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5 O olhar poético de Elizabeth Bishop traduz a Amazônia PDF

71 Pages·2011·1.49 MB·Portuguese
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5 O olhar poético de Elizabeth Bishop traduz a Amazônia Este capítulo é dividido em três seções. Primeiramente discutiremos o conceito da transculturação e de como esse fenômeno contribuiu para a formação sócio-cultural do homem da Amazônia, ajudando a formar a poética cabocla. Também retomamos o tema da tradução cultural objetivando esclarecer o seu papel na Antropologia. Esse segmento serve de motivação para apresentarmos dois viajantes/pesquisadores da Amazônia do século XX, Claude Lévi-Strauss e Charles Wagley, os únicos autores contemporâneos lidos por Elizabeth Bishop. Na segunda parte, apresentamos um estudo etnográfico do poema “The riverman”. Esse estudo baseia-se na pesquisa sobre a pajelança cabocla de Maués (1995) e no estudo de Sampaio Silva (2007) que versa sobre a pesquisa de Eduardo Galvão sobre santos e visagens no arquipélago do Marajó. Essa análise é complementada por uma explanação das lendas da Cobra Grande e do Boto, que estão inseridas no poema. Ao pesquisar a vida, a obra e a recepção crítica de Elizabeth Bishop, verificamos que o poema “The riverman” foi estudado sob a ótica da Psicanálise, da crítica genética, da estética criativa feminista, mas não sob uma leitura antropológica. Assim optamos por fazer uma leitura etnográfica deste poema, em particular pela sua intertextualidade com textos de outros autores que escrevem sobre o modo de viver caboclo, as crenças e a descrição do ritual de iniciação da pajelança cabocla. Podemos afirmar que nesse poema, considerado pré- amazônico, encontramos elementos reveladores do conhecimento de Bishop sobre o assunto, conhecimento esse que estava muito além da simples leitura de Amazon town, de Charles Wagley, a quem ela se refere na epígrafe do poema. Por fim, na última seção, nossa pesquisa norteada pela teoria do imagologismo91 (ou imagismo) e dos estudos da literatura de viagem, analisa a                                                              91 O imagologismo é um dos objetos de estudo da Escola de Literatura Comparada francesa. No Brasil, essa área de estudo foi introduzida por Rosza W. vel Zoladz (2005, p.127) para estudar as representações brasileiras em textos e imagens por parte dos viajantes estrangeiros. Segundo a professora, os paradigmas para a análise contemporânea da imagem e da cultura estão fundamentados na tradição da sociologia e da semiologia francesas. Foi a própria Zoladz que 118 forma pela qual Elizabeth Bishop traduz culturalmente a região amazônica. Para efeito de análise, escolhemos o poema “Santarem”, o fragmento “On the Amazon”, a crônica “A trip to Vigia” e as cartas “amazônicas” de Bishop. Além dos textos já citados, foram importantes para a complementação de nosso estudo as duas únicas cartas enviadas da Amazônia para Lota de Macedo, apresentadas e traduzidas por Armando Olivetti Ferreira (2003). Assim também, a tradução dos originais em prosa de “A trip on the Amazon” (1960) e do estudo e da tradução dos originais do livro Brazil (1962), também realizados por Ferreira (2008). Elizabeth Bishop, leitora-poeta-viajante e tradutora eventual, viajou à Amazônia para realizar um desejo de infância. Até estabelecer-se no Brasil, Bishop leu, e viajou ao redor do seu quarto para uma Amazônia imaginária, mediada por livros como Green mansion e revistas como a National Geographic92. O desejo de conhecer a região somente foi renovado por parte da autora quando, já no Brasil, iniciou a leitura dos viajantes do século XIX, tais como Wallace, Bates, Spruce, acrescidos de Wagley e Lévi-Strauss, contemporâneos da poeta. Todos eles em suas obras embarcaram juntamente com Bishop rumo à Amazônia. Entretanto, apesar de ser uma viajante experiente, nem ela estava preparada para a verdadeira pororoca de emoções que a região provocou na sua verve bostoniana. De fato, poderíamos até dar-lhe a alcunha de “turista aprendiz” de Amazônia. Portanto, viajaremos para Manaus, Santarém, Belém e Vigia dos anos 60, por meio de seu olhar poético. 5.1 Transculturação e tradução da Amazônia   A poesia ou poética da Amazônia, como João de Jesus Paes Loureiro (2001, 2008) prefere chamá-la, apresenta certas características que estão diretamente ligadas à formação histórico-cultural da relação entre o homem e a paisagem verde-aquífera que o cerca. Segundo o autor, essa relação tem uma                                                                                                                                                                     cunhou a expressão “Estudos da Imagem e das Representações Culturais”, termo brasileiro que substituiu a palavra francesa imagologie (ou imagologismo em português luso). 92 A primeira reportagem sobre a Amazônia foi publicada no terceiro número da revista, em março de 1891. No ano de 1959, anterior à viagem de Bishop, foram duas matérias (março e maio). 119 dupla função: uma utilitária93 e outra não utilitária. A parte não utilitária manifesta-se por meio de uma poética tipicamente amazônica que são as encantarias. Elas se revelam por meio dos encantados que habitam a floresta densa e o fundo dos rios. É a valorização do imaginário, em detrimento das funções práticas de uso do rio e da floresta, que constituem a natureza imediata dessa “poética cabocla”. Os homens passam pelo rio, usam o rio, trabalham no rio, alimentam-se do rio, navegam pelo rio, vivem no rio e morrem no rio. Todavia, pelo devaneio, percebem que há uma outra realidade que lhes estimula um estado de alma diferente, que lhes permite olhar e perceber esse rio de uma outra forma, plena de um mistério encantatório, magicamente real, capaz de fazer desse rio uma realidade simbólica sensível e que se revela como uma finalidade sem a representação de um fim. Algo que corresponde a uma situação estetizada (Paes Loureiro, 2008, p.15). A poética amazônica é produto direto da narrativa oral, resultante do que hoje chamamos de zona de contato94, um termo derivado da Antropologia, mas que transcendeu e ampliou seu escopo para abarcar outras áreas que estudam os fenômenos culturais, internos ou externos, de uma nação ou comunidade. Essa manifestação narrativa do caboclo é herança dos habitantes autóctones. Tradicionalmente, as crenças e mitos indígenas se manifestam especialmente na forma oral. O grande folclorista Luis da Câmara Cascudo descreveu, ainda na primeira metade do século passado, como tais manifestações ocorriam:   Depois do jantar, noite cerrada, no pátio que uma fogueira ilumina e aquece, reúnem-se os velhos indígenas, os estrangeiros, para fumar e conversar até que o sono venha. Evocações de caçadas felizes, de pescarias abundantes, aparelhos esquecidos para prender animais de vulto, figuras de chefes mortos, lembrança de costumes passados, casos que fazem rir, mistérios da mata, assombrações, explicações que ainda mais escurecem o sugestivo apelo da imaginação, todos os assuntos vão passando, examinados e lentos, no ambiente tranquilo (Cascudo, 2006, p.83).                                                                           93 Por sua vez, a função utilitária do rio pela população tradicional (caboclos, ribeirinhos), também tem dupla função. Sobre o assunto, ver Fraxe (2000, 2004) onde, no capítulo três a autora cunhou a expressão “homens anfíbios” para explicar os dois tipos de atividade de subsistência do caboclo da Amazônia e sua perfeita simbiose com as duas estações climáticas da região – a cheia e a vazante. 94 O conceito de zona de contato foi desenvolvido pela crítica literária canadense Mary Louise Pratt “na tentativa de se invocar a presença espacial e temporal conjunta de sujeitos separados por contingências históricas e geográficas cujas trajetórias agora se cruzam” (Pratt, 1999, p. 32-33). 120 A narrativa da cultura indígena brasileira é extensa e minuciosa e tem como finalidade a formação educacional e moral dos índios mais jovens. Armazenadas na consciência coletiva, essas histórias são transmitidas de geração em geração e têm a missão de preservar a memória da comunidade, servindo de veículo para as manifestações culturais.   O indígena conta, horas e horas. Conta, dias e dias, ou melhor, noites e noites, um milhar de estórias de guerra, caça, pesca, origem de várias coisas, o amanhecer de sua família no mundo. Todas as coisas [...] têm uma História religiosa, hierárquica, e uma literatura folclórica adjacente (Idem, p.93).     Foi essa poética de significados que construiu o imaginário amazônico, formando um palimpsesto textual, no qual também estão inseridas as narrativas orais dos habitantes nativos da Amazônia. A história discursiva da Amazônia está fundamentada nas trocas culturais das identidades, das alteridades e das desigualdades que resultaram no que a pesquisadora Ana Pizarro chama de “Poéticas de la diversidad” (2006, p.151). El problema que nos ha interesado es cómo, a partir de la relación colonial que se inicia en la zona en 1541, con el viaje de Orellana, el área se va reorganizando culturalmente como un espacio altamente fragmentado, alentado por el desarrollo histórico de esta colonialidad – relación con el mundo indígena, esclavitud – y también por la especificidad geográfica del lugar. Los discursos se construyen allí, entonces, en identidades diversas, y la pluralidad de textualidades da cuenta de una geografía mítica de los imaginarios de carácter particular. La Amazonía es un área cultural de que los estudios de la literatura y la cultura de América Latina no se han ocupado. Una serie de discursos marcan su existencia histórica: crónicas de los primeros viajes europeos por el río Amazonas con el imaginario de la antiguedad y del medioevo que traen a cuestas; libros de viaje de los científicos que la miraron a partir de las nociones de la modernidad europea: discursos de la época del caucho. En estos últimos, las miradas se pluralizan: ya no escuchamos sólo la voz hegemónica de los dueños del seringal; son ahora voces múltiples, en diferentes formas de simbolización. Se trata de los intelectuales, de los actores. El drama, los serigueros, de la memoria oral, también de la construcción mítica sofisticada de las culturas indígenas sobre los episodios históricos de la masacre95 (p.151-152).     O relato indígena chegou para nós, como mencionamos antes, “hibridizado”, reordenado, re-narrado pelo caboclo. Melhor dizendo, é uma forma de transculturação narrativa, resultado do encontro de culturas ao longo da história                                                              95 A autora refere-se à matança indiscriminada dos indígenas amazônicos durante o primeiro ciclo da exploração da borracha. Um bom exemplo de narrativa oral sobre este período é o depoimento de Mindlin (2006) p.63 desta dissertação. 121 da Amazônia. Vendo sobre esse prisma, Octávio Ianni lembra que a história das culturas e civilizações, incluídas a literatura, as artes e as ciências sociais, é também uma história de um “longo, complexo, surpreendente e fascinante processo de transculturação” (2003, p.95). Um processo que veio sendo formado e transformado e que iniciou com os textos dos viajantes dos séculos XVI e XVII. Desse modo, ocorreu uma contínua e reiterada metamorfose que demarcou a fronteira de significados, entre o ocidente colonizador e os outros povos sob seu jugo, resultando no discurso poético dos primórdios da modernidade: Essa poética dos primórdios dos tempos modernos, quando os europeus, ocidentais, navegantes, conquistadores e missionários avançam mundo afora. Trata-se de um discurso que não termina nunca, ainda que alterado de quando em quando em algumas das suas formulações em conformidade com as exigências do mercantilismo, colonialismo, imperialismo e globalismo. Uma poética elaborada em prosa e verso, crônica e relato, monografia e ensaio, linguagens artísticas e linguagens científicas. Tem sido monólogo e diálogo, polifonia e cacofonia, tanto como utopia e nostalgia. Uma poética que se expressa em processos socioculturais, modos de vida e trabalho, vivências e consciências, realidades e imaginários, envolvendo sempre várias modalidades de transculturação (Ianni, 2003, p.102).   Entendemos que o conceito de transculturação é primordial em nosso estudo, para explicar o processo do surgimento da poética da Amazônia. O fenômeno transcultural, não só explica a encantaria da cultura popular amazônica como também complementa a teoria da poética do imaginário amazônico, defendida por João de Jesus Paes Loureiro. O termo transculturação foi criado pelo pensador cubano Fernando Ortiz em 1941. Segundo Walter (2002, p.4), para explicar o movimento "contínuo, contrastante e radical das transmigrações geográficas, econômicas e sociais dos primeiros colonos" na ilha de Cuba, agravados pela “perene natureza transitória dos objetivos coloniais e a sua vida instável no país onde viveram em desarmonia perpétua com a sociedade da qual tiraram a sua subsistência". Ortiz considerava que a transitoriedade era o mais "importante fator humano" da evolução e da composição da sociedade e cultura cubana. Para o estudioso, o encontro de índios, europeus e africanos que formou o povo cubano, não foi apenas um processo de miscigenação racial, mas também cultural. Entretanto, esse fenômeno transcultural não aconteceu rapidamente, mas no decorrer de séculos. Por esta 122 razão, o pesquisador cubano dividiu-o em três fases que se inter-relacionam: desculturação, aculturação e neoculturação. Essas três fases da transculturação podem ser adaptadas para o cenário amazônico, estabelecendo uma vinculação a três acontecimentos históricos da região: (i) a perda parcial de cultura (desculturação) com os primeiros contatos com o europeu, acentuada pelo sistema de catequese dos padres jesuítas, responsáveis iniciais pela fundação dos primeiros aldeamentos portugueses na região amazônica; (ii) a concomitante assimilação de elementos das culturas europeias e africanas, por parte dos nativos (aculturação), devido à política do Marquês de Pombal, primeiro ministro de Portugal na época, que ordenou a expulsão dos jesuítas, a adoção oficial da língua portuguesa, o incentivo ao matrimônio entre europeus e nativas, forçando o deslocamento dos indígenas para as cidades, provocando a destribalização das diferentes nações indígenas da região; (iii) o estabelecimento de uma nova cultura (neoculturação) após a revolução cabana, com o surgimento do homem mestiço, processo semelhante ao que ocorreu com o amazônida, que se fixou ao longo dos rios e tributários da região. Novamente recorremos a Ianni para evidenciar os processos transculturais pelos quais passou o homem amazônico: A transculturação sempre envolve a tradução. Tanto é assim que se pode falar que estas são formas diferentes de tradução: contato, intercâmbio, negociação, tensão, acomodação, mestiçagem, hibridação, sincretismo, assimilação, aculturação e transculturação. São diferentes formas de tradução, nas quais podem envolver-se distintas linguagens e diferentes modos de comunicação: fala e escrita, forma e movimento, som e cor, literal e figurado, metáfora e alegoria, realista e impressionista, naturalista e mágica, em diversas modalidades de combinações. Ao mesmo tempo, põem em causa modos de vida e trabalho, formas de ser, agir, sentir e imaginar ou estilos de pensamentos e visões de mundo. Talvez seja possível dizer que o conceito, por exemplo, assim como a metáfora, envolve uma escala avançada ou mesmo excepcional de tradução (Ianni, 2003, p. 113). A troca cultural na Amazônia foi bem mais longa e intensa do que no resto do território brasileiro. Poucas regiões no mundo receberam tantos viajantes estrangeiros. Do século XVI até a década de 30 do século passado, segundo Meirelles Filho (2009)96, foram cerca de mil expedições individuais ou coletivas, que percorreram os rios da Amazônia. Todos esses viajantes contavam com o                                                              96 Meirelles informa que cerca de 80% dessas expedições/viagens foram feitas por estrangeiros. 123 auxílio da figura anônima do informante, quase sempre nativo, que servia de intérprete e mateiro. A importância desses homens levou Priscila Faulhaber (2005), pesquisadora do Museu Emílio Gueldi, a indagar se esses “outros” (os nativos) seriam apenas “informantes” ou os reais “detentores de conhecimento especializado”. O questionamento da pesquisadora é pertinente, pois valoriza a participação do índio e do caboclo na pesquisa científica da Amazônia. Em “Tradução Cultural na Antropologia dos anos 1930-1950: as expedições de Claude Lévi-Strauss e de Charles Wagley à Amazônia” (2008, p.32), Heloisa Bertol Domingues explica a importante contribuição dos dois cientistas para a história da pesquisa antropológica brasileira. De acordo com Domingues, as duas expedições estabeleceram um corte epistemológico, trazendo para o centro das discussões acadêmicas a questão da tradução cultural. A autora aponta a “passagem desta ciência do âmbito das ciências naturais para o das sociais”. Foi uma espécie de virada cultural antropológica, cuja mudança mais expressiva ocorreu no “objeto científico: antes o corpo humano, depois a cultura nos seus aspectos materiais e simbólicos”. Esta autora considera Lévi-Strauss e Wagley 97 os pioneiros da tradução cultural no Brasil:   A primeira expedição realizou-se à Serra do Norte, Mato Grosso, em 1938, tendo terminado no Pará. Foi chefiada pelo, então, jovem etnólogo Claude Lévi-Strauss, que escreveu, como resultado, o famoso “Tristes Trópicos” (1955). [...] A segunda expedição realizou-se dez anos depois, em 1948, em Gurupá, no Pará, sob a chefia do antropólogo americano Charles Wagley, que viajou acompanhado do seu aluno, o também jovem antropólogo do Museu Nacional, Eduardo Galvão, que mais tarde dirigiria o Museu Goeldi. [...] Wagley publicou o livro “Uma comunidade amazônica” (1953) e Galvão publicou “Santos e Visagens” (1955) (2008, p.32).      Ainda para Priscila Faulhaber (2008, p.1), “a noção de tradução cultural aparece desde os primórdios da Antropologia como ciência” uma vez que “muitas vezes a coleta de informações em campo depende do aprendizado de uma língua estrangeira”. Então, é correto afirmar que a atividade tradutória é primordial para a etnografia que, por sua vez, é essencial para qualquer estudo antropológico.                                                              97 Elizabeth Bishop leu Wagley e Lévi-Strauss (publicado nos EUA em 1961). Foi justamente após a leitura desses autores, além de Gilberto Freyre, que a autora escreve alguns poemas “sociais”, porém mantendo uma atitude de distanciamento. Lembramos ao leitor que, até então, Bishop havia lido somente os relatos dos naturalistas do século XIX e pautava-se no estilo desses autores para escrever sua poesia brasileira. 124 Segundo a pesquisadora, a tradução cultural se justifica quando existirem problemas de transferência de significados entre duas culturas. Na apresentação do Programa de Curso: “A Tradução Cultural em Antropologia (2008, p.1)”, a autora explicita a importância da disciplina:   As questões ligadas à tradução de conceitos nativos resumem-se, assim, na impossibilidade de uma equivalência completa entre o conjunto dos códigos de duas culturas diferentes. A antropologia da tradução incorpora a história, uma vez que cada tradução é uma atualização de conhecimentos prévios ou pré- constituídos e que a novidade enunciativa é entendida em referência ao presente. Implica, também, o uso da teoria literária em termos da construção de sentido numa correlação entre princípios de coerência e princípios de correspondência entre diferentes visões de mundo, de acordo com cada contexto etnográfico. Considera ainda aspectos da recepção como os horizontes narrativos específicos, a verossimilhança na comunicação, a adequação das mensagens trocadas e o ajuste das concepções entre emissor e receptor.     Também, para Valero-Garcés, a tradução cultural já é um termo banal para a Antropologia desde 1950. No artigo "Modes of translating culture: ethnography and translation" (1995), a autora destaca que a questão da tradução está no centro de duas vertentes da Antropologia – a social e a cultural. Para os antropólogos dessas duas áreas, a tradução não se refere somente ao seu componente linguístico, mas ao problema de descrever “outros de cultura diferente”. Por outro lado... One who translates is said to express in one form what has been written or previously expressed in another. Under this concept translation as expression is linked as well to the explanation and interpretation of meaning. This adds a social dimension to the understanding of' other cultures and faces us with the role of the ethnographer as translator. I will argue that the role of' the ethnographer and the translator are quite similar. Both are interpreters, the first of experiences and notes, the second of a given text. Both facing a large disposal of sets of possible responses in his /her own language. And both attached to a certain degree of subjectivity. (p.2)98. Para o presente estudo, adotamos a concepção antropológica de cultura, pois de acordo com David Chaney (2003, Kindle loc. 811-821), a cultura                                                              98 Daquele que traduz, se diz que expressa o que foi escrito ou expresso previamente. Sob essa concepção, a tradução como expressão também está ligada à explicação ou interpretação de significados. Isso adiciona uma dimensão social à compreensão de outras culturas e leva-nos a encarar o papel do etnógrafo como tradutor. Eu postulo que o papel do etnógrafo e do tradutor são similares. Ambos são intérpretes, o primeiro de experiências e notas, o segundo de um dado texto. Ambos enfrentam um amplo conjunto de possíveis respostas em sua própria língua e ambos estão vinculados a um certo grau de subjetividade. 125 representa o modo de vida de uma comunidade e de como esta se inscreve localmente. Esse ponto de vista completa-se com as observações de Clifford Geertz (2008), para quem a representatividade cultural de um grupo não deveria ser reduzida a uma lista de pré-requisitos e sim a uma série de “modos de dizer” que deem consistência ao “saber local” de uma sociedade. Melhor dizendo, estamos nos referindo à cultura como uma categoria social; dentro de uma perspectiva holística, que leva em conta todo um modo de vida de uma pessoa. Essa é a visão pluralista da Sociologia, da Antropologia e, de certa forma, dos Estudos Culturais. Elizabeth Bishop não foi a única norte-americana a se beneficiar das narrativas científicas para escrever textos literários de temática amazônica. Antes dela, podemos citar o poeta romântico John Greenleaf Whittier que escreveu o poema “The cry of the lost soul” (1862), baseado no livro Report of the exploration of the Amazon99 (1854) escrito por Lewis Herndon, tenente da Marinha Americana. No livro, Herndon documenta uma lenda sobre o canto noturno de um pássaro às margens do rio Amazonas. O trinado melancólico do pássaro era chamado pelos índios de “O grito de uma alma perdida”. Dentre as inúmeras traduções do poema citado está uma feita por D. Pedro II, Imperador do Brasil. “The cry of a lost soul” (1862) In that black forest, where, when day is done, With a snake's stillness glides the Amazon Darkly from sunset to the rising sun, A cry, as of the pained heart of the wood, The long, despairing moan of solitude And darkness and the absence of all good, Startles the traveller, with a sound so drear, So full of hopeless agony and fear, His heart stands still and listens like his ear.                                                              99 O livro é, na verdade, um relatório de prestação de contas ao Congresso dos Estados Unidos. Já naquela época, o governo estadunidense direcionava seus interesses para a América Latina, em especial o Brasil. Essa viagem de exploração foi incentivada pelos congressistas sulistas, ainda antes da guerra da guerra civil, pois já se percebia que o sistema econômico dos EUA sulistas iria terminar. Eles queriam empreender na Amazônia um sistema para perpetuar o sistema escravocrata sulista, fundando uma colônia dentro do Império brasileiro. Os congressistas chegaram até mesmo a propor essa solução oficialmente ao Brasil, sendo prontamente rechaçados. Mesmo assim, após a guerra civil, centenas de famílias sulistas vieram se estabelecer no Brasil, porém como livres empreendedores. 126 The guide, as if he heard a dead-bell toll, Starts, drops his oar against the gunwale's thole, Crosses himself, and whispers, "A lost soul!"100 [...]     Elizabeth Bishop nutria uma admiração pelo Imperador D. Pedro II, por ele ter sido um apreciador das artes e das ciências, especialmente da ciência natural. Além disso, assim como a autora, o Imperador era um grande viajante e gostava de fotografia, além de ser poeta nas horas vagas. Quando Bishop estava pesquisando a história do Brasil, para escrever o livro Brazil, conheceu mais profundamente a biografia de D. Pedro II, que mereceu um destaque bem humorado na referida obra: In 1876 he paid a long visit to the United States. He had read the Boston Transcendentalists and Abolitionists and had corresponded with John Greenleaf Whittier, one of whose poems he translated into Portuguese. It was called The Cry of a Lost Soul. When he met Whittier, Dom Pedro startled the shy Quaker poet by attempting to give him the Brazilian abraço, or hug. He also met Henry Wadsworth Longfellow, who gave a dinner party for him and subsequently described his royal guest as a "modern Haroun-al-Raschid wandering about to see the great world as a simple traveller, not as a king. ‘He is a hearty, genial, noble person, very liberal in his views’ (Bishop, 1962, p.44).101 Bishop mantinha uma foto do último Imperador do Brasil em seu apartamento em Boston. Muitos visitantes indagavam quem era aquele ancião de olhar nobre e triste. A pergunta era uma espécie de senha para a poeta começar a falar do Brasil e contar o “episódio do abraço” (citação anterior) ao seu interlocutor. E o fez muitas vezes, especialmente em entrevistas (Bishop, 1978).                                                              100 “O grito de uma alma perdida” (Rio, 22 de agosto de 1864) Quando, à tardinha, na floresta negra, /Resvala o Amazonas qual serpente, /Sombrio desde a hora em que o sol morre /Até que resplandece no oriente, Um grito, qual gemido angustioso /Que o coração do mato soltaria/Chorando a solidão, aquelas trevas, /O não haver ali uma alegria, Agita o viajor, com som tão triste/De medo, do ansiar da extrema luta,/Que o coração lhe pára nesse instante/E no seu peito, como ouvido, escuta. Como se o sino além tocasse a mortos, /O guia estaca, o remo que segura/Deixa entregue à piroga, e se benzendo:/É uma alma perdida”, ele murmura. 101 Em 1876, D. Pedro fez uma longa visita aos Estados Unidos. O Imperador era leitor dos transcendentalistas e abolicionistas de Boston e havia trocado correspondências com John Greenleaf Whittier, cujo poema ele traduzira para o português. O título era The Cry of a Lost Soul. Quando conheceu Whittier, Dom Pedro surpreendeu o tímido poeta Quaker ao tentar dar-lhe um abraço. Ele também conheceu Henry Wadsworth Longfellow, que lhe ofereceu um jantar e, subsequentemente, descreveu-o como seu hóspede real “um Haroun-al-Raschid moderno a perambular pelo mundo, não como um rei, mas como um simples viajante. Ele é uma pessoa jovial, afável, nobre e com ideias muito liberais”.

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primeiros colonos" na ilha de Cuba, agravados pela “perene natureza transitória dos objetivos . notes, the second of a given text. Both facing a large .. Elizabeth Bishop escreveu “A new capital, Aldous Huxley, and some indians”
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