A universidade e o ensino Eunice Ribeiro Durham Núcleo de Pesquisas sobre Ensino Superior DOCUMENTO da Universidade de São Paulo DE TRABALHO 1 / 02 NUPES Núcleo de Pesquisas sobre Ensino Superior Universidade de São Paulo A universidade e o ensino Eunice Ribeiro Durham Conferência realizada na cerimônia de concessão do título de Professora Emérita à Professora Eunice Ribeiro Durham, pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Núcleo de Pesquisas sobre Ensino Superior da Universidade de São Paulo A universidade e o ensino Eunice Ribeiro Durham Equipe do NUPES Carolina M. Bori Diretora Científica Eunice R. Durham Coordenadora de Conselho Pesquisadores Ana Lucia Lopes Elisabeth Balbachevsky Omar Ribeiro Thomaz Auxiliares de Pesquisa Elisabete dos Santos Costa Alves Juliana de Miranda Coelho Carneiro Luciana Alves Luciane da Silva Sebastião Alexandre Marquito do Nascimento Auxiliares Técnicos Regina dos Santos Auxiliares Administrativos Josino Ribeiro Neto Paulo Henrique Marques da Silva Vera Cecília da Silva A UNIVERSIDADE E O ENSINO1 Eunice R. Durham Homenagens me constrangem, especialmente quando envolvem uma apologia da minha carreira. Enquanto ouço os elogios, minha consciência fica me lembrando das críticas que também mereço, das coisas que não fiz, das tarefas nas quais fracassei e me fica difícil aceitar uma apresentação unilateralmente positiva que falseia a visão que tenho de mim mesma. Por outro lado, apesar do constrangimento, esta homenagem particular tem um grande significado para mim, porque ela incide sobre um aspecto da minha vida ao qual sempre dediquei enorme importância, no qual empenhei o melhor de mim mesma e o qual, até hoje, me proporciona as maiores alegrias da vida profissional. De fato, esta homenagem consiste na outorga do título de Professor Emérito. E, apesar da pesquisa me ter trazido maior reconhecimento intelectual, a docência foi sempre minha verdadeira vocação: a tarefa de formar estudantes – não apenas a de lhes ensinar Antropologia, mas a de procurar fazer com que a utilizassem para alargar sua visão de mundo, para assumir uma perspectiva crítica em relação à sociedade e a si mesmos, para adquirir o relativismo necessário na análise da diversidade de comportamentos e valores que constitui a base da tolerância sem a qual não se constitui a cidadania democrática. Já recebi outros títulos e medalhas, mas nenhuma delas contemplou a minha atividade docente. Emociona-me pensar que esta homenagem significa que meu esforço e meu empenho estão sendo reconhecidos, que talvez ela seja uma constatação de que fui e continuo sendo uma boa professora. Mas, uma homenagem como esta implica uma responsabilidade muito grande, pois exige que eu fale alguma coisa que justifique, aos olhos (e aos ouvidos) dos professores do Departamento de Antropologia que a propuseram, à Consagração desta Faculdade que a aprovou e a todos cuja presença aqui demonstra que tenho mais amigos do que pensava, que sou merecedora dela. 1 Discurso proferido por ocasião do recebimento do título de Professora Emérita da Faculdade de Filosofia, Letras, Ciências Humanas da Universidade de São Paulo em 18 de abril de 2002. A escolha do tema foi em si um problema. Falar apenas de Antropologia poderia significar que me considero muito mais um membro do Departamento do que parte da Faculdade. E isto não é verdade. Por isto pensei em falar especificamente sobre a Faculdade de Filosofia, a qual foi o centro da minha vida por mais de 30 anos. Entretanto, minhas relações com a Faculdade se alteraram muito nos últimos 17 anos, que foram dedicados principalmente aos problemas da educação superior brasileira, tanto como tema de pesquisa como de atuação junto ao Governo Federal, tentando implantar uma reforma que julgava necessária. Destes, os sete primeiros anos foram tomados em grande parte pela participação política no movimento de reforma dentro da USP e da nossa Faculdade. Durante os demais, estive mais voltada para o sistema federal e o ensino superior no seu conjunto. As posições que tenho assumido desde então colocaram-me freqüentemente em conflito com a Faculdade, com a USP e com as Universidades Federais. Tenho sido criticada por coisas que fiz e por posições que assumi. É natural, pois é impossível propor mudanças sem causar polêmica e não tenho a pretensão de sempre ter tido razão. Mas fui também atacada por posições que não defendi e por idéias que não esposei. Por isso, não resisti à tentação de usar esta oportunidade para falar sobre a Universidade, a fim de explicitar minhas posições. Com isto, não pretendo que os que me ouvem se convertam às minhas idéias – espero tão somente convencê-los de que os problemas que tenho levantado são relevantes e merecem uma reflexão. Esta reflexão toca o título que hoje recebo porque diz respeito principalmente ao ensino. Parto da convicção de que universidades, que associam ensino e pesquisa, são indispensáveis para o desenvolvimento científico, tecnológico, econômico e social de qualquer país. Só nelas, ao mesmo tempo em que se formam novos pesquisadores, se realizam aquelas investigações cujo resultado é de domínio público e de alto interesse social. No Brasil, seu papel foi e é fundamental. Basta lembrar a contribuição das nossas universidades para o combate das doenças humanas e pragas agrícolas; para o desenvolvimento de novas tecnologias que transformaram profundamente a agricultura, a zootecnia, as construções civis, a extração de petróleo em áreas profundas; para a apropriação e produção de conhecimento 2 necessário para o progresso das telecomunicações, dos meios de transporte e da engenharia genética; para o conhecimento da nossa história e da nossa literatura; para análise dos problemas sociais como a violência, a pobreza e a marginalidade. Isto, só para citar umas poucas. No Brasil, estas Universidades precisam ser públicas porque as particulares são financiadas pela cobrança das matrículas; e, se os alunos concordam em pagar pelo custo do ensino, certamente não concordarão em financiar a pesquisa – aliás, nem terão recursos para isto. Por outro lado, as mantenedoras, que lucram com o ensino, não têm interesse em investir em pesquisa. A pesquisa exige alto investimento e a perspectiva de ganho monetário é muito incerta. Em nenhum país do mundo, universidades do tipo da USP se sustentam contando apenas com recursos das matrículas. Há, portanto que defender as universidades públicas brasileiras e contribuir para o seu aprimoramento. Pelo fato mesmo de serem tão necessárias, faz parte desta defesa a preocupação com os problemas que elas enfrentam e a busca de soluções para superá-los. O termo universidade, no Brasil, é praticamente sinônimo de ensino superior. Uma das diferenças básicas entre minha posição e a de meus colegas é o fato de eu reconhecer que, nem no Brasil nem em nenhum outro país o ensino superior se reduz a universidades. Meu objeto de reflexão é, portanto, o lugar das universidades num sistema de ensino superior. Para se compreender a natureza mais ampla destes problemas é importante situar a situação brasileira no contexto mundial. De fato, o desenvolvimento do sistema universitário obedece a forças sociais muito amplas e responde a transformações globais da economia e da sociedade que se manifestam, embora de forma diferenciada, nos diferentes países. As respostas encontradas e os caminhos tomados em cada um deles variam conforme o contexto nacional, mas os grandes problemas são em grande parte os mesmos. Em todos os países, vivemos ainda dilemas que explodiram em 1968 e promoveram, em todos eles, uma extraordinária mobilização dos estudantes. Para entendê-los, é necessário ver 1968 como a eclosão de uma segunda revolução universitária. A primeira foi mais pacífica, mais lenta e durou cerca de um século. Consistiu na incorporação da pesquisa científica como parte inerente da vida universitária. Esta revolução iniciou-se na Alemanha, no começo do século XX e propagou-se em maior ou menor rapidez 3 para outros países, embora não em todos. Na União Soviética e na França, por exemplo, este modelo não foi adotado. No Brasil, a associação entre ensino e pesquisa se iniciou com um século de atraso, na década de 1930, com a criação das primeiras universidades e com grau variável de sucesso. A USP é o melhor exemplo de implantação bem sucedida deste modelo. Antes disto, isto é, até meados do século XIX, o sistema de ensino superior compreendia um número pequeno de universidades e outras instituições de formação profissional dedicadas exclusivamente ao ensino, que atendiam uma parcela muito reduzida da população jovem. As universidades destinavam-se a formar os quadros das burocracias do Estado e da Igreja, a habilitar uns poucos profissionais liberais e a constituir uma minoria de intelectuais. Seu custo, em termos de percentagens dos orçamentos nacionais, era muito reduzido, restringindo-se ao pagamento de alguns professores em tempo parcial e à manutenção dos edifícios e das bibliotecas. A pesquisa se revelou uma atividade dispendiosa, exigindo investimentos em infra- estrutura, que compreendiam laboratórios e equipamentos bastante caros. Além do mais, a pesquisa exigia pessoal altamente treinado e qualificado, integralmente dedicado à universidade, o que implicava salários mais elevados do que o dos antigos professores, que aliavam o ensino ao exercício de uma profissão liberal. Além disso, a institucionalização da pesquisa teve como corolário a formação de pesquisadores profissionais, o que levou, mais tarde, à institucionalização da pós-graduação. Apesar dos custos adicionais que gerou, o desenvolvimento da pesquisa nas universidades tornou-se um elemento fundamental e indispensável da revolução científico- tecnológica, pois constitui parte integrante do processo de produção de conhecimentos que é próprio da sociedade moderna e da formação de recursos humanos capazes de gerá-los e difundi-los. Foi por isso absorvido com maior ou menor facilidade enquanto o sistema em seu conjunto permaneceu limitado e a introdução da pesquisa foi lenta e gradual. Se a pesquisa científica alterou a natureza e ampliou os custos do sistema universitário, não provocou necessariamente a ampliação ou multiplicação das instituições e do número de alunos. Isso só começou a ocorrer em grande escala a partir do final da 2ª guerra mundial e constitui a segunda grande revolução do sistema de ensino superior. Esta extensão do sistema decorreu do aumento da demanda, ocasionado pela transformação na estrutura produtiva da sociedade, com a diminuição dos setores primário e secundário da 4 economia e a ampliação do terciário. A expansão do trabalho não manual em relação ao manual valorizou a escolarização mais avançada e se tornou fundamental para a ascensão social das classes médias. Esta pressão por expansão das vagas ficou muito clara, no Brasil e na Europa, com a movimentação estudantil da década de 1960, que precedeu a grande expansão do ensino universitário da década seguinte. Desta forma, em vez de uns poucos estabelecimentos dedicados a educar uma pequena elite, passou a ser necessário um número cada vez maior de instituições, para abrigar uma porcentagem crescente da população jovem. Simultaneamente, o próprio desenvolvimento tecnológico aumentou exponencialmente o custo da pesquisa, exigindo equipamentos cada vez mais complexos e caros. Mas não se trata apenas de um aumento de número de alunos. A demanda se tornou cada vez mais heterogênea e diversificada. Não se pode, de fato, pensar em democratizar o acesso ao ensino superior multiplicando o número de advogados, arquitetos, médicos, engenheiros e cientistas que não poderão ser absorvidos pelo mercado de trabalho. A democratização exige uma multiplicação de cursos e carreiras que tornam as atividades de ensino extremamente complexas, exigindo um corpo docente igualmente diversificado. A evolução não se restringiu a essas duas alterações. As instituições de ensino superior foram progressivamente absorvendo novas funções. As grandes universidades incluem, hoje, entre suas atividades, além do ensino de graduação e da pesquisa: oferta de cursos de treinamento, aperfeiçoamento e reciclagem para adultos com curso superior concluído ou incompleto; formação avançada em nível de pós-graduação; cooperação com o setor produtivo para o desenvolvimento tecnológico; serviços os mais diversos de assessoria a órgãos públicos e privados; colaboração na melhoria da qualidade do ensino básico em sua relação com o desenvolvimento de uma cidadania responsável e as necessidades do mercado de trabalho; prestação de serviços de saúde, especialmente através dos hospitais universitários; ação no campo cultural, inclusive mantendo museus, orquestras, rádios, televisão, jornais e revistas. Grandes universidades multifuncionais, que desenvolvem todas estas atividades, são essenciais à sociedade moderna. Mas, sua criação e manutenção implicam aumentos constantes do custo absoluto e relativo do sistema de ensino superior, que passa a absorver percentuais cada vez maiores dos fundos públicos, o que é facilmente constatável no caso brasileiro. Seu crescimento, por isso mesmo, está estreitamente associado ao desenvolvimento 5 econômico e ao aumento das receitas públicas. Se, mesmo nos países desenvolvidos, a conjugação de pesquisa e ensino superior de massa provocou uma crise de financiamento, ainda com mais razão no Brasil, onde todas as novas funções e o correspondente aumento de custos se concentram, quase que exclusivamente, nas universidades públicas. A raiz profunda da crise mundial reside, portanto, em grande parte, no fato de que o custo, tanto em termos financeiros como de recursos humanos, de instituições de ensino que sejam grandes centros de pesquisa competitivos em nível internacional e atendam a inúmeras outras funções, é demasiado elevado para que este modelo possa ser multiplicado em número suficiente de modo a absorver toda a demanda por formação de nível superior. No Brasil, a crise estrutural, que é semelhante a dos outros países, foi agravada por uma crise conjuntural. Enquanto a economia crescia em ritmo acelerado, foi possível um aumento constante dos investimentos públicos na educação superior. Com o início da crise econômica dos anos oitenta, os recursos diminuíram e o sistema estagnou. Nos países desenvolvidos, a busca de soluções para este problema, que neles se manifesta de forma menos dramática, tendeu a seguir três orientações: De um lado, estabeleceu-se uma pressão, por parte dos órgãos financiadores, públicos ou privados, no sentido de uma racionalização dos gastos e de uma avaliação muito mais estrita da relação custo - benefício. Isso se aplica tanto à pesquisa como ao ensino, pois, face à pressão da população por acesso à educação superior, tornou-se necessário exigir das universidades uma utilização mais intensa de seus recursos humanos, aumentando o número de estudantes atendidos. Uma das implicações desta política é a exigência de modernização do sistema gerencial das universidades, pois, dada a complexidade crescente de suas atividades e o vulto dos recursos que maneja, é impossível que sejam administradas com eficiência sem o uso de técnicas e instrumentos próprios das grandes organizações. Outra é a introdução de diferentes sistemas de avaliação do desempenho acadêmico, que fazem parte deste esforço de racionalização da aplicação dos recursos públicos. De outro lado, ocorreu espontaneamente, ou foi incentivada oficialmente, uma diversificação do sistema de ensino superior. Além de universidades tradicionais, subsistiram e floresceram, ou foram criados outros tipos de instituições: institutos tecnológicos (como os Fachhochschulen alemães), escolas especializadas de formação profissional de alto nível 6 (como as Grandes Écoles francesas), ou institutos de formação geral básica (como os Colleges norte-americanos), nos quais a atividade de ensino é preponderante e a pesquisa mais de cunho pedagógico ou aplicado. A verdade é que, se é impossível manter instituições nas quais se ministra ensino de boa qualidade, sem que os alunos se familiarizem com a prática da investigação, é perfeitamente possível fazê-lo sem os custos de manutenção da pesquisa básica ou tecnológica de ponta e sem que a maioria dos quadros docentes trabalhe em tempo integral. Boas instituições de ensino também não precisam absorver o conjunto de funções que as grandes universidades incorporam. Inversamente, é possível desenvolver uma alta produtividade científica em instituições especializadas, nas quais o ensino ocupa um espaço pequeno. Esta questão merece uma consideração mais detalhada e voltaremos a ela mais tarde. Simultaneamente, ocorreu um movimento de diversificação das fontes de financiamento. Isso pode envolver a captação da poupança privada familiar, através da cobrança de taxas escolares. Mas este não é o único mecanismo, nem tem sido de utilização universal, pois a diversificação das fontes de recursos, inclusive das próprias fontes públicas, prende-se muito à questão da diversificação de funções. Muitos dos papéis que as universidades são levadas a desempenhar guardam uma relação muito indireta com o ensino e não podem ser inteiramente sustentadas, especialmente no caso brasileiro, com recursos, já por si limitados, destinados à educação pública. Isso é particularmente verdadeiro no caso de atividades assistenciais (como as dos hospitais de ensino), ou culturais (como é o caso de museus ou orquestras), que, freqüentemente, foram absorvidas pelas universidades pela incapacidade de outros setores do poder público ou da sociedade civil de mantê-los adequadamente. A ampliação das funções das universidades para além do ensino de graduação e pós-graduação deve ser acompanhada da captação de recursos outros que não os destinados à educação, analisando-se, inclusive, a relevância e a necessidade de cumprir algumas dessas funções, para decidir quais devem ser mantidas e quais devem ser ou eliminadas ou repassadas para outros órgãos públicos, ou ainda sustentadas com recursos privados ou comunitários. Cursos de atualização para profissionais já qualificados, por exemplo, podem ser auto-sustentados através da cobrança de matrícula (com bolsas para os de renda mais baixa). Finalmente, dada a relevância de muitas áreas de pesquisa para o desenvolvimento tecnológico, há uma tendência crescente para financiá-las, pelos menos parcialmente, com recursos das empresas privadas. 7