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299 MATRIZES DAS CRENÇAS EM PORTUGAL Alfredo Teixeira VII PDF

80 Pages·2009·9.85 MB·Portuguese
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Alfredo Teixeira V II MATRIZES DAS CRENÇAS EM PORTUGAL Alfredo Teixeira 299 VIIMATRIZES DAS CRENÇAS EM PORTUGAL O crer, a crença, as crenças A perspectiva que aqui se assume depende de uma concepção de crença que importa, com brevidade, caracterizar. Com frequência, esta categoria é em - purrada para o domínio especializado do religioso; outras vezes, numa visão cristianocêntria, designa os universos religiosos que não se incluem no campo religioso cristão (a oposição entre a fé dos cristãos e a crença dos outros). Neste ensaio, toma-se o termo enquanto categoria antropológica que visa identificar uma forma humana de habitar e interpretar o mundo e construir nele relações. O seu poder explicativo depende, no entanto, da consideração de uma tríplice distinção: o «crer» como acto fundante e estru- turante do sujeito humano, a «crença» como prática social e institucionali- zação do crer, e as «crenças» como enunciados produzidos pelos interlocuto- res sociais na sua condição de «crentes»1. Esta formulação do problema implica a consideração do «acto de crer», ante- rior a qualquer forma de institucionalização contratual, como gesto que se situa no nível mais elementar da constituição da socialidade humana, acto pelo qual o indivíduo constitui a sua subjectividade em virtude do reconhe- cimento de uma alteridade. Crer, enquanto prática da diferença, é sempre um relacionar-se com o outro («actor», pessoa em que se confia; «referencial», realidade em que se acredita; um «dizer» ou um «dito», algo em que se faz confiança); é dar e esperar retribuição; nesse intervalo, encontramos o campo da articulação simbólica que permite a institucionalização do crer, ou seja, a crença – é esta a estrutura dos sistemas de crenças. Esta anterioridade do outro (ou dos outros) pode fixar-se, objectivar-se –é sob a figura da ante- rioridade do outro e/ou sobre o reconhecimento da sua credibilidade (acu- mulação de crédito) que se recompõe a autoridade. Nesse processo de objec- tivação, as «autoridades» assumem a função específica de «autorizar», ou seja, tornar possível a crença enquanto prática comunicativa instituidora de formas várias de troca simbólica. A religião é uma das formas sociais de orga- ni zação das práticas e representações do crer, mas não é o único domínio social que está dependente dessa forma de produção simbólica. A crença remete para o substrato nativo da socialidade humana e, por isso, não pode ser reduzida a um conteúdo (as crenças como enunciados). Nesse sentido, não tomamos aqui a noção de matriz como princípio original, definidor do homo religiosus, do qual decorre a pluralidade das crenças – percurso anali- sado, com frequência, como degenerescência e contaminação. A «matriz» é, 300 Alfredo Teixeira aqui, «substrato»: campo simbólico disponível para o trabalho permanente de construção da cultura sob o signo da recomposição (cf. Teixeira, 2002). Esta recomposição está mais próxima da metáfora mecânica da montagem que da metáfora biológica presente no conceito de assimilação. Nesse traba- lho de elaboração simbólica da cultura é possível identificar os núcleos a partir dos quais se organiza a memória social e se reinventa o espaço-tempo enquanto experiência humana. A expressão religiosa tem, a partir desta perspectiva, um particular interesse, não porque detenha o monopólio da crença como prática social, mas por - que nela se cristaliza boa parte dos recursos simbólicos que operam na cons- trução do sistema de referências fundamentais de uma cultura. A identifica- ção das fronteiras simbólicas de uma cultura depende da constituição de um quadro referencial que permite aos indivíduos esse mapear da existência: saber onde estão, de onde vêm, que horizontes se abrem. Pensemos na grelha de meridianos e paralelos que permite atribuir referências a todos os pontos do espaço geográfico, relacioná-los e estabelecer entre eles itinerários (cf. Wittgenstein, 1972, 163s). Por exemplo, no que diz respeito aos saberes da navegação, essa inscrição referencial da experiência permitiu ultrapassar e vencer o pântano da flutuação imprevisível das coisas, a opacidade do des- conhecido, antes sob o reinado da adivinhação e da submissão aos deuses. O que é dito sob a organização geográfica, deve ser dito da cultura. Objectos, gestos, sons, valores não chegariam ao patamar da significação sem a inscri- ção referencial, sem a cesura da linha que possibilita um antes e um depois, um aquém e um além, a descontinuidade que possibilita a diferenciação. Mas é necessário que este quadro referencial não seja uma grelha instável, pois tal conduziria a uma esquizofrenia da significação. Assim, é essencial perceber que todas as «géneses» dos mundos se caracteri- zam pelo acto de fundação de um centro, um ponto 0 de Greenwich, uma pedra angular, uma «ruptura instauradora» (cf. Certeau, 1987a, 208-226). Esse fundamento tem uma característica essencial: não tem fundamento, como um primeiro traço numa folha em branco, instaurando uma singula- ri dade da qual tudo o resto procederá. A nomeação do ponto 0 é, pois, um acto que se autoriza a si próprio para decretar o começo, ou seja, assinalar uma origem que, na sua descontinuidade e singularidade, tudo reorienta a partir de si e se apresenta como garante dos valores em circulação na socie- dade, assegurando a marcha da mudança e a convertibilidade dos valores 301 VIIMATRIZES DAS CRENÇAS EM PORTUGAL que circulam. As narrativas sagradas são habitadas por essa necessidade de descoberta genealógica do fundamento da cultura. Nomear uma origem é referir-se a um centro que rompe com a monotonia e ins taura uma descontinuidade a partir da qual se pode construir uma ordem (Moisés e a Lei, Jesus e o mandamento novo, o Sermão de Benares, a Hégira, etc.). A actividade simbólica religiosa está, pois, do lado desse tecer da me mó- ria de uma cultura, num processo de transmissão a que, de forma genérica, se pode dar o nome de tradição. Recordem-se as observações de Émile Ben ve - niste sobre uma das possíveis etimologias de religião, re-legere (cf. 1969b, 265s): tornar a ler, colher de novo, voltar a uma tarefa, retomar os ele mentos e sinais disponíveis com vista a uma reflexão. Estaremos, pois, perante um comportamento humano que procura um caminho seguro, voltando atrás, procurando a confirmação em sinais, textos ou palavras já conhecidos. É claro que uma etimologia não é uma definição, mas pode ser um indicador heurístico. Re-legereaponta para a acção de releitura dos elementos simbóli- cos disponíveis, seja por meio do ritual, seja por via do comentário interpre- tativo – só para citar duas das práticas mais recorrentes. A abordagem da reli- gião como actividade simbólica alicerçada numa tradição permite um olhar antropológico sobre a religião «a fazer-se», reproduzindo-se e recriando-se, num percurso histórico em que a instituição da ori gem, a conservação e a inovação constituem o objecto específico do trabalho religioso. A antropologia do sagrado de Mircea Eliade parece ser aquela que mais des- ta que deu à tese de que a religião não pode ser compreendida sem essa refe- rência ao acontecimento singular, à pedra angular, à presença originante, ao acontecimento que se torna fundamento (cf. 1971, 1977): os fundadores de Roma seguiram um touro e fizeram o voto de o sacrificar e de edificar a cidade no lugar onde o animal parou para pastar. Nesta procura da «morfo- logia primitiva», a religião é frequentemente definida segundo a sua capaci- dade de gerir uma determinada ordem,superando os perigos de um «mundo às avessas». Essa ordem refere-se à singularidade de uma origem. Nas mito- logias dos povos, mesmo quando há apenas uma cosmogonia, encontram- -se quase tantas narrativas de origem quantas as técnicas, os costumes, os lu - gares, os episódios do calendário, etc. Parece ser esse o sentido da noção elia- deana de hierofania – manifestação do sagrado (cf. Eliade, 1992, 25-41). A hie rofania pode ser apresentada como aquela singularidade que rompe com a homogeneidade do espaço, instituindo um ponto de referência – axis 302 Alfredo Teixeira mundi (cf. Ibid., 373-375). Singularidade é também a de todos aqueles seres sui generis, pela sua beleza ou pela sua coragem, pela sua disformidade ou pela sua força, pelo seu saber ou pelo enigma que consigo transportam, seres ino mináveis protegidos por interditos e por superlativos, situados na extre- midade dos dispositivos classificatórios. Mesmo em culturas onde a religião consiste em cultivar de forma correcta as relações com os deuses, ou seja, ce - lebrar os ritos que os laços existentes entre os deuses e os grupos humanos implicam, a actividade religiosa pode ser vista enquanto transacção com o fundamento. Seguindo a expressão de Pierre Legendre, a religião ritualizada pode ser vista como actividade produtora da exterioridade do fundamento (assim perenizado sob a forma ritual), como mise en scèneda referência fun- dadora de uma cultura (cf. 1999,99-101). Nesta visão multímoda, o universo simbólico-religioso descobre-se como operador semântico, ou seja, produtor de sentido, operação que está bem patente nas disjunções que aqui se des- cobrem: humano/divino, sagrado/profano, puro/impuro, fiel/infiel, clé- rigo/leigo, etc. Esse trabalho semântico cria uma geografia dicotomizante: a «cena» e o «obsceno». Para além de Eliade, encontramos em alguns textos de Wittgenstein a mes ma vontade de caracterizar o fenómeno religioso a partir deste seu poder se mân - tico – é por isso que, no seu Tractatus,o elemento místico se apresenta como o fulcro da religião. Não o misticismo visto como uma característica do vir- tuo sismo religioso, mas aquele elemento místico que se traduz na experiên- cia do mundo enquanto totalidade (cf. Wittgenstein, 1972, 173). Para Wittgen stein, é nuclear a distinção entre «o que se mostra» (indizível) e o «que se diz», que releva do domínio da ciência, ou seja, das coisas que podem ser descritas pela linguagem. «O que se mostra» não diz respeito ao conteúdo, que pode ser descrito pela linguagem, mas ao facto da própria linguagem. Esta filosofia da linguagem acaba por ser o suporte de uma teoria da religião: «6.44 – O que é místico não é o como é o mundo, mas o facto que ele é» (1972, 173). «6.522 – Seguramente que existe o inexprimível. O elemento místico é o que se mostra» (Ibid., 175). Para Wittgenstein não há uma linguagem antes da linguagem. Podemos cons truir um alfabeto, uma gramática, fixá-los num livro, mas isso não pas- 303 VIIMATRIZES DAS CRENÇAS EM PORTUGAL sará de uma convenção, pois esse edifício gramatical não terá qualquer necessidade que o fundamente, podia ser aquele ou outro. Como essa gra- mática não pode reclamar-se de uma qualquer legitimidade transcendente, só pode instaurar-se por meio de uma decisão que a autorize a si própria a decretar: «é assim.» Por isso, o facto da linguagem não pode ser dito, apenas mostrado, tal como um marco de referência num território: o marco não está lá para falar, mas para indicar o lugar de significação2. À pergunta «porquê o marco?», responde-se: «é assim, porque é assim.» Este é o problema de todas as origens, de todos os primeiros actos, gesto ou fala. Confrontamo- -nos com este estatuto de auto-referencialidade,quando algo já não pode ser des crito por um outro termo: «Morremos porque Enkidu morreu no come - ço do mundo.» O desenho iterativo do conteúdo dos mitos apela para o carácter indizível do fundamento e, por sua vez, as dimensões repetitivas da acção ritual denunciam que o fundamento apenas pode ser mostrado. Este itinerário pode contribuir para superar a oposição entre duas das vias epistemológicas mais persistentes, no que diz respeito ao estudo dos sistemas de crenças: a aproximação fenomenológica e estrutural em busca de arquéti- pos, ou a observação das funções sociais da religião enquanto sistema sim- bó lico. No primeiro caso, podemos pensar paradigmaticamente em Rudolf Otto, em cuja obra a religião é vista como uma experiência, o tremendum et fascinans, que vai para além da ordem do racional (cf. 1992). No segundo caso, poder-se-ia referir paradigmaticamente a obra de Alphonse Dupront – Le Sacré. Croisades et pèlerinages. Images et langages (1987) –, onde a religião é situada no campo das interdependências dos registos sociais e no campo da construção do simbólico (em particular, no âmbito da produção do poder simbólico). O próprio Émile Benveniste (cf. 1969b,179ss) descobriu, a partir das línguas indo-europeias, uma via dupla para abordar a religião: sacer/sanctus em latim, hierós/hágios em grego, hails/weihs em gótico, etc. No primeiro com- plexo semântico encontramos uma face positiva: «o que está carregado de pre sença divina»; no segundo, uma face negativa: «o que é interdito». No pri- meiro caso,podemos falar de fascínio, de constituição de representações que opõem à fragilidade humana a majestas da alteridade. No segundo com- plexo, faz-se apelo a uma ordem social onde um absoluto se torna princípio de gestão do relativo e do arbitrário. Estamos, em qualquer dos casos, per an- te a evidência do «quadro referencial» como modo de apreensão de uma 304 Alfredo Teixeira ordem para o mundo, que inclui e exclui, ou seja,que cria um sistema de di - fe renciação. Seja a religião esse fascínio perante a «alteridade», seja um modo de legitimação simbólica, inscreve a realidade num sistema referencial. O sistema de crenças que pode identificar-se na cultura portuguesa não é, neste ensaio, perseguido nos seus arquétipos ontologizantes. Antes se pro- cura identificar um quando referencial, traduzido num sistema de crenças, que se exprime na dialéctica do recebido e do vivido. Estamos, pois, mais in- teressados em identificar as dinâmicas sociais que dão corpo a esse capital simbólico,que exprime a diversidade cultural constituinte da sociedade por- tuguesa. Dir-se-ia que tal exercício nos permite descobrir o exótico, a alteri- dade, não no território do outro, mas do lado de cá da fronteira – é que as fron teiras tanto dividem como alimentam as transacções. Em consequência, o leitor tomará contacto com um arquivo seleccionado de documentação historiográfica e etnográfica, num itinerário de releitura de diversos resulta- dos de pesquisa, tomados como casos ou exemplos que nos permitem a des- coberta da estrutura na contingência e o jogo entre a permanência e a mu - dança3. Esse itinerário vai desdobrar-se em quatro eixos: a construção geo gráfica do sagrado; a medida dos ciclos e tempos da vida; as transacções entre mundos diversos que se exprimem na religiosidade tradicional; a re- composição dos sistemas de crenças num quadro social de ampla destradi- cionalização dos modos de vida. Axis Mundi Inventio: instituir a origem Falar dos santuários e outros lugares de peregrinação é identificar a geografia do sagrado numa cultura. É falar ainda da memória social que se estrutura na referência a uma origem fundadora e, nessa medida, organizadora de iden tidades. Os santuários, reconhecidos pelos crentes como lugares privile- giados da intervenção sobrenatural, vivem da manutenção/reelaboração de uma memória. Eles são, por assim dizer, o suporte material de uma memória crente. A partir deles gere-se um dos recursos mais persistentes da comuni- cação religiosa: a peregrinação. Dando origem à palavra «peregrinação», o vo - cábulo «peregrino» procede do latim clássico peregrinus, tornando-se pelegri- nus na Idade Média. Per ager, «através dos campos», e per eger, «para lá das 305 VIIMATRIZES DAS CRENÇAS EM PORTUGAL fronteiras», sinalizam a condição de estrangeiro. Este sentido permaneceu re - conhecível até ao século XI: o pelegrinus era o que não tinha «direito de ci - dade». É a época das cruzadas e das catedrais que transporta esta categoria para a identificação do cristão em demanda dos lugares configuradores da memória cristã (cf. Ries, 1997). A constituição de centros de peregrinação permite a diferenciação do espaço e, assim, a organização do movimento. Pode ainda fornecer os marcadores ne cessários à construção de identidades, uma vez que destas faz parte um ter- ritório e as formas de o praticar. A forma religiosa da peregrinação tem uma grande capacidade de integrar interesses e alianças individuais/familiares e contactos colectivos. Na cultura portuguesa, encontramos actualmente prá- ticas que dão conta de formas comunitárias de peregrinação, como os círios, contexto em que uma comunidade se desloca a uma santuário, no quadro de um empreendimento colectivo (Figs. 1 e 2 ). Pode, pois, compreender-se, como sublinha Pedro Penteado, que a organiza- ção da memória colectiva, a partir destes pólos de peregrinação, se apresente como um recurso simbólico disponível para a edificação de identidades Figura 1 Círios da Península de Setúbal a Nossa Senhora do Cabo 306 Alfredo Teixeira locais, regionais, nacionais, étnicas, ou noutras escalas de configuração da colectivi- dade: São múltiplas as formas de mo numentalização dos dife- rentes tipos de memória (individual, familiar, comu- nitária, institucional) nos centros de peregri nação. No limite, todo o santuá rio pode constituir um es paço destinado a imortalizar a relação dos homens com a po tên cia sacra ali «sediada» ou com a paisagem, para além das próprias relações de sociabilidade entre pere- grinos. Mas a maior parte das evocações concentra-se no principal objecto simb ó- Figura 2 lico dos santuários: a ima - Círios a Nossa Senhora de Tróia gem ou relíquia que consti- tui o eixo do culto, a que ge- ralmente estão associadas virtudes taumatúrgicas. Estes objectos, que se con- fundem com a própria entidade sagrada, remetem os fiéis para os primeiros tempos da Cristandade, acentuando a afeição que lhes foi votada por sucessi- vas gerações de um povo, unido numa mesma crença. Neste sentido, podem constituir pólos da memória cristã nacional (Penteado, 1997,338s). No terreno das identidades hispânicas, é necessário dar atenção à constru- ção de um sistema de lealdades em torno da memória de S. Tiago. Como mos trou José Mattoso (cf. 1997), a memória de S. Tiago permaneceu como uma dos traços mais identificadores da existência de um tempo hispânico, onde história e mito se combinam de forma entranhada. Os documentos mais antigos acerca da inventiodas relíquias de S.Tiago dão testemunho de um eremita, Paio, que terá descoberto num bosque da diocese de Iria, em cir cunstâncias que se descrevem fazendo uso de alguns estereótipos hierofâ- nicos, um oratório com o seu túmulo. A narrativa responde, certamente, ao 307 VIIMATRIZES DAS CRENÇAS EM PORTUGAL impulso etiológico de explicação de crenças e práticas à procura de legitima- ção. No entanto, a narrativa das origens refere-se a duas figuras históricas, permitindo que a inventio se possa ancorar num determinado momento histórico, entre 820-830 (cf. Ibid., 363s): Teodomiro, bispo de Iria, que desempe nha um papel importante no processo de sancionamento ecle- siástico das práticas emergentes; Afonso II, o Casto, rei das Astúrias, que,em 834,dotou de amplos privilégios a igreja construída sobre o monumento fune- rário. As re líquias de S. Tiago, representadas como vestígio de uma sobrena- turalidade re sidente nas culturas hispânicas, vinham dar um suplemento de verosimilhança à convicção divulgada por S. Jerónimo de que S. Tiago teria sido o após tolo evangelizador da Hispânia, e à crença de que aqui teria sido sepultado. A Galiza, que havida sido anexada ao reino das Astúrias, apresentava-se, por razões geográficas e sociopolíticas,como uma região onde a ortodoxia cristã tinha prosperado. A descoberta do túmulo de «tão venerável apóstolo» recompensava essa fidelidade: O corpo do mais categorizado dos Apóstolos depois de S. Pedro, que ali aparecia misteriosamente, mostrava que Deus não abandonava os seus filhos, até ali cas- ti gados com a violência da perseguição maometana por causa dos seus pecados, mas que agora podiam ter a esperança de recuperar a benevolência divina. O que antes ficara escondido, como que esperando que o merecimento dos fiéis da His - pânia fossem suficientes para se revelar, aparecia agora aos olhos de todos como sinal de que chegara a hora das bênçãos sobrenaturais (Mattoso, 1997, 365). O culto de Santiago de Compostela conheceu um sucesso em acentuado crescendo. Logo em 899,foi necessário construir um templo maior. As cinco estradas que asseguravam o acesso ao local, talvez de origem romana, traziam um número cada vez maior de peregrinos e, naturalmente, de ofertas. Os di - ferentes itinerários, terrestres e marítimos, vão ser pólos de desenvolvimento de mográfico, já que se tornará necessário encontrar contextos de acolhi- mento e apoio para uma população crente cada vez mais entusiasmada com o culto de Santiago. Os itinerários além-Pirinéus terão uma particular rele- vância,já que a França era o reino mais povoado da Europa. A memória de S.Tiago transporta as culturas hispânicas para o centro da Cristandade. Em- bora não se possa reduzir a essa dimensão, o interesse pelo túmulo deste apóstolo ligava-se providencialmente à luta que se vivia na fronteira hispâ- nica da Cristandade. Como sublinha José Mattoso: 308

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executório temporário e sempre renovável (cf. Ibid. BASTIDE, Roger (1968), «Anthropologie religieuse», in Encyclopaedia Universalis II,. Paris, pp
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