c A p T u L o t\ 'r-,'r " INr~OOU~AO O CUllU~l O rOlírlco NO~MOYIMcNm~ C ~OCIAI~lAIINO·AMcRICANO~ Sonia E.Alvarez Evelina Dagnino Arturo Escobar entramos no novo milênio, que futuro aguarda latino-americanas? Níveis sem precedentes de violência, pobreza, discriminação e exclusão parecem indicar que o "desempenho" e o próprio projeto das "novas" demo- cracias da América Latina estão longe de satisfatórios. É precisa- mente sobre os possíveis projetos alternativos para a democracia que se trava boa parte da luta política na América Latina de hoje. Vamos sustentar que os movimentos sociais desempenham um papel crítico nessa luta. O que está fundamentalmente em disputa são os parâmetros da democracia, são as próprias fronteiras do que deve ser definido como arena política: seus participantes, instituições, processos, ·agenda e campo de ação. Os programas de ajuste econômico e social, inspirados pelo neoliberalismo, entraram nessa disputa como poderosos e ubíquos competidores. Em resposta à suposta lógica "inevi-: tável" imposta pelos processos de globalização econômica, as políticas neoliberais introduziram um novo tipo de relação entre o Estado e a sociedade civil e apresentaram uma definição distintiva da esfera pública e-seus 'particÍpantes, baseada numa concepção minimalista do Estado e da democracia. Enquanto a sociedade civil é obrigada a assumir as respon- sabilidades sociais evitadas agora pelo Estado neoliberal em processo de encolhimento, sua capacidade como esfera política crucial para o exerci CIO da cidadania democrática está cada NOVO CONCEITO DO CULTURAL NAS vez mais desenfatizada. Nessa concepção, os cidadãos devem PESQUISAS SOBRE MOVIMENTOS SOCIAIS fazer-se por seus próprios esforços particulares e a cidadania é LATINO-AMERICANOS cada vez mais equiparada à integração individual no mercado. Uma concepção alternativa de cidadania - apresentada por vários dos movimentos discutidos neste volume - vê as lutas DA CULTURA À POLÍTICA CULTURAL democráticas como contendo uma redefinição não só do sistema político, como também das práticas econômicas, sociais e cultu- livro pretende antes de mais nada ser uma investigação rais que possam engendrar uma ordem democrática para a a relação entre cultura e política. Afirmamos que essa sociedade como um todo. Essaconcepção chama nossa atenção ser explorada produtivamente sondando a para uma ampla gama de esferas públicas possíveis onde a nsnareza das políticas culturais postas em prática - com mais cJ.~tezà.e em maior ou menor extensão - por todos cidadania pode ser exercida e os interesses da sociedade não $- sociais e examinando o potencial dessa política somente representados, mas também fundamentalmente rei omover a mudança social. Anoção inglesa de modelados. O campo de ação das lutas democratizantes se sédifícil de traduzir em português. Na América estende para abranger não só o sistema político, mas também o ssão "política cultural" designa normalmente as futuro do "desenvolvimento" e a erradicação de desigualdades stadaou de outras instituições com relação à cultura, sociais tais como asde raça e gênsro, profundamente moldadas ~daum terreno específico eseparado da política, muito por práticas culturais e sociais. {ssa concepção ampliada reco- rre.qÜehtemente reduzido à produção e consumo de bens cul- nhece ainda que o processo de construção da democracia não é ttlr~s: arte, cinema, teatro etc.Aqui,utilizamos "políticacultural" homogêneo, masinternamente descontínuo e desigual: esferas e parachamar a atenção para o laço constitutivo entre cultura dimensões diferentes têm ritmos distintos de transformação, e política, e a redefinição de política que essa visão implica. levando alguns analistas a afirmar que esse processo é ineren- Esse laço constitutivo significa que a cultura entendida como temente "disjuntivo"(Holston, Caldeira, 1999;ver também jelin, concepção do mundo, como conjunto de significados que Hershberg, 1996). integram práticas sociais, não pode ser entendida adequada- Emalguns casos, os movimentos sociais não somente conse- mente sem a consideração das relações de poder embutidas nessas práticas. Por outro lado, a compreensão da configuração guiram traduzir suas agendas em políticas públicas e expandir dessas relações de poder não é possível sem o reconhecimento as fronteiras da política institucional, como também lutaram de seu caráter "cultural" ativo, na medida em que expressam, de maneira significativa para redefinir o próprio sentido de produzem e comunicam significados. Com a expressão "política noções convencionais de cidadania, representação política e cultural" nos referimos então ao processo pelo qual o cultural participação e, em conseqüência, da própria democracia. se torna fato político. Ambos os processos de tradução das agendas dos movimentos As ciências sociais convencionais não têm explorado siste- em políticas e de redefinição do significado de "desenvolvi- maticamente as conexões entre cultura e política. Aludimos a mento" ou "cidadão",por exemplo, acarretam o estabelecimento esse fato em trabalhos anteriores (Escobar, Alvarez, 1992; de uma "política cultural" - conceito desenvolvido no campo Dagnino, 1994).Éimportante discutiramudança dasconcepções dos estudos culturais que, vamos sustentar, pode lançar uma luz de cultura e política na antropologia, na literatura e em outras nova sobre os objetivos culturais e políticos dos movimentos disciplinas como pano de fundo para entender como o conceito sociais na luta contemporânea pelo destino da democracia de política cultural surgiu de um intenso diálogo interdisciplinar na América Latina. e de uma diluição de fronteiras que ocorreu na última década, promovido por várias correntes pós-estruturalistas. Em nossa 17 antologia anterior, salientamos que o conceito convencional críticas - como vamos explicar adiante - é justo dizer que o.s da cultura em várias disciplinas como estática - embutida estudos culturais não deram importância suficiente aos movi- num conjunto de textos, crenças e artefatos canônicos - contri- mentos sociais como aspecto vital da produção cultura!.l buiu muito para tornar invisível as práticas culturais cotidianas Anoção de cultura é também debatida ativamen:e na antr~- como um terreno para - e fonte de - práticas políticas. pologia. A antropologia clássica aderiu a uma .eplstemologla Teóricos da cultura popular como De Certeau (984), Fiske (989) realista e a uma compreensão relativamente fixa da cultura e Willis (990) transcenderam essa compreensão estática para como encarnada em instituições, práticas, rituais, símbolos ressaltar como a cultura compreende um processo coletivo e etc. A cultura era vista como pertencendo a um grupo e incessante de produção de significados que molda a experiência limitada no tempo e no espaço. Esse paradigma de cultura social e configura as relações sociais. Assim, os estudos de orgânica sofreu golpes significativos com o desenvolv~mento cultura popular afastaram a pesquisa das humanidades da ênfase ~~.~~~E~pologia estrutural, interpretativa e aquela orientada na "alta cultura", originária da literatura e das artes, e a apro- .. <ec0t1<:>Il1ipaolítica. Apoiando-se na hermenêutica e na ximaram de uma compreensão mais antropológica da cultura. ·Ea.~ntropologia interpretativa avançou para uma Essa aproximação já fora propiciada pela caracterização feita ,$ãe>/não-positivista, parcial da cultura, em parte por Raymond Williams da cultura como "o sistema significante :~<ia.pela metáfora das "culturas como texto". ~a pelo qual necessariamente (embora entre outros meios) urna década de 1980,um outro deslocamento da noçao ordem social é comunicada, reproduzida, experimentada e bus~ou levar em conta o fato de que "ninguém pode explorada" 0981: 13).Como observam Glenn Jordan e Chris breve r sobre os outros como se fossem objetos ou Weedon, "Nesse sentido, cultura não é uma esfera, mas uma tÓ$$eparados" e passou a desenvolver "concepções novas dimensão de todas as instituições - econômicas, sociais e d.~;2ultura como interativa e histórica" (Clifford, Marcus, políticas. Cultura é um conjunto de práticas materiais que 1986: 25). Desde então, a consciência crescente da globalização da produção cultural e econômica levou os antropólogos a constituem significados, valores e subjetividades" 0995: 8). questionar noções espaciais de cultura, dicotomias entre um Em obra recente, a definição de Williams é aprofundada "nós" homogêneo e "outros" separados, e qualquer ilusão de para concluir que fronteiras claras entre grupos, o eu e o outro (ver Fox, 1991; Gupta, Ferguson, 1992).2 nos estudos culturais ... a cultura é entendida ao mesmo tempo Um dos aspectos mais úteis da compreensão pós-estrutu- como um modo de vida - abrangendo idéias, atitudes, lingua- ralista da cultura na antropologia é sua insistência na análise gens, práticas, instituições e estruturas de poder - e como uma ampla gama de práticas culturais: formas artísticas, textos, da produção e da significação, de significados epráticas, como cânones, arquitetura, mercadorias de produção em massa e aspectos simultâneos e inextricavelmente ligados da realidade assim por diante. (Nelson, Treichler, Grossberg, 1992: 5) social. Nessa linha, Kay Warren (neste volume) sustenta que as condições materiais são vistas com freqüência como "mais Essa caracterização da cultura aponta para práticas e repre- autônomas, reais e básicas do que qualquer outra coisa. 'Mas sentações concretas como sendo centrais para a cultura. e a exploração?' é a resposta comum dos críticos, por meio da Contudo, na prática, sua ênfase principal continua nas formas qual eles buscam transmitir uma urgência materialista que artísticas e textuais. Isso explica, acreditamos, várias críticas supera as questões culturais, por mais valiosas que sejam." feitas aos estudos culturais, tais como a dependência excessiva, Warren prossegue sugerindo que as demandas materiais. dos aparentemente problemática, em etnografias "rápidas" (quick and movimentos sociais "são, na prática, construções seletivas dirty), a proeminência das análises textuais e a importância politicamente apresentadas, transmitidas em campos de relações atribuída às indústrias culturais e aos paradigmas de recepção e sociais que também definem sua significação" e defende uma consumo de produtos culturais. Seja qual for a validade dessas conceituação alternativa que "confrontaria as questões culturais 18 19 lá embaixo" ao qual Hall quer que os estudos culturais retornem, (e interesses políticos) inscritas na construção de políticas saindo do "ar limpo da significação e textualidade" 0992: materialistas, assim como as preocupações materialistas (e 278). Hall reintroduz assim a política no âmbito dos estudos interesses políticos) inscritas nos enquadramentos culturais culturais, não somente porque sua formulação proporciona da política". Enquanto os antropólogos têm geralmente tentado um meio de manter as questões teóricas e políticas em tensão, entrelaçar as análises "do simbólico e do material", os avanços mas porque exorta os teóricos - em particular, os propensos na teoria do discurso e da representação têm proporcionado demais a permanecer no nível do texto e da política da repre- ferramentas para exposições mais matizadas da constituição sentação - a se engajarem no "algo asqueroso lá embaixo" mútua - e inseparável - de significados e práticas (ver como uma questão tanto teórica como política. Comaroff, Comaroff, 1991 para um exemplo excelente dessa Em outras palavras, a tensão entre o textual e o que lhe é abordagem). subjacente, entre representação e seu fundamento, entre signi- Esse desenvolvimento traz lições úteis para os estudos ~~S~~8~~PI:áticas,entre narrativas e atores sociais, entre discurso culturais; na verdade, combina bem com o que é percebido . .'aispode ser resolvida no terreno da teoria. Mas o como sendo um tema central do campo, a saber, o que as 'ente" tem mão dupla. Se há sempre "algo mais" metáforas da cultura e textualidade ao mesmo tempo ajudam a,algo que não é bem captado pelo textual! a explicar e não conseguem resolver. A questão está expressa :[tarnbém algo mais além do assim chamado mate- com eloqüência na exposição retrospectiva que Stuart Hall ê sempre cultural e textual. Veremos a importância faz do impacto da "virada lingüística" nos estudos culturais. são nos casos dos movimentos sociais dos pobres e Para Hall, a descoberta da díscursividade e da textualidade ;~::idos,para quem o primeiro objetivo da luta é amiúde levou à percepção da "importância crucial da linguagem (...) são pessoas com direitos, de forma a recuperar para qualquer estudo da cultura" 0992: 283).Foi assim que e estatuto de cidadãos e até de seres humanos. os praticantes dos estudos culturais se viram sempre "condu- outras palavras, essa tensão é resolvida apenas provisoria- zidos de volta à cultura". Contudo, apesar da importância da mente na prática. Sustentamos que os movimentos sociais são metáfora do discursivo, para Hall uma arena crucial para a compreensão de como esse entrelaça- mento, talvez precário, mas vital, do cultural e do político ocorre na prática. Ademais, acreditamos que a conceituação há sempre algo descentrado em relação à cultura, à linguagem, à textualidade e àsignificação, que escapa e se evade às tentativas e a investigação das políticas culturais dos movimentos sociais de ligá-lo, direta e imediatamente, com outras estruturas (...). é uma digressão teórica promissora que leva em conta a exor- [Devemos supor que] a cultura funcionará sempre através de tação de Hall. suas textualidades - e, ao mesmo tempo, que a textualidade nunca é suficiente (...). A não ser que e até que se respeite o DA POLÍTICA CULTURAL À CULTURA POLÍTICA ~e~locamento necessário da cultura e, contudo, se fique sempre Irritado pelo seu fracasso em reconciliar-se com outras questões Apesar de seu compromisso com uma compreensão mais importantes, com outras questões que não podem nunca ser ampla de cultura, boa parte dos estudos culturais, em particular plenamente recuperadas pela textualidade crítica em suas elabo- nos Estados Unidos, continua a ser fortemente orientada para o rações, os estudos culturais como projeto, como intervenção, textual. Isso tem a ver com fatores disciplinares, históricos e permanecem incompletos.' 0992: 284) institucionais (Yúdice, neste volume). Esse viés .penetra também o uso do conceito de política cultural. Em sua utilização atual Em nossa opinião, o dito de Hall de que cultura e textuali- - apesar do interesse dos estudiosos da cultura em examinar dade "nunca são suficientes" refere-se à dificuldade de abordar as relações entre práticas culturais e poder e seu compromisso por meio da cultura e da textualidade, "outras questões impor- com a transformação social -, a expressão "política cultural" tantes", tais como as estruturas, formações e resistências que refere-se amiúde a lutas incorpóreas em torno de significados estão inevitavelmente permeadas pela cultura, o "algo de ruim 21 20 e representações, onde o que está politicamente em jogo para novas de sociabilidade. Asopções favoritas eram os mov~mentos atores sociais concretos é, às vezes, difícil de discernir. fudígenas, étnicos, ecológicos, femininos, h?mossexual.s e de <direitos humanos. Ao contrário, os movImentos ulba~os, Concordamos com a definição de política cultural proposta êa.rnponeses, operários e de bairro, entr~ outros, eral~ VIstos por Jordan e Weedon em seu livro recente sobre o tema: FOrnolutas mais convencionais por necessídades e recu.lsos. Os ~~pítulos seguintes mostram claramente que os movlmen:os A legitimação das relações sociais de desigualdade e a luta p.bpulares urbanos de favelados, de mulheres e outros, tan;bem para transformá-las são preocupações centrais da POLÍTICA rtl.em movimento forças culturais. Em suas lutas continuas CULTURAL. As políticas culturais determinam fundamentalmente ()siprojetos dominantes de construção da nação, dese~- os significados das práticas sociais e, além disso, quais grupos e indivíduos têm o poder para definir esses significados. Elas ~toerepressão, os atores populares mobiliza~-s~ .coletl- preocupam-se também com subjetividade e identidade, uma base em conjuntos muito diferentes de significados vez que a cultura desempenha um papel central na constituição forma. asidentidades e estratégias coletivas de do sentido de nós mesmos C..). As formas de subjetividade em s6dais estão inevitavelmente vinculadas à que habitamos desempenham um papel crucial na determinação de se aceitamos ou contestamos as relações de poder existentes. Ademais, para grupos marginalizados e oprimidos, a construção res exploram as maneiras como políticas de identidades novas e resistentes é uma dimensão essencial de tram em ação quando atores coletivos se uma luta política mais ampla para transformar a sociedãde. talvez mais evidentes em movimentos (1995: 5-6) icações com base na cultura - como no ., negro colombiano discutido por Libia Porém, ao concentrar sua análise na "concepção dominante e Arturo Escobar, ou no movimento de cultura", que areduz a "música, literatura, pintura e escultura, por KayWarren- ou naqueles que utilizam teatro e cinema", agora ampliada para incluir aindústria cultural, meio de mobilizar ou engajar participantes, a "cultura popular" e os "meios de comunicação de massa", ilustram o caso dos movimentos afro-brasileiros discu- Jordan e Weedon parecem compartilhar a suposição de que a por Olívia Cunha e a COCEI (Coalizão de Operários, política da representação - tal como recolhida de formas e Camponeses e Estudantes do Istmo) do México, examinada análises textuais- temumvínculo direto e clarocom oexercício Jeffrey Rubin. do poder e, de modo correspondente, com a resistência a ele. No Porém, queremos sublinhar que as políticas culturais são entanto, nem sempre esses vínculos são explicitados de modo também postas em ação quando os movimentos intervêm em a iluminar as posições reais ou potenciais e as estratégias debates políticos, tentam dar novo significado às interpretações políticas de determinados atores sociais. Sustentamos que culturais dominantes da política, ou desafiam práticas políticas esses vínculos são evidentes nas práticas, nas ações concretas estabelecidas. George Yúdice, David Slater e Gustavo Lins dos movimentos sociais latino-americanos e, portanto, queremos Ribeiro,por exemplo, chamam nossa atenção para a "habilidosa estender o conceito de política cultural para analisar suas guerra de guerrilhas na mídia" desencadeada pelos zapatistas intervenções políticas. no combate ao neoliberalismo e na promoção da democrati- É importante enfatizar o fato de que na América Latina de zação no México. Sonia Alvarez enfatiza que as batalhas polí- hoje, todos os movimentos sociais põem em prática uma política ticas travadas pelas feministas latino-americanas que em anos cultural. Seria tentador restringir o conceito de política cultural recentes penetraram no Estado ou no establisbrnent do desen- àqueles movimentos que são mais claramente culturais. Nos volvimento internacional devem ser entendidas também como anos 80, essa restrição resultou numa divisão entre movimentos lutas para dar novo significado a noções predominantes de sociais "novos" e "velhos". Os novos eram aqueles para os cidadania, desenvolvimento e democracia. Jean Franco (1998) quais a identidade era importante, aqueles engajados em "novas defende posição semelhante ao sublinhar que o feminismo formas de fazer política" e os que contribuíam para formas 23 22 deveria ser descrito como "uma posição (não exclusiva das podem ser a fonte de processos que devem ser aceitos como mulheres) que desestabiliza tanto o fundamentalismo como as políticos. Que isso seja raramente visto como tal é mais um novas estruturas opressivas que estão surgindo com o capita- reflexo das definições entranhadas do político, abrigadas nas lismo tardio", e que a confrontação do feminismo com essas culturas políticas dominantes, do que uma indicação da força estruturas "envolve mais urgentemente do que nunca a luta social, eficácia política ou relevância epistemológica da política pelo poder interpretativo". A análise de Sérgio Baierle dos cultural. A cultura é política porque os significados são consti- movimentos populares urbanos em Porto Alegre, Brasil, concei- tutivos dos processos que, implícita ou explicitamente, buscam tua-os como "espaços estratégicos onde se debatem concepções redefinir o poder social. Isto é, quando apresentam concepções diferentes de cidadania e democracia", e Maria Célia Paoli e alternativas de mulher, natureza, raça, economia, democracia ou Vera Telles enfatizam da mesma forma os diferentes modos em cidadania, que desestabilizam os significados culturais domi- que movimentos populares e sindicatos se engajam simultanea- nantes, os movimentos põem em ação uma política cultural. mente em lutas por direitos e significações. Falamos de formações de política cultural neste sentido: Como afirma Evelina Dagnino, o conceito de política cultural elas são o resultado de articulações discursivas que se originam é importante para avaliar o alcance das lutas dos movimentos em práticas culturais existentes - nunca puras, sempre híbridas, sociais pela democratização da sociedade e para destacar as mas apesar disso, mostrando contrastes significativos em relação implicações menos visíveis e amiúde negligenciadas dessas às culturas dominantes - e no contexto de determinadas lutas. Ela sustenta que as contestações culturais não são meros condições históricas. Evidentemente, as políticas culturais "sub-produtos" da luta política, mas ao contrário, são consti- existem em movimentos sociais da direita e até mesmo dentro tutivas dos esforços dos movimentos sociais para redefinir o de formações estatais; os neo-conservadores, por exemplo, sentido e os limites do próprio sistema político. Jean Franco pretendem "re-sacralizar a cultura política" por meio da "defesa (1998) observa que ou recriação de um mundo da vida tradicionalista e autoritário" (Cohen, Arato, 1992: 24). Da mesma forma, Jean Franco (1998) as discussões sobre o uso de palavras parecem muitas vezes mostra como, durante os preparativos para a Quarta Conferência catação de piolho; a linguagem parece ser irrelevante para as Mundial das Mulheres, os movimentos conservadores e funda- lutas "reais". Contudo, o poder de interpretar e a invenção e apropriação ativa da linguagem são instrumentos cruciais para mentalistas uniram-se ao Vaticano para solapar o feminismo os movimentos emergentes que buscam visibilidade e reco- "pondo em cena um espetáculo aparentemente secundário a nhecimento para as concepções e ações que se filtram de seus saber, um ataque ao uso da palavra 'gênero": O artigo de discursos dominantes. Verónica Schild neste volume chama a atenção para os esforços do neoliberalismo no Chile para reestruturar a cultura tanto Com efeito, como David Slater sugere em seu artigo, "as como a economia. lutas sociais podem ser vistas como 'guerras de interpretação'''. Mas o ângulo mais importante para analisar as políticas Nossa definição de política cultural é ativa e relacional. culturais dos movimentos sociais talvez seja em relação com Interpretamos política cultural como o processo posto em ação seus 'efeitos sobre a(s) culturats) política(s). Cada sociedade quando conjuntos de atores sociais moldados por e encar- é.marcada por uma cultura política dominante. Para os propó- nando diferentes significados e práticas culturais entram em sitos deste livro, definimos cultura política como a construção conflito uns com os outros. Essa definição supõe que signifi- social particular em cada sociedade do que conta como "polí- cados e práticas - em particular aqueles teorizados como tico" (ver também Slater, 1994a; Lechner, 1987a). Desse modo, marginais, oposicionais, minoritários, residuais, emergentes, a cultura política é o domínio de práticas e instituições, reti- alternativos, dissidentes e assim por diante, todos concebidos radas da totalidade da realidade social, que historicamente vêm em relação a uma determinada ordem cultural dominante - a ser consideradas como propriamente políticas (da mesma 24 25 maneira que outros domínios são vistos como propriamente 225). Eles podem mobilizar construções de indivíduos, direitos, "econômicos"! "culturais", e "sociais"). Acultura política domi- economias e condições sociais, que não podem ser definidas nante do Ocidente foi caracterizada como "racionalista, uni- estritamente dentro dos paradigmas da modernidade ocidental versalista e individualista" (Mouffe, 1993: 2).4 Como veremos, (ver Slater, 1994a e Warren, neste volume; Dagnino, 1994a, as formas dominantes de cultura política na América Latina 1994b).5 diferem um pouco - em alguns casos, talvez de modo signifi- Asculturas políticasda AméricaLatinasão muito influenciadas cativo - dessa definição. por aquelas que prevaleceram na Europa e na América do Aspolíticas culturais dos movimentos sociais tentam amiúde Norte e, contudo, se diferenciam delas. Essa influência está desafiar ou desestabilizar as culturas políticas dominantes. claramente expressa nas referências recorrentes a princípios Namedida em que os objetivos dos movimentos sociais contem- tais como racionalismo, universalismo e individualismo. porâneos àsvezes vão além de ganhos materiais e institucionais Porém, na América Latina, esses princípios combinaram-se percebidos; na medida em que esses movimentos sociais afetam historicamente de maneira contraditória com outros princípios as fronteiras da representação política e cultural, bem como destinados a garantir a exclusão social e política e até a controlar a prática social, pondo em questão até o que pode ou não a definição do que conta como político em sociedades extrema- mente hierarquizadas e injustas. Essa hibridização contraditória pode ser considerado político; finalmente, na medida em que a~~entou a análise sobre a adoção peculiar do liberalismo as políticas culturais dos movimentos sociais realizam contes- como "idéias fora do lugar" (Schwarz, 1988) e, com respeito a tações culturais ou pressupõem diferenças culturais - então tempos mais modernos, a análise das democracias de "fachada" devemos aceitar que o que .e,stá em questão para os movi- (Whitehead, 1993). mentos sociais, de um modo profundo, é uma transformação da cultura política dominante na qual se movem e se constituem Esse liberalismo "fora de lugar" serviu às elites latino-ame- ricanas do século XIXao mesmo tempo como resposta às pres- como atores sociais com pretensões políticas. Se os movi- sões internacionais e como meio de manter um poder político mentos sociais pretendem modificar o poder social e se a excludente, na medida em que se baseava e coexistia com cultura política também abrange campos institucionalizados uma concepção oligárquica de política, transferida das práticas para a negociação do poder, então os movimentos sociais sociais e políticas do latifúndio (Sales, 1994), onde os poderes necessariamente enfrentam a questão da cultura política. Em pessoal, social e político se superpunham, constituindo uma muitos casos, os movimentos sociais não exigem inclusão, única e mesma realidade. Essa falta de diferenciação entre o mas antes buscam reconfigurar a cultura política dominante. público e o privado - onde não só o público é apropriado Aanálise de Baierle dos movimentos populares - que encontra pelo privado, como as relações políticas são percebidas como eco nos capítulos de Dagnino e Paoli e Telles - sugere que extensões das relações privadas - torna as relações de favor, esses movimentos podem, às vezes, desempenhar um papel o personalismo, o clientelismo e o paternalismo, práticas fundacional, "destinado a transformar a própria ordem política políticas comuns. Além disso, ajudadas por mitos como o da na qual atuam" e destaca que os "novos cidadãos" que emergem "democracia racial", essas práticas obscureceram a desigualdade dos fóruns de participação e conselhos populares de Porto e a exclusão. Em conseqüência, grupos subalternos; excluídos, Alegre e outras cidades brasileiras questionam radicalmente passaram a ver a política como "negócio privado" das elites o modo como o poder deve ser exercido, em vez de tentar (como diz Baierle, como "o espaço privado' dos doutores"), meramente "conquistá-lo". resultando numa imensa distância entre sociedade civil e As políticas culturais dos movimentos sociais podem ser política - até mesmo em momentos em que os mecanismos vistastambém como fornentadoras de modernidades alternativas. dominantes de exclusão deveriam ser aparentemente redefinidos, Como diz Fernando Calderón, alguns movimentos colocam a como, por exemplo, no advento da República (Carvalho, 1991). questão de como ser ao mesmo tempo moderno e diferente - Quando, nas primeiras décadas do século XX,a urbanização "como entrar en la modernidad sin dejar de ser índios" (1988: e a industrialização tornaram inevitável a incorporação das 7h 27 Procedimentos burocráticos e tecnocráticos de tomada de massas, não surpreende que essa mesma tradição tenha decisões ofereceram um fundamento adicional para restringir inspirado o novo arranjo político-cultural predominante: o ainda mais a definição de política e seus participantes. populismo. .Tendo de compartilhar seu espaço político com participantes anteriormente excluídos, as elites latino-ameri- Organizadas basicamente em torno da administração da canas criaram mecanismos para uma forma subordinada exclusão, as culturas políticas dominantes da América Latina de inclusão política na qual relações personalizadas com _ com talvez umas poucas exceções de vida curta - não os líderes políticos garantiam o controle e a tutela sobre podem ser consideradas exemplos de ordenação hegemônica uma participação popular heterônoma. Maisdo que a alegada da sociedade. Na verdade, todas estiveram comprometidas, "irracionalidade das massas", o que estava por trás do em diferentes formas e graus, com o autoritarismo social surgimento da liderança populista - identificada pelos profundamente enraizado que permeia a organização excludente excluídos como seu "pai" e salvador - era ainda a lógica das sociedades e culturas latino-americanas. dominante do personalismo. É significativo que os movimentos sociais que surgiram da Associada a esses novos mecanismos de representação sociedade civil na América Latina ao longo das duas últimas política e às reformas econômicas necessárias à modernização décadas - tanto em países sob regime autoritário como em - em relação às quais o liberalismo econômico tinha revelado nações formalmente democráticas ---:"tenham desenvolvido seus limites (Flisfich,Lechner,Moulian, 1986)- uma redefíníção versões plurais de uma cultura política que vão muito além do papel do Estado tornou-se um elemento crucial nas culturas do (re)estabelecimento da democracia formal liberal. Assim, políticas latino-americanas. Copcebido como o promotor de as redefinições emergentes de conceitos como democracia e mudanças a partir de cima e assim, como o agente primário cidadania apontam para direções que confrontam a cultura da transformação social, o ideal de um Estado forte e inter- autoritária por meio da atribuição de novo significado às vencionista, cujas funções eram vistas como incluindo a noções de direitos, espaços públicos e privados, formas de "organização" - e, em algumas concepções, a própria "criação" sociabilidade, ética, igualdade e diferença e assim por diante. - da sociedade, passou a ser compartilhado por culturas Esses processos múltiplos de re-signíficação revelam claramente políticas populistas, nacionalistas e desenvolvimentistas, em definições alternativas do que conta como político. suas versões tanto conservadoras como de esquerda. Adimensão assumida por essa centralidade do Estado na maioria dos projetos políticos inspirou os analistas a falar de um "culto A RECONCEITUAÇÃO DO POLÍTICO NO ESTUDO do Estado", ou estadolatria (Coutinho, 1980; Weffort, 1984). DOS MOVIMENTOS SOCWS LATINO-AMERICANOS A definição do que conta como "político" tinha agora uma referência nova e concreta, agravando as dificuldades para Ao explorar o político nos movimentos sociais, devemos o surgimento de novos sujeitos politicamente autônomos ver a política como algo mais que um conjunto de atividades e, dessa forma, aumentando a exclusão que o populismo específicas (votar, fazer campanha ou lobby) que ocorrem em pretendia resolver por meio da concessão de direitos polí- espaços institucionais claramente delimitados; tais como parla- ticos e sociais. mentos e partidos; ela deve ser vista como abrangendo também Sob pressões internacionais para "manter vivos a democracia lutas de poder realizadas em uma ampla gama de espaços cul- e ocapitalismo naAméricaLatina",surgiramnasdécadas de 1960 turalmente definidos como privados, sociais, econômicos, e 70 regimes militares em quase toda a região, numa reação culturais e assim por diante. O poder, por sua-vez, não deve às tentativas de radicalizar as alianças populistas ou de explorar ser entendido como "blocos de estruturas institucionais, com alternativas socialistas democráticas. O autoritarismo exacer- tarefas pré-estabelecidas (dominar, manipular), ou como meca- bado transformou a exclusão política em eliminação política, nismos para impor ordem de cima para baixo, mas antes como por meio da repressão estatal e da violência sistemática. 29 uma relação social difusa por todos os espaços" (García Canclini, (Inglehart, 1988), o conceito de cultura política buscou eliminar 1988: 474). No entanto, uma concepção descentrada do poder e os preconceitos "ocidentalizantes" do passado (Almond, Verba, da política não deve desviar nossa atenção do modo como os 1963, 1980). Contudo, ele permanece em larga medida restrito movimentos sociais interagem com a sociedade política e o àquelas atitudes e crenças sobre aquele âmbito restrito (o sistema político estritamente delimitado) que a cultura domi- Estado e "não deve nos levar a ignorar a maneira como o nante definiu historicamente como propriamente político e poder se sedimenta e se concentra em instituições e agentes àquelas crenças que sustentam ou solapam as regras estabe- sociais" (475). lecidas de um determinado "jogo político": Desse modo, nossos autores dão a devida atenção às relações dos movimentos com os poderes sedimentados de partidos, ins- tituições e com o Estado, ao mesmo tempo em que sugerem A cultura política envolve várias orientações psicológicas dife- rentes, incluindo elementos mais profundos de valor e crença que o exame dessa relação "nunca é suficiente" para apreender sobre o modo como a autoridade política deveria ser estruturada o impacto político ou a significação dos movimentos socíaís." e como o eu deveria se relacionar com ela, e atitudes, senti- Como argumenta convincentemente David Slater(neste volume), mentos e avaliações mais temporárias e mutáveis relacionadas a afirmação de que os movimentos sociais contemporâneos com o sistema político. (Diarnond, Linz, 1989: 10) desafiaram ou refizeram as fronteiras do político Assim, para muitos cientistas políticos como Larry Diarnond eJuan Linz, "valores e disposições comportamentais (em parti- pode significar, por exemplo, que os movimentos podem sub- cular, no nível da elite) de compromisso, flexibilidade, tole- verter os dados tradicionais do sistema político - poder estatal, partidos políticos, instítuíçôes formais - ao contestar a legiti- rância, conciliação, moderação e contenção" contribuem signifi- midade e o funcionamento aparentemente normal e natural de cativamente para a "manutenção da democracia" (12-13). seus efeitos na sociedade. Mas também o papel de alguns Essas concepções de cultura política tomam o político como movimentos sociais foi o de revelar os significados ocultos do dado e não enfrentam um aspecto chave das lutas dos movi- político encerrados no social. mentos explorado por vários dos capítulos aqui reunidos. Como observa Slater C1994a),com muita freqüência, a política Da mesma forma que buscam avançar para além da com- é referida de um modo que já pressupõe um significado que preensão estática da cultura e da política (textual) da repre- é consensual e fundante. E concordamos com a avaliação de sentação, os capítulos seguintes transgridem as concepções Norbert Lechner de que "aanálise das questões políticas levanta estreitas e reducionistas de política, cultura política, cidadania necessariamente a questão de por que uma determinada questão e democracia, que predominam tanto na ciência política tradi- é política. Assim, podemos supor que a cultura política condi- cional como em algumas versões das abordagens que enfatizam ciona e expressa precisamente essa determinação" (1987a: 8). seja a mobilização de recursos ou o processo político." Em Apolítica cultural posta em prática pelos movimentos sociais, ao vez de avaliar ou medir o "sucesso" dos movimentos sociais contestar e dar novo significado ao que conta como político e principal ou exclusivamente com base no modo como suas quem - além da "elite democrática" - define as regras do demandas são processadas - e se o são - no interior da jogo político, pode ser crucial, sustentamos, para promover política de representação (institucional), nossos autores se culturas políticas alternativas e, potencialmente, ampliar e apro- empenham em lançar nova luz sobre o modo como os discursos fundar a democracia na América Latina (ver também Avritzer, e práticas dos movimentos sociais podem desestabilizar e 1994; Lechner, 1987a, 1987bj Dagníno, 1994). Rubin (neste assim - pelo menos parcialmente - transformar os discursos volume) afirma, por exemplo, que foi "ofomento de uma cultura dominantes e as práticas excludentes da "democracia [latino- política nova e híbrida que permitiu à COCEI manter seu poder americana] realmente existente" (Frase r, 1993). mesmo quando a reestruturação econômica neoliberal e a Tendo experimentado uma espécie de renascimento nos desmobilização dos movimentos populares dominavam a campos da ciência política e da sociologia em anos recentes política no resto do México e da América Latina". 30 31 Ademais, embora as disposições culturais da elite observadas teorizar sobre as transições democráticas e explorar o modo por Diamond e Linz pudessem sem dúvida ajudar a fortalecer como "os limites da democratização estão profundamente incrus- a democracia representativa com base na elite, elas nos dizem tados nas concepções populares do corpo, da punição e dos pouco sobre como padrões e práticas culturais mais amplos direitos individuais". A penetração das noções culturais do que promovem o autoritarismo social e a desigualdade notória "corpo e indivíduo ilimitados", sustenta Caldeira, impede obstruem o exercício da cidadania democrática significativa seriamente a consolidação dos direitos civis e individuais para cidadãos que não pertencem à elite (Sales, 1994; Telles, básicos no Brasil: "Essa noção é reiterada não somente como 1994; Oliveira, 1994; Hanchard, 1994). As rígidas hierarquias meio de exercício do poder nas relações interpessoais, mas sociais de classe, raça e gênero que caracterizam as relações também como um instrumento para contestar de modo explícito sociais latino-americanas impedem que a vasta maioria dos os princípios da cidadania universal e dos direitos individuais." cidadãos dejure imagine e muito menos reivindique publica- Apolítica cultural dos movimentos de direitos humanos deve mente a prerrogativa de ter direitos. Como sustentamos em então trabalhar para te-significar e transformar as concepções outro lugar, os movimentos populares, ao lado dos feministas, culturais dominantes dos direitos e do corpo. afro-latina-americanos, de lésbicas e homossexuais, assim No entanto, apesar da atenção renovada concedida à cultura como ambientalistas, foram instrumentais na construção de política em algumas análises políticas recentes, o cultural uma nova concepção de cidadania democrática, que reivindica continua a tocar o segundo violino nas clássicas harmonias direitos na sociedade e não apenas do Estado e que contesta eleitorais, partidárias e políticas que inspiram a análise (neo) as rígidas hierarquias sociais que ditam lugares fixos na socie- institucionalista liberal. A maioria dos teóricos tradicionais dade para seus (não) cidadãos-com base em critérios de classe, conclui que os movimentos sociais e as associações cívicas raça e gênero: desempenham, na melhor das hipóteses, um papel secundário na democratização e tem, portanto, concentrado sua atenção o autoritarismo social engendra formas de sociabilidade numa na institucionalização política, que é considerada "ofator mais cultura autoritária de exclusão que subjaz ao conjunto das práticas importante eurgente na consolidação da democracia" (Diarnond, sociais e reproduz a desigualdade nas relações sociais em todos 1994: 15). os seus níveis. Nesse sentido, sua eliminação constitui um desafio Em conseqüência, as discussões sobre a democratização fundamental para a efetiva democratização da sociedade. A consideração dessa dimensão implica desde logo uma redefi- latino-americana concentram-se hoje quase que exclusivamente nição daquilo que é normalmente visto como o terreno da na estabilidade das instituições e processos políticos repre- política e das relações de poder a serem transformadas. E, sentativos formais como, por exemplo, nos "perigos do presi- fundamentalmente, significa uma ampliação e aprofundamento dencialismo" (Línz, 1990;Linz,Valenzuela, 1994), na formação e da concepção de democracia, de modo a incluir o conjunto consolidação de partidos e sistemas partidários viáveis das práticas sociais e culturais, uma concepção de democracia (Mainwaring, Scully, 1995), e nos "requisitos da governabí- que transcende o nível institucional formal e se debruça sobre lidade" (Huntíngton, 1991; Mainwaring, O'Donnell , Valenzuela, o conjunto das relações sociais permeadas pelo autoritarismo social e não apenas pela exclusão política no sentido estrito. 1992; Martins, 1989). Em resumo, as análises predominantes da (Dagníno, 1994a: 104-105) democracia centram-se no que os cientistas políticos batizaram de "engenharia institucional", requisito para a consolidação da A análise de Teresa Caldeira (a sair) de como e por que a democracia representativa no Sul das Américas, defesa dos direitos humanos dos criminosos comuns continua Uma tendência recente no estudo dos movimentos' sociais a ser vista como "algo ruim e condenável" pela maioria dos latino-americanos parece endossar esse foco exclusivo 'sobre cidadãos no Brasil democrático ilustra pungentemente por o formalmente institucional (ver Foweraker, 1995).Embo;~ a que - à luz do constante autoritarismo sócio-cultural - "a literatura mais antiga sobre os movimentos dos anos 70 e 80 análise social deveria olhar para além do sistema político" ao louvasse sua suposta abstenção da política institucional, sua ~2 33
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