazo - Alexandra David-Néel: uma orientalista percorrendo a Ásia quarenta e três. Ambos eram maduros e independentes e o noivo estava consciente de que se unia a uma pessoa que tinha projetos próprios e que dificilmente se contentaria com a função exclusiva de esposa. Essa consciência é que provavelmente permitiu a permanência de um profundo relacionamento entre ambos mesmo durante os longos períodos que Alexandra passou na Ásia. Se o contato físico do casal foi esporádico, a amizade se manteve por muitos anos, até a morte de Philippe. Alexandra, em muitos de seus escritos, deixa bem claro que o casamento tradicional nunca a seduziu. Faz referência à sua mãe como uma figura pouco interessante e com a qual nunca teve afinidade. Demonstra uma clara preferência pelo pai mas não leva em conta o fato de que ele deve ter se beneficiado de um casamento que lhe permitiu tanto a estabilidade em meio ao conturbado cenário político de seu país, quanto a confortável situação financeira proporcionada pela família de Alexandrina Borghmans, que possuía tradição no ramo de negócios de tecidos.8 Aliás a própria Alexandra devia, sem dúvida, a possibilidade das primeiras viagens – e principalmente os estudos em Londres e Paris – à posição da mãe na alta burguesia comerciante da Bélgica. A temporada na qual a orientalista viveria enquadrada em uma vida de mulher tradicional foi, no entanto, bem curta. No mesmo ano de 1904 já deixava Philippe sozinho e viajava para a Europa com o objetivo de tratar dos artigos que publicava com certa regularidade.9 O marido, que provavelmente admirava a independência da mulher, ofereceu-lhe a possibilidade de retornar à Índia para passar alguns meses. Alexandra aceitou e partiu para o que deveria ser mais um período de estudos mas que, na verdade, durou catorze anos.10 A viajante chegou ao subcontinente indiano em 1911 e só voltaria à Europa em 1925, tendo percorrido também o Sikkim, o Tibete, a China, o Japão, e a Coréia. A grande aventura: 1911-1924 Alexandra buscava na Índia as raízes da doutrina budista mas também os ensinamentos védicos, já que seu interesse pela filosofia oriental abarcava todo este conjunto de temas que pretendia desenvolver em artigos e também em um livro que 8 As informações sobre os anos de juventude de Alexandra encontram-se disseminadas em boa parte de seus escritos, mas sem detalhes muito precisos e acompanhadas de poucos comentários. 9 Idem, p. 55-62. 10 DAVID-NÉEL, Alexandra. Journal de Voyage, t.1. Paris: Plon, 1975, p.9-15. PADÊ:estudos em filosofia, raça, gênero e direitos humanos,UniCEUB,FACJS, Vol.2,N.1/07 6 4 ISSN 1980-8887 Carmen Lícia Pallazo - Alexandra David-Néel: uma orientalista percorrendo a Ásia planejava – e que escreveria – sobre a Índia. Mas mesmo demonstrando um grande interesse pela religiosidade vedanta, Alexandra rejeitava com muita firmeza o sistema de castas. Sua aproximação maior com o budismo foi bastante coerente já que o surgimento e a expansão inicial dos ensinamentos do Buda estava intimamente ligada à contestação das estruturas sociais hinduístas que cristalizavam as divisões entre as pessoas de acordo com castas às quais pertenciam de forma hereditária. A orientalista sabia da importância em utilizar documentação original para suas pesquisas bem como da necessidade de dominar perfeitamente o idioma sânscrito, que vinha estudando já há algum tempo mas no qual continuava a se aperfeiçoar. Considerava sua estadia na Ásia como uma viagem de estudos e não uma simples distração: Meu campo de trabalho é sobretudo a Índia pois é sobre a filosofia da Índia que eu vou escrever. (…) é conveniente que eu junte uma boa colheita de documentos sobre a Índia. Eu gostaria de publicar inicialmente um volume sobre o Vedanta, o que já era minha intenção, depois um estudo sobre o yoguismo. E eu gostaria, ainda, de escrever algo sobre os líderes religiosos da Índia contemporânea, Vivekananda e outros, enfim, um estudo sobre os Brahmo reformistas. Eu nado em tudo isto em Calcutá. Vou fazer inúmeros relacionamentos que me servirão muito (…)11 Alexandra escreveu sobre os temas a que se propunha, tanto em livros quanto em diversos artigos, que enviava do Oriente aos jornais europeus.12 Foi uma articulista regular do Mercure de France e do Soir de Bruxelas. Certamente uma das razões de seu imenso sucesso era devido à total imersão no Oriente. Tendo se instalado na Ásia por muitos anos e adotado o budismo como filosofia de vida, era bem mais do que uma observadora de passagem. A viajante não dá maiores detalhes sobre a opção que fez pelo budismo – apenas 11 DAVID-NÉEL, Alexandra. Journal de Voyage t.1, op. cit., p.86. 12 O estudo sobre o pensamento e a prática da religiosidade hinduísta do Vedanta era o objetivo desta viagem de Alexandra à Ásia. Naquele final de século XIX as diversas correntes do hinduísmo estavam sendo difundidas no Ocidente tanto pela curiosidade que despertavam enquanto pensamento exótico, oriundo da atraente colônia britânica da Índia, quanto pela presença marcante de diversos mestres que visitavam a Europa e os Estados Unidos. Uma destas personalidades mais destacadas foi Swami Vivekananda que, em 1893, portanto dois anos após Alexandra ter embarcado para a Ásia, representou o hinduísmo no Parlamento das Religiões, um encontro bastante divulgado e que se realizou em Chicago. Naquela oportunidade, crescia o interesse pelo Oriente o que certamente abria espaço para a repercussão das palavras de Vivekananda. PADÊ:estudos em filosofia, raça, gênero e direitos humanos,UniCEUB,FACJS, Vol.2,N.1/07 6 5 ISSN 1980-8887 Carmen Lícia Pallazo - Alexandra David-Néel: uma orientalista percorrendo a Ásia declara-se budista – mas, desde a juventude, manifestava interesse pelas filosofias orientais e, ao que tudo indica, nunca foi forçada pelos pais a seguir o cristianismo. Em diversas passagens de seus escritos foi sempre muito crítica ao papel dos missionários protestantes e católicos que tentavam converter os asiáticos. Hospedou-se diversas vezes em missões cristãs do Oriente, católicas e protestantes, mas sem esconder sua condição de budista. Na verdade, hospedar-se junto a missionários cristãos europeus era muito comum para aqueles que viajam pela Ásia no século XIX e primeiras décadas do século XX. Alexandra, em mais de uma oportunidade, mostrou-se agradecida tanto a protestantes quanto a católicos que a abrigaram, mesmo sabendo que ela era seguidora dos ensinamentos de Buda. Em certa oportunidade, no interior da China, na cidade de Kuangyüan teve a oportunidade de desfrutar tanto de um jantar na missão protestante inglesa quanto da hospitalidade de um padre católico, que era um chinês convertido. O fato de que ambos não conseguiam conversar fluentemente em virtude da barreira do idioma, no caso o chinês e o latim, únicas línguas que o padre dominava, não a impediu de apreciar as gentilezas do anfitrião. Com graça, Alexandra relata em uma carta ao marido distante: Há dois dias eu estou hospedada na Missão católica onde há só um padre chinês que tenta balbuciar em latim comigo. Tu podes imaginar como a conversa deve ser interessante. A língua de Virgílio não me é particularmente familiar. A Missão está cheia de mulheres, os maridos de algumas delas são oficiais que partiram para a guerra (…) Há muito tempo que eu não me alimentava tão bem. Eu também fui convidada para a Missão protestante, onde há duas inglesas. O jantar lá era melhor servido mas infinitamente menos farto. O padre chinês (...) me deu boas geléias e manteiga em caixa, para a viagem. As inglesas me deram docinhos secos.13 A orientalista traduziu para o francês alguns textos do budismo de vertente lamaísta e também textos do vedanta hinduísta, já que dominava tanto o idioma tibetano quanto o sânscrito, contribuindo, portanto, para a divulgação do pensamento asiático na Europa. Em toda a sua obra, raras são as comparações com os comportamentos europeus e mais raras ainda aquelas nas quais o Ocidente é citado como exemplo positivo em relação ao Oriente. 13 DAVID-NÉEL, Alexandra. Journal de Voyage, t.2, Paris: Plon, 1976, p. 214. PADÊ:estudos em filosofia, raça, gênero e direitos humanos,UniCEUB,FACJS, Vol.2,N.1/07 6 6 ISSN 1980-8887 Carmen Lícia Pallazo - Alexandra David-Néel: uma orientalista percorrendo a Ásia No pequeno reino do Sikkim, que Alexandra visitou e onde permaneceu durante certo tempo para estudar alguns textos budistas, teve a oportunidade de manter uma sólida amizade com o príncipe herdeiro do trono. Ele mesmo estava interessado em discussões de caráter filosófico e trabalhava pela modernização do budismo. Através do príncipe, a viajante teve acesso a algumas autoridades religiosas lamaístas e participou ativamente das atividades do mosteiro de Phodang, onde esteve hospedada. Chegou mesmo a proferir uma palestra para diversos lamas, na qual dava sua própria interpretação de um texto canônico do budismo tibetano.14 Entre 1912 e 1916 a orientalista fez diversas viagens pela região do Himalaia, tendo sempre em mente seu projeto de visitar o Tibete. Relacionava-se com muitos tibetanos que viviam no Sikkim e estudava o idioma e os textos do lamaísmo. Ousou, então, entrar no pais clandestinamente, já que não havia pedido autorização para as autoridades inglesas. Naquele período, o Tibete era considerado um dos lugares mais fechados do mundo, tanto devido a sua própria opção de não permitir o trânsito de estrangeiros sem que houvesse autorização prévia, quanto em função dos interesses ingleses e chineses. Ora um ora outro dos paises que exerciam seu controle sobre o governo de Lhassa tomava medidas para que não houvessem espiões entrando nos territórios sob sua influência, o que era parte do jogo de disputas no quadro das relações internacionais do início do século XX. Alexandra viajava na companhia de Aphur Yongden, um garoto que havia conhecido na comunidade tibetana do Sikkim. Como era habitual na região, contratou-o para acompanhá-la como guia e auxiliar em suas viagens. Com o tempo, o jovem passou a se interessar vivamente pelas leituras e foi alçado à condição de colaborador da orientalista nas traduções que ela realizava e, em seguida, a parceiro de estudos. O percurso até atingir a capital tibetana foi ao mesmo tempo difícil e fascinante, atravessando grande parte do território chinês, já que havia partido de Pequim para realizar tal proeza. Em diversas cartas, Alexandra detalhou para o marido a aventura, que incluía a passagem pelo oásis de Dunhuang, no interior da China. Dunhuang possui um excepcional conjunto de cavernas decoradas com pinturas e esculturas budistas que foram sendo realizadas ao longo do tempo. O oásis, um dos pontos-chave da milenar Rota da Seda era, 14 DAVID-NÉEL, Alexandra. Journal de Voyage, t.1, op. cit., p. 291. PADÊ:estudos em filosofia, raça, gênero e direitos humanos,UniCEUB,FACJS, Vol.2,N.1/07 6 7 ISSN 1980-8887 Carmen Lícia Pallazo - Alexandra David-Néel: uma orientalista percorrendo a Ásia especialmente entre os séculos III e XIV, um local de descanso para os viajantes, que ali faziam uma pausa, abasteciam-se para seguir adiante e, ao encontrar caravanas que vinham de diversas direções, obtinham informações sobre as dificuldades dos caminhos que ainda teriam que percorrer.15 As cavernas começaram a ser utilizadas no século III por monges chineses e estrangeiros, principalmente vindos da Índia mas também de outras regiões do continente asiático, que ali iam se estabelecendo e formando comunidades religiosas. As caravanas encontravam no oásis de Dunhuang não apenas um local de repouso e de apoio material antes de seguir caminho mas também o conforto para o espírito, junto aos ensinamentos não dogmáticos dos monges. E, como era de praxe, pediam e agradeciam a proteção para suas difíceis jornadas, fazendo doações que, ao longo dos anos, foram se concretizando como encomendas de obras de arte, enriquecendo as paredes das cavernas com um impressionante conjunto de pinturas e esculturas. A região certamente impressionou a orientalista, tanto que, em uma de suas belas obras de ficção, escrita junto com Aphur Yongden, fez com que um de seus personagens, o jovem Munpa, passasse pelo mesmo caminho que ela havia percorrido. Sobre o Oásis de Dunhuang, grafado como Tunhwang, escreve: Tunhwang é banhado pela luz, a maravilhosa luz da Ásia Central. Ela entra pelas centenas de alvéolos, prolongados pelas galerias que esburacam a superfície amarela do penhasco. E se, com sua força esgotada, ela não pode atingir as profundezas extremas dos corredores subterrâneos, estes se iluminam com a claridade sobrenatural difundida pela população de Budas com sorriso enigmático e repleto de compaixão. A vista desta inumerável multidão do mundo dos afrescos deixou Munpa [o herói do romance] estupefato (…) em Tunhwang os afrescos não apresentavam de maneira nenhuma o espetáculo da agitação da vida mundana. Budas, discípulos e deuses se mostravam imutavelmente serenos, saídos do turbilhão das atividades irrisórias às quais se dedicam os seres nascidos do desejo (…) Tudo respirava paz em Tunhwang16. O prosseguimento da jornada de Alexandra tinha como objetivo principal chegar até Lhassa. Em Lanzhou, capital da província chinesa de Gansu, a orientalista começou a se organizar seriamente para a grande aventura, pois ali era possível obter maiores informações sobre o difícil percurso que ainda teria que fazer em território chinês antes de 15 FAN, Jinshi,. ”Art of Dunhuang Cave Shrines: A splendid achievment” in ZHANG, Wenbin. (ed.) Dunhuang. Beijing: Dunhuang Research Institute/Morning Publishers, 2000. 16 DAVID-NÉEL, Alexandra e YONGDEN, A. Lama. “La Puissance du néant” in Dieux et démons des solitudes tibétaines. Paris: Plon, 2004, p. 902. PADÊ:estudos em filosofia, raça, gênero e direitos humanos,UniCEUB,FACJS, Vol.2,N.1/07 6 8 ISSN 1980-8887 Carmen Lícia Pallazo - Alexandra David-Néel: uma orientalista percorrendo a Ásia chegar à fronteira tibetana. Naquele ano de 1923 a guerra civil na China fazia muitas vitimas e uma situação de descontrole e de impunidade tornava tanto as estradas principais quanto os pequenos caminhos extremamente perigosos.17 A maneira através da qual a dupla de viajantes conseguiu passar incógnita para evitar maiores problemas com as autoridades inglesas foi bastante engenhosa. A orientalista escolheu o disfarce de peregrina mendicante, que andava pelas estradas na companhia de seu filho, um jovem lama, no caso Aphur Yongden. Carregando um mínimo de bagagem e uma pequeníssima tenda portátil, ambos passaram a acampar, muitas vezes a dormir em grutas nas montanhas, aceitando eventualmente modestas ofertas de alojamento. Na Ásia, a figura de peregrinos, monges ou laicos, que se aventuram pelos caminhos, vivendo apenas de donativos, não chega a causar estranheza, mesmo atualmente. As diversas correntes budistas estimulam comportamentos deste tipo que levam ao mais completo despojamento. Mas o percurso seguido pelos dois viajantes não era fácil e, segundo as palavras de Alexandra, referindo-se a uma das etapas e também ao trajeto em geral: Nós teríamos, mais uma vez, que atravessar uma cadeia de montanhas. Viajar no Tibete obriga a uma verdadeira ginástica dos músculos e dos pulmões. No decorrer de um mesmo dia, subindo e descendo dos vales aos cimos e dos cimos aos vales, passa- se por altitudes muito diferentes. Este exercício, talvez excelente para a saúde, não deixa de fatigar o caminhante (…)18. No entanto, apesar das dificuldades, encontravam pelo caminho a boa acolhida dos habitantes das regiões por onde passavam. Uma peregrina mais velha suscitava atitudes de respeito e merecia proteção. Assim, com muita disposição, os dois viajantes, após oito meses de estrada, chegaram a Lhassa em fevereiro de 1924. Alexandra David-Néel foi, ao que se saiba, a primeira mulher estrangeira a entrar na capital tibetana. A região da cordilheira do Himalaia, com suas disputas de fronteiras, com seus pequenos reinos e com os diversos protetorados das grandes potências não se constituía em uma área especialmente favorável à livre circulação de viajantes. Um fator importante do isolamento era a preocupação dos ingleses, nas primeiras décadas do século 17 Sobre a história da China, ver FAIRBANK, John King e GOLDMAN, Merle. China: uma nova história. Porto Alegre: L&PM, 2006 e também MORTON, W. Scott. China: its history and culture. New York: Mc Graw-Hill, 1995. 18 DAVID-NÉEL, Alexandra. “Voyage d’une parisienne à Lhassa” in Grand Tibet et Vaste Chine. Paris: Plon, 1994, p. 332. PADÊ:estudos em filosofia, raça, gênero e direitos humanos,UniCEUB,FACJS, Vol.2,N.1/07 6 9 ISSN 1980-8887

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her journeys she remained for long periods in India, Tibet, China and Sikkim, but she also Mystiques et Magiciens du Tibet” in Dieux et démons
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