a folha Boletim da língua portuguesa nas instituições europeias http://ec.europa.eu/translation/portuguese/magazine N.º 50 — primavera de 2016 E PLURIBUS UNUM: ENCONTROS E DESENCONTROS LUSO-BRASILEIROS (PARTE I) — Jales J. da Rocha Filho ............................... 1 «CICLO VICIOSO» OU «CÍRCULO VICIOSO»? — João Pedro Gomes .............................................................................................. 5 EIIL/DAEXE — GEOGRAFIAS E TRANSLITERAÇÕES — Paulo Correia .......................................................................................... 7 TENDÊNCIAS DA LÍNGUA PORTUGUESA: AS INÓCUAS E AS INÍQUAS (III) — Jorge Madeira Mendes ............................................ 10 NA MELHOR NÓDOA CAI O PANO — João Pedro Gomes … ........................................................................................................ 13 MALTA — FICHA DE PAÍS — Jales J. da Rocha Filho; Paulo Correia; Catherine Camilleri .................................................... 15 E Pluribus Unum: encontros e desencontros luso-brasileiros (parte I) Jales J. da Rocha Filho Tradutor/intérprete — Senado Federal do Brasil Assim como nas demais línguas de alcance internacional, existe grande variação no português falado mundo afora. Embora às vezes causem estranhamento, as diferenças raramente impossibilitam a comunicação: os encontros e as convergências tendem a superar as discrepâncias e os desencontros. Espantoso (e triste) seria se, nos quatro cantos do mundo onde se utiliza o idioma de Camões, houvesse total homogeneidade. A diversidade, longe de separar os lusófonos, enriquece-lhes o idioma (e, por vezes, diverte-os). Trata-se de um patrimônio (património) a ser cultivado e compartilhado. Na minha experiência de cinco meses como estagiário na Direção-Geral da Tradução da Comissão Europeia — um franco-brasileiro rodeado de «belgo-portugueses» — confrontei-me com algumas dessas diferenças. Nos parágrafos abaixo, citarei alguns termos e expressões que me saltaram aos olhos (e aos ouvidos) ao longo da minha estada em Bruxelas. Não se trata de uma listagem exaustiva, pois para isso já existem dicionários impressos(1) e listas na Internet, mas de um apanhado breve e subjetivo ligado à minha própria vivência. Para facilitar a leitura e destacar a origem das palavras e expressões, sublinhei as variantes tipicamente brasileiras. Convém ressaltar que, em muitos casos, é possível empregar determinado termo em ambos os lados do Atlântico — o que pode mudar é a frequência de utilização. Isso mostra que não estamos falando (a falar) de entidades totalmente estanques, mas de duas faces de uma mesma moeda — embora no momento o euro esteja um pouquinho (um bocadinho) à frente do combalido real… Saliento também que, apesar do tom não raro jocoso, a minha intenção não é zombar de nenhuma das variantes do idioma, mas celebrá-las e brindar ao prazer de estar em contato (contacto) com a pátria-mãe, Portugal, algo que me trouxe enorme satisfação na Bélgica e de que sinto saudades no Brasil. a folha N.º 50 – primavera de 2016 Transportes Em Portugal, apanha-se na paragem o elétrico, o autocarro, o comboio ou o metro. No Brasil, pega-se na parada/ponto o bonde, o ônibus, o trem ou o metrô. Mas todos acabam por chegar ao mesmo lugar (sítio)(2), sem maiores atropelos, estresse (stress) ou paradas (paragens) cardíacas. O cais da estação no Brasil é a plataforma — para os brasileiros, cais é só o do porto(3). Os vagões do metropolitano são chamados carruagens em Portugal, ao passo que no Brasil as carruagens são, em regra, puxadas por animais. Nas ruas brasileiras, o peão é o pedestre, que pode ser um peão (trolha) ou mesmo um caipira (saloio), mas não necessariamente... Caminhão no Brasil não é só um caminho grande, mas também o camião(4) português, dirigido (conduzido) por um caminhoneiro (camionista), que detém uma carteira de habilitação (carta de condução) especial, toma muito cuidado ao fazer marcha a ré (marcha-atrás), gosta de dar carona (boleia) aos amigos e detesta pagar pedágio (portagem). Em Portugal, os aviões descolam e aterram, no Brasil, decolam e aterrissam. Felizmente todos também levantam voo e pousam — e raramente precisam amerissar (amarar) ou alunissar (alunar)! No Brasil o que pode descolar é a retina. E descolado é quem segue a última moda. Aterrador na terra de Vera Cruz é só o preço da passagem (bilhete) em tempos de crise… Topônimos (topónimos) e afins Do ponto de vista luso-brasileiro, há um país hermafrodita. Afinal, um brasileiro vai à ilha Maurício e um português, à ilha Maurícia(5). Além disso, os brasileiros contentam-se com o Himalaia no singular (como em francês), já os portugueses acham pouco e falam de Himalaias no plural (como em inglês)(6). Vai ver (se calhar), os portugueses é que têm razão, pois tanto brasileiros quanto portugueses falam de Alpes, Andes ou Apalaches… O maior deserto do mundo é para os brasileiros o Saara, mas os portugueses dão-lhe o simpático nome de uma moça (rapariga): Sara. A acentuação tônica (tónica) também dança segundo uma música ligeiramente diferente nalguns casos: Madagascar (Madagáscar), Zimbábue (Zimbabué) ou Havaí (Havai). Para um português, israelita abrange tanto a nacionalidade quanto a religião, ao passo que no Brasil israelense é o cidadão de Israel e israelita é sinônimo (sinónimo) de judeu(7). Por falar em hebreus, morei em Antuérpia, em Flandres. Mas para os portugueses, vivi na Flandres. Por outro lado, visito o Marrocos, o Timor, mas um português visita Marrocos e Timor. Contudo, um compatriota de Saramago vai ao Mónaco e ao Ruanda, enquanto um conterrâneo de Guimarães Rosa vai a Mônaco e a Ruanda. Irã em Portugal é Irão, Amsterdã é Amesterdão, Roterdã é Roterdão e Vietnã é Vietname. Mas felizmente todos entraram em acordo para o Paquistão, o Sudão e o Afeganistão. Ufa! Vestuário e esportes (desportos) Um atleta no Brasil jamais usaria sapatilhas para jogar bola (jogar à bola) ou pular corda (saltar à corda), somente para dançar balé (ballet). Na verdade, usa tênis (ténis), que também é o calçado ideal para correr na esteira (passadeira) da academia (ginásio) ou na quadra (campo) de basquete (básquete). No judô (judo) ou no totó (matraquilhos), pode até permanecer descalço, pois assim não perde tempo com cadarços (atacadores) nem meias — que no Brasil são sempre meias (tanto curtas quanto longas) e jamais peúgas. Em seguida, o esportista (desportista) troca de roupa no vestiário (balneário), toma uma ducha (um duche) e usa xampu (champô) e desodorante (desodorizante). Na terra de Machado de Assis, balneário é uma cidade costeira, como o renomado Balneário Camboriú, em Santa Catarina. Ninguém jamais usaria sabrinas em terras tupiniquins: Sabrina é só nome próprio, assim como Almeida não passa de um sobrenome (apelido) e nunca é atribuído a um varredor de rua, o gari. Um homem que traja smoking usa um laço em Portugal, mas uma gravata-borboleta no Brasil. Borboleta em Portugal, além do inseto, é a catraca (torniquete) que dá acesso a um recinto. Uma brasileira jamais usaria cuecas, que estão reservadas aos homens, mas calcinhas. E mesmo no auge do inverno belga, jamais me passaria pela cabeça usar camisola, que no Brasil é uma roupa de dormir feminina. O que visto, quando estou morrendo de frio (cheio de frio), é um suéter. Afinal, camiseta (t-shirt) é apenas para os dias ensolarados (soalheiros/solarengos)(8) do verão austral, e macacão (fato-macaco) é para trabalhar no jardim, algo impensável para um citadino como eu, ainda que vegano e natureba (adepto da alimentação natural). 2 a folha N.º 50 – primavera de 2016 Culinária No Brasil, o legume chamado pimentão é o pimento português. E piripíri na terra de Viriato é um condimento, ao passo que além-mar lembra o termo piriri, sinónimo (sinônimo) informal para diarreia… Gergelim (palavra de origem árabe) é o termo corrente no Brasil para o sésamo português, tanto que o gomásio(9) lusitano atende no Brasil pelo nome de gersal (mistura de gergelim e sal)(10). Bala no Brasil não é só o projétil de uma arma de fogo, mas também um inocente rebuçado. O espaguete, originalmente italiano (spaghetti), no Brasil não foi agraciado com um «r» como em Portugal (esparguete). A curgete portuguesa (filha da francesa courgette) é a abobrinha brasileira. Ademais, na gíria (calão)(11) do Brasil, falar abobrinha é dizer bobagens/besteiras (disparates/tolices). Pobre e injustiçada abobrinha! Mas é a vida: quem nasceu para curgete nunca chega a ser aspargo (espargo)... Macarrão é o termo mais amplo no Brasil para fazer referência às massas, ao passo que em Portugal macarrão diz respeito a um tipo específico, chamado de parafuso (ou fusilli) no Brasil. Enquanto um brasileiro se contenta com a palavra semente, os portugueses têm nomes específicos para as de uva (grainhas) e as de abóbora (pevides), algo desconhecido na terra de Jorge Amado. Contudo, fazemos no Brasil a clara distinção entre uma bebida, alcoólica, e uma pessoa, alcoólatra(12)… E os sinônimos (sinónimos) para a prosaica tangerina portuguesa abundam nos trópicos: mexerica, bergamota, poncã ou mimosa(13), segundo o gosto do freguês ou a região do país. No Brasil a barriga da perna também se chama batata da perna. Mas sem canibalismo, obviamente... E tal como na metáfora do copo meio cheio ou meio vazio, o leite meio gordo de Portugal é semidesnatado no Brasil. Afinal, tudo é questão de ponto de vista... Já o leite magro lusitano é desnatado nos trópicos e o leite gordo português tem um nome mais positivo no Brasil: integral. Afinal, as patricinhas (betinhas) e os mauricinhos (betinhos) de Ipanema, que adoram exibir o corpo na orla (à beira-mar), têm ojeriza (aversão) a qualquer menção a gordura... Galicismos e anglicismos Há brasileiros que acham os portugueses afrancesados por dizerem pequeno-almoço (petit déjeuner) em vez de café da manhã ou desjejum (dejejum), banda desenhada (bande déssinée) em vez de história em quadrinhos, Código da Estrada (Code de la route) em vez de Código de Trânsito ou bastonário (batônnier) da Ordem dos Advogados em vez de presidente. Todavia, são os brasileiros que dizem vitrine (e não montra), Papai Noel (Père Noël) em vez de Pai Natal, todo o mundo (tout le monde) em lugar de toda a gente, garçom (garçon) em vez de empregado de mesa e polonês (polonais) em lugar de polaco… Isso mostra que é temerário generalizar, pois a língua é um fenômeno (fenómeno) complexo demais (demasiado complexo) para análises redutoras e simplistas. Em todo o caso, nota-se grande influência do inglês (norte-americano) no Brasil nas últimas décadas, ao passo que em Portugal em muitos casos o francês prevaleceu. No Brasil, por exemplo, fala-se sobretudo de lavagem de dinheiro (money laundering), em Portugal fala-se mais de branqueamento de capitais (blanchiment de capitaux); no Brasil os alimentos sem pesticidas são conhecidos como orgânicos (organic), em Portugal, como biológicos (biologiques); no Brasil fala-se de concreto (concrete), em Portugal, de betão (béton); no Brasil há carros conversíveis (convertible), em Portugal, descapotáveis (décapotables); no Brasil usamos controle remoto (remote control), em Portugal, prefere-se o telecomando (télécommande); no Brasil assistimos a transmissões ao vivo (live), em Portugal, em direto (en direct). Estudos Em homenagem ao meu colega estagiário Carlos Dias Araújo, português de Ponte de Lima (embora nascido no Brasil), com quem dividi a sala (gabinete) por cinco meses e que concluiu há pouco a sua tese de Biologia, segue-se uma frase com a respetiva «tradução» de PT-BR para PT-PT. O bolsista, depois de pagar taxas escolares caras, participar de muitos treinamentos, fazer incontáveis lições de casa/deveres de casa, virar inúmeras noites, revisar diversos artigos científicos e sobreviver à banca, terminou o doutorado e pretende virar pesquisador, embora tema não ter muitas chances em Portugal. O bolseiro, depois de pagar propinas caras, participar em muitas formações, fazer incontáveis trabalhos para casa, fazer inúmeras diretas, rever diversos artigos científicos e sobreviver ao júri, 3 a folha N.º 50 – primavera de 2016 terminou o doutoramento e tenciona tornar-se investigador, embora tema não ter muitas hipóteses em Portugal. Investigador no Brasil seria o da Polícia Civil (Judiciária), propina seria um suborno e júri seria o dos tribunais. Além disso, banca no Brasil jamais seria o sistema bancário… (Ainda que os banqueiros no mundo inteiro ponham banca — se julguem superiores.) Linguagem administrativa/jurídica Preencher um cadastro no Brasil é uma das atividades mais corriqueiras em qualquer banco ou loja, mas em Portugal a expressão é usada principalmente (nomeadamente) no contexto policial: cadastrado é um criminoso perigoso. Concurso público no Brasil é apenas o processo seletivo para candidatos a servidor público, nunca uma licitação para escolher uma empresa para determinado projeto governamental. O edital de licitação é o caderno de encargos, por meio do qual o público toma ciência (conhecimento) das condições estipuladas para o processo licitatório. Autarquia no Brasil é um órgão auxiliar do Estado(14), e autarca nunca faz menção a uma autoridade municipal — a não ser que se trate de um tirano (o que por vezes até existe…). As eleições autárquicas são, portanto, as eleições municipais no Brasil. O prefeito no Brasil é o presidente da câmara municipal em Portugal e a câmara de vereadores (ou câmara municipal) no Brasil é a assembleia municipal em Portugal. Tribunal de justiça é o equivalente brasileiro do tribunal da relação(15). No Brasil a pessoa física é sempre física (ou natural), mas nunca singular, e as decisões vinculativas são vinculantes, ainda que mirabolantes. Em bom juridiquês brasileiro, prolatar uma sentença é proferi-la, cláusula pétrea diz respeito aos limites materiais de revisão, a pomposa oitiva é uma banal audição e caput é o enunciado principal do artigo de uma lei (em latim é mais chique...). O Ministério das Relações Exteriores no Brasil é o Ministério dos Negócios Estrangeiros em Portugal e nos trópicos o Ministério das Finanças chama-se Ministério da Fazenda, como outrora em Portugal(16). Fazenda no Brasil é também uma quinta ou herdade. E como não faltam fazendeiros (proprietários de herdades) endinheirados na Pindorama(17), talvez a conexão ministerial não seja mera coincidência... A delegacia de polícia no Brasil corresponde à esquadra em Portugal — as esquadras brasílicas são só as formadas por navios. No Congresso Nacional do Brasil (formado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal), realizam-se muitas audiências públicas (para poucos resultados). Já na Assembleia da República de Portugal, organizam-se audições públicas. Nas eleições brasileiras, há segundo turno (segunda volta) quando nenhum candidato alcança votação majoritária (maioritária). Não obstante, como ainda não há terceiro turno, há quem peça o impeachment (destituição) dos desafetos (adversários), mesmo com base em grampos (escutas telefónicas) controversos. Na configuração administrativa do Brasil, os estados são divididos em municípios e os municípios, em distritos. Em Portugal, os distritos estão acima dos municípios, que por sua vez são formados por freguesias(18). No Brasil só índios moram em aldeias: tal termo remete necessariamente a uma povoação indígena constituída de ocas (cabanas cobertas de palha)(19). Seja onde for, o imposto de renda (imposto sobre o rendimento) é motivo de pesadelos para quem enfrenta a inflação crescente e paga um aluguel(20) (renda) salgado ao proprietário (senhorio). O melhor é sonhar com a aposentadoria (reforma ou aposentação)... Como pude perceber (aperceber-me) ao longo do meu estágio e das minhas interações anteriores com o português europeu, há imensa diversidade na unidade lusófona, tanto em aspetos ortográficos (apesar da aproximação proporcionada pelo acordo), léxicos e morfossintáticos quanto em questões culturais. Não obstante, basta uma dose de desenrascanço português ou de jeitinho brasileiro para conseguir entender (perceber) as nuances e sutilezas (subtilezas) de cada variante, bem como a sua beleza e o seu colorido, que tanto sublimam a «última flor do Lácio»(21). [email protected] (1) Exemplos: Vilar, M., Dicionário Contrastivo Luso-Brasileiro, Editora Guanabara, Rio de Janeiro, 1989; Prata, M., Schifazfavoire: Dicionário de Português, Editora Planeta do Brasil, São Paulo, 2014; Louceiro, C., Ferreira, E., Cruz, E., 7 Vozes: Léxico Coloquial Do Português Luso-Afro-Brasileiro: Aproximações, Editora Lidel, Lisboa, 1997; Pinho, A. C. de, Variantes Cariocas da Língua Portuguesa, Chiado Editora, Lisboa, 2012; Simas Filho, R., Dicionário Português-Português Lá & Cá, Editora Thesaurus, Brasília, 2011. 4 a folha N.º 50 – primavera de 2016 (2) Sítio no Brasil é uma pequena quinta, como no Sítio do Pica-Pau Amarelo. (3) Em Portugal tem-se usado cada vez mais a palavra plataforma nesse contexto, quiçá pela tradução do inglês platform, que vem suplantando a tradução do francês quai. (4) Caminhão-pipa no Brasil é o camião-cisterna em Portugal. (5) Alguns portugueses usam o plural: ilhas Maurícias. (6) Esta é a tendência atual em Portugal, onde no passado também já se utilizou com mais frequência o singular (Himalaia). (7) No Brasil, palestiniano é palestino. A propósito, ambas as formas são possíveis em Portugal, apesar da nítida preferência dos meios de comunicação portugueses por palestiniano, devido à influência do inglês Palestinian e do francês palestinien. (8) O vocábulo solarengo é totalmente desconhecido no Brasil. Aliás, apesar da utilização frequente em Portugal, poucos dicionários do país dão a solarengo a acepção de ensolarado, antes associam esse adjetivo ao substantivo solar (moradia de família nobre). Soalheiro também é uma palavra de rara utilização no Brasil. (9) Gomásio vem do japonês gomashio. (10) Misturar nomes é uma velha tradição brasileira, principalmente na região Nordeste do país: não é raro encontrar pessoas chamadas Franciscleide ou Clariosvaldo. (11) A gíria portuguesa é o jargão brasileiro (linguagem específica de determinado grupo sociocultural ou profissional), e a gíria brasileira é o calão português. (12) Exceto na expressão Alcoólicos Anônimos (Anónimos), calcada diretamente do inglês Alcoholics Anonymous. (13) Bergamota é o termo preferido no Rio Grande do Sul, mimosa (ou laranja-mimosa), no Paraná. Mexerica e tangerina são termos usados no restante do país. A palavra poncã, de origem japonesa, aplica-se a um tipo específico de tangerina, mas alguns brasileiros utilizam-na indistintamente. Mandarina é outro termo usado em certos locais do Brasil. (14) Exemplos de autarquias no Brasil: o Banco Central, as agências reguladoras, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) e órgãos como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico (CNPq) e as universidades federais. (15) Embora os tribunais no Brasil se chamem oficialmente tribunais, não é raro referir-se a eles como cortes, por influência de court (do inglês) e cour (do francês). (16) O Ministério das Finanças apareceu em Portugal com a implantação da República em 1910. (17) Pindorama é um sinónimo de origem indígena para o Brasil. (18) No Brasil, freguesia tem a ver com as paróquias católicas ou a clientela de um comerciante. (19) Um núcleo habitacional de dimensões reduzidas no Brasil é um povoado ou, na linguagem corrente, uma cidadezinha. (20) No Brasil aluga-se tanto um bem imóvel (casa) quanto móvel (carro). E não se emprega a grafia aluguer, mas aluguel. O verbo arrendar não é muito utilizado na linguagem corrente do Brasil e a palavra renda diz respeito sobretudo aos rendimentos de uma pessoa, não ao valor pago pela ocupação de um imóvel ou de terras de cultivo. (21) Primeiras palavras do poema «Língua Portuguesa», do poeta brasileiro Olavo Bilac (1865-1918). «Ciclo vicioso» ou «círculo vicioso»? João Pedro Gomes Antigo tradutor da Direção-Geral da Tradução — Comissão Europeia Há pontos [e já começa a Geometria a meter-se onde não é chamada...] da língua em relação aos quais não vale a pena querer seguir nem a lógica única que possa haver nem uma lógica entre várias possíveis. Também não interessa tentar mostrar que o presente é apenas uma deturpação do passado. Ou antes: podemos ter consciência do que se foi passando, perceber melhor uma certa evolução em termos diacrónicos. Mas não é essa melhor perceção que vai convencer os falantes de hoje, num mesmo momento (sincrónico), a voltar a falar como num antigamente que desconhecem. Um exemplo: «círculo» pode provir (como diminutivo) de «circo» (como «cana-cânula», «pelica-película», etc.) e ter depois dado origem a «*circlo => ciclo», tendo havido certamente momentos em que duas destas três formas eram pronunciadas indiferentemente como alternativas. (Digo «pronunciadas» porque durante milhares de anos quase ninguém sabia escrever — e a expressão oral está muito mais sujeita a variações do que a expressão escrita, por falta de suporte visível.) 5 a folha N.º 50 – primavera de 2016 Além disso, as línguas faladas não são ciências — e as escritas também não, senão vivíamos sem literatura. Assim, podem existir «círculos literários», onde não é obrigatório falar de geometria; «círculos bem informados» de todas as formas e feitios; «círculos culturais» com mais ou menos cultura (geométrica ou outra), etc. E, por exemplo, no tempo do papel, todas as circulares que costumavam ser afixadas eram em papel A4, ou seja, eram circulares sistematicamente retangulares — sem nunca ninguém ter morrido por causa disso. Todo este (longo) introito para voltar ao título: dizemos «ciclo» ou «círculo» vicioso? Por mim, não vejo como é que um círculo pode ser vicioso — a não ser que deixe de ser círculo: se tem vícios, talvez fique rombudo ou ovalado, deixando os pontos extremos de ficar à mesma distância do centro. Por outro lado, se é círculo e roda, em torno do centro, não tem fases nem sai de onde está. Já com o ciclo a situação é diferente, pois é normalmente constituído por várias fases ou etapas que visam passar a um nível seguinte, já superior. Volta-se então a passar pelas diversas fases do ciclo, e tenta-se de novo subir ainda mais, e assim sucessivamente, avançando sempre. Porém, quando há alguma coisa, numa das etapas, que contém um vício ou erro e funciona mal, impedindo o avanço e levando sempre à repetição do mesmo caminho e do mesmo erro, nesse caso o ciclo é vicioso, tem esse vício, esse erro que não lhe permite avançar para a fase seguinte. É como se no ensino, ao fim do 1.º ciclo, cada aluno, por um vício qualquer do sistema, voltasse ao 1.º ano do mesmo ciclo, em vez de passar ao 1.º ano, sim, mas do ciclo seguinte. Ora, ainda bem que o ensino não prevê ciclos desses — pois seriam como círculos a andar à roda sem sair do sítio. E não vale a pena argumentar-se (?) que «ciclo» e «círculo» vêm da mesma origem no latim, pelo que tanto faria dizer uma coisa como a outra. (Por essa ordem de ideias, podia chamar «padre» ao meu pai, apesar de ele não ir à igreja... já que ambas as palavras vêm da mesma origem pater.) Em alguns casos, como em português, a confusão (?) pode explicar-se por a pronúncia ser parecida (a vogal tónica «i» é a mesma), mas noutras línguas (inglês e francês, p. ex.) a confusão (?) também existe, apesar de a vogal ser diferente (v. EN: circle/cycle e FR: cercle/cycle). Acaso não deve ser... Mas parece universal que só os erros é que se espalham. É a vida (das línguas). [email protected] P.S. Gostaria de ouvir outras opiniões, de tradutores ou não, sobre o que pensam/sentem quanto a este par ciclo/círculo. 6 a folha N.º 50 – primavera de 2016 EIIL/Daexe — geografias e transliterações Paulo Correia Direção-Geral da Tradução — Comissão Europeia Desde a sua criação em 2013 até aos atentados de Paris de 2015, o autodenominado Estado Islâmico(1) era referido pela sigla das designações em português, francês ou espanhol, mas também, muitas vezes, pelos acrónimos em inglês. EIIL — Estado Islâmico do Iraque e do Levante ISIL — Islamic State in Iraq and the Levant ISIS(2) — Islamic State in Iraq and al-Sham — Islamic State in Iraq and ash-Sham — Islamic State in Iraq and Syria — Islamic State in Iraq and Greater Syria A existência de dois acrónimos em inglês demonstra a dificuldade de traduzir o topónimo Xame (ou Axame) — ماشلا (/ʔaʃ-ʃaːm/), Sham (em inglês). O que é o Xame? As terras do Xame incluem, para além da atual Síria, a Jordânia, o Líbano e a Palestina, todos territórios do ramo ocidental do chamado Crescente Fértil(3) — o berço da nossa civilização. Em árabe, Xame significa literalmente Norte. O termo tem como raiz «esquerda»: a posição do território para um observador em Meca orientado para nascente, ou seja, o norte(4). Não sendo o ponto de observação do mundo de um árabe o mesmo que o de um ocidental, não faria muito sentido chamar Norte ao Xame. Houve, assim, que procurar um termo ocidental que cobrisse a mesma área, tendo sido avançadas várias soluções: Síria, Grande Síria, Levante. Síria não é uma boa solução por poder confundir-se com o território do país do mesmo nome, embora o efémero Reino Árabe da Síria, pós-Império Otomano, se tivesse estendido dos montes Tauro à península do Sinai, grosso modo o território do Xame. O termo Grande Síria utiliza-se para desfazer essa confusão. Levante corresponde, neste caso, à posição que os territórios ocupam para quem navega para leste no Mediterrâneo oriental. Neste caso, verifica-se que, em função da posição do observador, um mesmo território pode ser designado como norte por uns e levante por outros. Não é caso único, como se verá mais adiante. Daesh, Daech ou Daexe? Após os ataques de Paris de 2015, e por aparente iniciativa francesa, vulgarizou-se o uso de um novo termo resultante da adaptação do acrónimo árabe de Estado Islâmico do Iraque e do Levante. شعاد ماشلاو اارلا ي ةةميلاسلإا ةلودلا — (ad-Daula al-Islāmiyya fī l-ʿIrāq wa-š-Šām) د = ةلودلا Estado ا = ةةميلاسلإا Islâmico ع(5) = اارلا Iraque ش = ماشلا Xame O acrónimo شعاد (/daːʕʃ/)(6) foi vertido em francês como Daech (ou mais raramente Daïch), tendo sido imediatamente adaptado às regras de transliteração do inglês — Daesh (mas também Da’esh ou 7 a folha N.º 50 – primavera de 2016 Da’ish)(7). Que grafia adotar para o termo em português? Uma das formas inglesas? Uma das formas francesas? Uma possível forma portuguesa?(8)(9) A principal questão a resolver é a representação do som /ʃ/ da letra «ش». O francês e o inglês fazem equivaler-lhe os dígrafos «ch» e «sh», respetivamente. Em português a solução mais correta é o «x». Essa correspondência entre «ش» e «x» tem, aliás, longa tradição na toponímia em português. Exemplos: Marraquexe(10) (شكاامي), em vez de Marrakech (fr) ou Marrakesh (en) — cidade de Marrocos Mogadixo (وشيدقمي), em vez de Mogadiscio (it) ou Mogadishu (en) — cidade da Somália Maxerreque ( اشمي), em vez de Machrek (fr) ou Mashriq (en) Laraxe (شىاارلا), em vez de Larache (fr) — cidade de Marrocos Xarja (ةقراشلا), em vez de Charjah (fr) ou Sharjah (en) — emirado dos EAU ou Vila Franca de Xira, Caxias, Odeceixe, … O GITP (Grupo Interinstitucional de Terminologia Portuguesa) decidiu, assim, adotar a grafia Daexe (cf. ficha IATE: 3550620). O «e» final no acrónimo português destina-se a desambiguar o valor do «x» final da palavra (cf. Marraquexe). (…), não faria sentido adotar em português a transliteração da língua inglesa (Daesh), ou a francesa (Daech), ou a alemã (Daesch), etc. Em português, a letra que inicia a palavra Xam[e] sempre foi grafada com o nosso «x». Pela mesma razão que em inglês se escreve sheikh e em francês, cheikh, o título árabe chamado xeique ou xeque em português — ou pela qual escrevemos xiitas, enquanto os franceses escrevem chiites e os ingleses Shias — é que a adaptação, ao português, do nome árabe do grupo Estado Islâmico (Daesh em inglês, Daech em francês) é, em português, Daexe. É essa, aliás, a forma corretamente usada pela União Europeia, que, ao traduzir para cada uma de suas 23 línguas oficiais uma «Proposta de resolução do Parlamento Europeu sobre o perigo do Daexe na Turquia», usou, corretamente, o aportuguesamento Daexe.(11) Neste seguimento, numa futura revisão do Código de Redação Interinstitucional, poderiam rever-se algumas grafias de termos de origem árabe mais decalcadas do francês(12). Assim: Nuaquexote (طوشكاون), em vez de Nuaquechote ou Nouakchott (fr) Haxemita (ةّةمشاهلا), em vez de Hachemita, Hachémite (fr) ou Hashemite (en) — Reino Haxemita da Jordânia Relatividade geográfica Devido à tradução na comunicação social e nas obras académicas, estamos muito habituados a ver o mundo com olhos franceses, britânicos e/ou americanos e a adotar a respetiva terminologia geográfica. Um caso paradigmático é o das várias designações aparecidas em diferentes épocas históricas e refletindo diferentes pontos de vista e que correspondem a diferentes conceitos geográficos que se sobrepõem na zona ocidental da Ásia ao sul do Cáucaso: Próximo Oriente (ponto de vista europeu) — correspondia a territórios levantinos do antigo Império Otomano(13) Médio Oriente (ponto de vista inglês inicial) — correspondia aos territórios entre os antigos Império Otomano e Império das Índias Médio Oriente (ponto de vista americano e inglês atual) — corresponde a uma zona que inclui o «antigo» Próximo Oriente mais a península Arábica, o Egito e o Irão(14) O antigo Expresso do Oriente ligava Londres e Paris a Constantinopla (atual Istambul), no então Próximo Oriente. Atualmente o ponto de vista americano é o predominante, fazendo com que se entre no Oriente — termo ocidental — diretamente pelo Médio Oriente(15). Excluem-se comummente deste Oriente Chipre e os países transcaucasianos da ex-URSS (Geórgia, Arménia e, por arrasto, Azerbaijão), tradicionalmente considerados europeus. 8 a folha N.º 50 – primavera de 2016 Esta visão ocidentocêntrica, do que é o Oriente, não é partilhada, por exemplo, pelos chineses, que consideram estar no centro do mundo. China em chinês (中国, Zhōngguó) significa País do Meio. As designações geográficas constituídas por pontos cardeais em abstrato ou indicativas de um lado em relação a um qualquer acidente geográfico são sempre subjetivas, pois dependem da posição daquele que põe o nome. Casos de ponto de vista árabe: Algarve, oeste(16) — ponto de vista do antigo Califado de Córdova Magrebe, oeste(17) — ponto de vista egípcio Maxerreque, leste — ponto de vista egípcio Outros pontos de vista: Anatólia, leste, a península asiática da Turquia — ponto de vista grego Alentejo, território ao sul do Tejo — ponto de vista português no tempo da Reconquista cristã transalpino, como sinónimo de italiano — ponto de vista francês Transcaucásia, região a sul do Grande Cáucaso — ponto de vista russo Transnístria, região a leste do rio Nistro (mais conhecido em português como Dniestre) — ponto de vista moldavo Transdanúbia, região a oeste do rio Danúbio — ponto de vista húngaro Gália Cisalpina, na planície do Pó — ponto de vista romano Cisjordânia, margem ocidental do rio Jordão — ponto de vista ocidental Cisplatina, atual Uruguai, antiga província do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, a leste do rio da Prata — ponto de vista luso-brasileiro. [email protected] (1) Grupo radical islamita formado em 2006 como Estado Islâmico do Iraque (EII); passou posteriormente a designar-se Estado Islâmico do Iraque e do Levante e finalmente, em 2014, apenas Estado Islâmico, com a instituição do autoproclamado califado. (2) Geralmente pronunciado ísis. (3) O Crescente Fértil inclui também o território da antiga Mesopotâmia, atual Iraque. (4) Segundo alguns autores, a origem da palavra Iémen tem como origem o termo «direita» — a posição do Iémen para um observador situado na parte ocidental da península Arábica e orientado para nascente — ou seja, o sul. (5) A letra ع, que representa um contração gutural sonora, representa-se como ع no início das palavras, رـ em posição média e ﻊـ em posição final. (6) A sigla árabe (soletração) daria algo como dāl-alif-ʻayn-shīn. (7) As memórias de tradução Euramis refletem o aparecimento do novo termo — inexistente em 2013, minoritário em 2014, maioritário a partir de 2015. Número de ocorrências em segmentos fr e en (2016, extrapolação a partir dos primeiros três meses e meio; ISIS aparece nas memórias também com outros sentidos) (8) Em meados de abril, nos segmentos pt das memórias de tradução Euramis encontravam-se 53% de formas francesas, 34% de formas inglesas e 13% de formas portuguesas. (9) Perante alguns nomes árabes de uso mais frequente, o tradutor tem, geralmente, duas opções: a) oscilar entre diferentes grafias francesas e/ou inglesas, em função do original; b) utilizar uma grafia portuguesa devidamente fundamentada, pois, aparentemente, no atual momento da língua portuguesa, apenas esta segunda opção requer explicação e justificação. 9 a folha N.º 50 – primavera de 2016 Cf. «Calendário da Hégira e algumas curiosidades» in «a folha» n.º 49 — outono de 2015, http://ec.europa.eu/translation/portuguese/magazine/documents/folha49_pt.pdf. (10) Ou Marráquexe. Deu origem ao nome do país — Marrocos — em português e demais línguas europeias. O nome do país em árabe é Magrebe (oeste), que tem a mesma raiz que Algarve. (11) Dicionarioegramatica, «ISIS, Estado Islâmico, Daesh ou Daexe?», https://dicionarioegramatica.com.br/2015/11/24/isis- daesh-ei-eiil-ou-daech-como-chamar-o-estado-islamico/. (12) Esta revisão poderia ainda alargar-se a palavras com outras origens não grega ou latina onde figura o som /ʃ/: Quixinau (Chișinău), em vez de Quichinau Duxambé (Душанбе), em vez de Duchambé — Dushanbe (en), Douchanbé (fr) Bangladexe (বাাংলাদেশ) em vez de Bangladeche. Cf. Pradexe — Estado (ortografia utilizada na Lello Universal para estados da Índia. Bangladexe — País de Bengala (13) Atuais Turquia, Síria, Líbano, Jordânia, Palestina, Israel, Iraque. (14) Atuais Turquia, Egito, Síria, Líbano, Jordânia, Palestina, Israel, Iraque, Arábia Saudita, Koweit, Barém, Catar, EAU, Omã, Iémen, Irão. (15) Será a Europa continental o atual Próximo Oriente? De referir que a Real Academia Espanhola considera que o Oriente Médio é constituído pelo Afeganistão, Paquistão, Índia, Maldivas, Sri Lanca, Nepal, Butão e Bangladexe. (16) Na realidade, o nome completo seria Gharb al-Andalus, a parte mais ocidental do Al-Andalus. (17) Na realidade, o nome completo é al-Maghrib al-ʻArabī. Tendências da língua portuguesa: as inócuas e as iníquas (III) Jorge Madeira Mendes Direção-Geral da Tradução — Comissão Europeia Ele é um supra-bankster. Ele simboliza o próprio gangsterismo na banca. Primeiro, porque o seu banco era enorme para um país pequeno. Em segundo lugar, porque ele acreditava que estava acima da lei. Ele acreditava na impunidade, ele tinha ligações próximas com políticos. Ele tinha ligações próximas a um regulador frágil e ele tinha [o banco central] nas mãos. Ele recorreu a paraísos fiscais, daqueles mesmo sujos, como o Panamá e o Luxemburgo. Ele escondeu coisas do regulador ou o regulador foi cúmplice... Não sabemos. Ele é o supra-bankster. Neste texto, divulgado na Internet sobre um certo bankster(1) cuja identidade me abstenho de precisar, há dez orações que têm todas o mesmo sujeito e que, tirando as intercalações «Primeiro, porque o seu banco era enorme para um país pequeno» e «Não sabemos», se sucedem contiguamente. Ora, quando o sujeito não muda, é regra tradicional em português não o repetir — designadamente porque, na nossa língua, tal como em italiano e em espanhol, as formas verbais são bastante diferenciadas: quaisquer que sejam o verbo, o tempo ou o modo, a forma correspondente a «eu» distingue-se, em geral, da correspondente a «tu», a «nós», a «eles»... (e reciprocamente). Não assim, por exemplo, em inglês: had ou loved tanto dão para I como para you, she, it, we ou they, o que torna necessário explicitar inequivocamente a pessoa — ao passo que tive, tiveste, teve, tivemos, tivestes, tiveram ou amei, amaste, amou, amámos, amastes, amaram dispensam perfeitamente eu, tu, ele, nós, vós ou eles. Entretanto, aquilo a que, com galopante e descoroçoante desgosto, assisto nos meios de comunicação portugueses é «ele» para aqui, «ele» para ali, «ela» para cá, «ela» para lá. Sendo os pronomes «eu», «ele»/«ela» e «eles»/«elas», curiosamente, os mais castigados, nem por isso os restantes escapam à «tendência». Lembro-me, circunstancialmente, do filme The Reader (O Leitor), a história da primeira paixão de um adolescente (Michael Berg, protagonizado por David Kross) por uma mulher madura (Hanna Schmitz, protagonizada por Kate Winslet). A «mulher madura» é, na realidade, a antiga e pouco escrupulosa guarda de um campo de concentração nazi, como Michael vem 10