Violência e Cultura Pistas para uma leitura teológica da cultura religiosa da violência* Carlos Eduardo B. Calvani Doutor em Ciência da Religião e Clérigo da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil A violência em suas várias formas físicas e culturais sempre esteve presente na história humana. Um olhar retrospectivo sobre a história da humanidade nos mostrará que, permeando os principais eventos que mudaram as feições políticas e culturais do nosso mundo, estavam, as marcas da violência. Atualmente, através dos meios de comunicação, a violência tem se transformado em estratégia de Ibope em noticiários e filmes. Uma rápida memória da última década nos mostrará uma grande profusão de imagens violentas se sucedendo diante de nossos olhos à semelhança de um vídeo-clipe: as guerras, atentados terroristas, os arrastões, as chacinas no Brasil e as cenas de pancadaria em bailes funk e estádios de futebol. Tudo isso sem contar a própria violência institucionalizada das polícias, dos exterminadores de plantão e da exclusão dos benefícios do desenvolvimento sofrida por milhares de seres humanos. Estamos tão acostumados à violência que ela parece ter-nos anestesiado. Não nos impressiona, por exemplo, o fato de, desde a década de 70, as superproduções do cinema americano estarem ligadas à violência explícita. Dessa forma, sem qualquer peso na consciência (e até com um certo prazer mórbido), as pessoas fazem fila para assistir cenas de serial killers, sem contar os tubarões assassinos, piranhas devoradoras e desastres vários. O desejo ou necessidade de encontrar formas de extravasar a violência tem levado muitos adolescentes e jovens a passarem horas controlando socos, pontapés, tiros e rajadas de metralhadoras em vídeo games. Até o campo religioso, que parecia não ter sido ainda tão explicitamente contaminado pela violência, tem-se rendido a ela. A chamada “batalha espiritual apregoada por alguns grupos carismáticos tende a se materializar a longo prazo, transformando-se em batalha física. A expressão “guerra santa” aos poucos tem ganhado espaço em nosso vocabulário, fazendo ressurgir o que Mendonça qualificou como “protestantismo guerreiro”i. Os novos cânticos religiosos falam de soldados em guerra, anunciam a destruição dos inimigos e, a partir de referenciais bélicos, concebem uma nova eclesiologia: a igreja agora é “exército de Deus”, que marcha sob as ordens de um Cristo militarii, pronta para destruir e aniquilar todos que não se convencem a alistar-se nessa milícia. Vivemos uma época em que as paixões religiosas se acham tremendamente excitadas, colocando em risco a caminhada ecumênica. Apesar da perenidade histórica do tema e a convivência quase íntima que temos hoje com a violência, a teologia pouco se interessou pelo assunto. Mutatis mutandis, podemos dirigir aos teólogos a mesma observação que Hanna Arendt fez aos pesquisadores da área de ciências sociais: Ninguém que se tenha dedicado a pensar a história e a política pode permanecer alheio ao enorme papel que a violência sempre desempenhou nos negócios humanos, e, à primeira vista, é surpreendente que a violência tenha sido raramente escolhida como objeto de consideração especial... isto indica o quanto a violência e sua arbitrariedade foram consideradas corriqueiras e, portando, desconsideradas; ninguém questiona ou examina o que é óbvio para todosiii. O fato é que a teologia não produziu muito material específico sobre a violência, se comparada a outras áreas do saber. Ainda assim, sempre que o fez não foi capaz de situar a questão prioritariamente do ponto de vista teológico, ou seja, em relação profunda com o fundamento da vida. Durante a década de 70 principalmente, alguns teólogos defenderam a legitimidade do uso da violência em determinadas circunstancias – como instrumento de libertação, por exemplo. Outros denunciaram a violência e combateram-na, defendendo a tese de que a “não-violência” é a marca distintiva do cristianismo. Para tanto, ambas as vertentes serviram-se de versículos bíblicos e invocaram a partir de seus pressupostos hermenêuticos a experiência de Jesus Cristo e de outros personagens bíblicos. Embora relevantes e necessárias, as linhas teológicas acima careciam de conceituações mais precisas sobre a violência do ponto de vista ontoteológico e talvez exatamente por isso a polêmica não tenha durado muito tempo. Em geral, os autores presumiam que tanto eles como os leitores já sabiam do que se tratava, quando, na verdade, estavam tratando pouco de teologia e muito mais de ética ou de política. Ao meu ver, a abordagem especificamente teológica de um tema se dá quando tentamos compreende-lo na ótica da fé no Deus criador e sustentador da vida e no seu desejo de salvação/reconciliação/libertação revelado de modo pleno em nosso Senhor Jesus Cristo. Isso não significa que a teologia tenha que limitar suas fontes à Bíblia, à tradição e à espiritualidade sem entrar em diálogo com os demais discursos do saber. A interdisciplinariedade é um desfio metodológico sempre atual à teologia (tanto é que aparecerão neste ensaio as contribuições de Hanna Arendt, Sigmund Freud, René Girard e Eric Weil), ainda mais quando se trata de um assunto que afeta a todos, indistintamente. Assim, no decorrer deste ensaio, evitaremos o trato de questões como a legitimidade do uso da violência enquanto estratégia de libertação, bem como os limites dentro dos quais podemos aceitar o emprego da violência. Nos desviaremos de tais questões não por considerá-las de menor importância, mas por entender que elas pertencem mais ao campo da ética. Certamente a teologia terá algo a dizer nessa hora, mas pela própria natureza deste ensaio, reservaremos tais discussões para futuras pesquisas. Nosso encaminhamento se dará na seguinte ordem: primeiramente dirigiremos nosso olhar para as contribuições extrateológicas; num segundo momento estaremos propondo uma leitura mais especificamente teológica do tema à luz de conceitos extraídos da obra de Paul Tillich; finalmente, tentaremos apontar algumas pistas para a compreensão da violência no contexto religioso brasileiro, bem como as dificuldades para a formação de uma cultura onde a violência seja minimizada. 1. Algumas tentativas de se compreender a violência no âmbito das ciências humanas Lapierre, abordando o tema do ponto de vista sociológico, distingue entre o ato e o estado de violênciaiv. O “estado de violência” é a própria violência quando institucionalizada. A dominação e a opressão nesse caso acontecem com tal eficiência que geralmente não há grandes demonstrações de força por parte dos dominadores. Em tais circunstâncias, consideram-se brutais tão somente as manifestações dos mais fracos. A violência dos poderosos, por sua vez, é calma, fria, segura de si. Suas técnicas são discretas, refinadas e terrivelmente eficazes. Brecht refere-se a esse estado de violência com a seguinte metáfora: “a um rio que tudo arrasta, se diz que é violento. Mas ninguém chama de violentas as margens que o aprisionam”.v O “ato de violência” é decorrência do próprio estado de violência, posto que é definido como o emprego dos meios de ação que atentam contra a integridade física, psíquica e moral das pessoas. Assim, é sintoma de um desequilíbrio mais profundo, motivado pelo próprio estado de violência. Já o Dicionário crítico de sociologiavi prefere as expressões “violência totalitária” (que visa impedir a todo custo a expressão de certas preferências contrárias às dos grupos situados no poder), “violência estratégica” (alternativa única encontrada por certos grupos para viabilizar mudanças sociais) e “violência anômica” (resultado da proliferação das relações agressivas nos setores menos privilegiados da sociedade). Assim, de modo geral, a sociologia tem denunciado o fato de que as manifestações extremas de violência na sociedade da parte dos oprimidos nada mais são que reações à anômica, opressão e desintegração social promovidas pelos atuais grupos no poder. No campo da filosofia política vale destacar as contribuições de Paul Ricouer e Hanna Arendt. O primeiro escreveu um pequeno ensaio intitulado “Estado e violência” onde reconhece que a violência eventualmente empregada pelo Estado é uma forma de pedagogia, pois pretende limitar o mal e conservar o gênero humano. Baseando-se em Romanos 13, Ricouer afirma que a pregação cristã, por sua vez, embora admita a autoridade do Estado no emprego da violência, prefere apostar na regeneração humana pela lógica não-violenta do amor.vii Ricoeur, porém, reconhece que nem sempre o Estado consegue conter-se dentro dos limites legítimos da pedagogia violenta e acaba por fazer da violência suporte para sua sobrevivência. Este é o paradoxo político de um Estado que, simultaneamente, serve e oprime. Segundo Ricoeur, isso geralmente produz na consciência de alguns indivíduos uma espécie de “angústia moral” que revela a ambigüidade da situação. Por exemplo: a decisão de um cidadão em atender ou não à convocação do Estado para participar de uma guerra sempre o coloca na situação de “angústia moral” – a obediência ao Estado Poe o indivíduo como continuador da violência; já a sua desobediência, somada à de outros cidadãos, pode minar a possibilidade de existência do próprio Estado. Contudo, Ricouer reconhece que no ato de desobedecer há algo de positivo, a saber, uma ruptura com a racionalidade representada pelo Estado em prol de valores mais personalizantes como a paz e o amor fraternal. Comentando Ricoeur, Manuel Sumares diz que é preciso manter sempre a tensão entre a coerção representada pelo Estado e a possibilidade da desobediência enraizada em valores como o amor fraternal e a solidariedade, pois tal tensão garantiria o equilíbrio do processo de reconciliação: “a chave desse processo reside na progressiva interarticulação entre um sistema contínuo de desenvolvimento e de violência que caracterizam a nossa civilização e uma testemunha descontínua que responde a situações concretas e que provoca a reavaliação das orientações e prioridades da lógica do domínio”.viii Assim, torna-se importante a presença profética da pessoa não-violenta como exemplo de um comportamento alternativo de valores que devem moldar a história. Além disso, guardemos de Ricoeur a consciência do paradoxo (o mesmo Estado que serve, também oprime), pois tal idéia tem semelhanças com o conceito de ambigüidade que será exposto adiante quando mencionarmos a obra de Tillich. Ainda no terreno da filosofia política, é impossível desprezar o clássico texto de Hanna Arendt, Sobre a violência. A contribuição inovadora desse texto consiste em desfazer o equivoco de que violência e poder são duas faces da mesma moeda. Diz ela: “penso ser um triste reflexo da ciência política que nossa terminologia não distinga entre palavras-chave tais como ‘poder’(power), ‘vigor’ (strenght), ‘força’(force), ‘autoridade’e, por fim, ‘violência’- as quais se referem a fenômenos distintos e diferentes, e que dificilmente existiriam se assim não fosse”.ix Para ela, o poder é uma categoria sempre coletiva, nunca é propriedade de um indivíduo. Sendo coletivo, o poder pertence a um grupo e só existe na medida em que o grupo conserva-se unido. Quando o grupo que o sustenta desaparece, o poder naturalmente também se esvanece. A partir daí, Arendt opõe poder a violência. Afirmar um significa afirmar também a ausência do outro. Assim, ao contrário da afirmação freqüente de que a violência é a mais flagrante manifestação do poder, para Arendt, ela é sinal do enfraquecimento ou da gradativa perda do poder: “poder e violência são opostos, onde um domina absolutamente, o outro está ausente”.x A violência, portanto, não cria o poder; antes, o destrói. Na visão de Arendt, a violência é, por natureza, instrumental: “como todos os meios, ela sempre depende da orientação e da justificação pelo fim que almeja”.xi É por isso que a essência de todo governo é o poder e não a violência, pois aquilo que necessita de justificação por outra coisa não pode ser a essência de nada. O poder não necessita de justificação, mas de legitimidade. O poder emerge onde quer que as pessoas se unam e ajam em conjunto, mas sua legitimidade deriva mais daquele “estar junto” inicial do que de qualquer ação posterior. A legitimidade, diz Arendt, “quando desafiada, ampara-se em si mesma em um apelo ao passado, enquanto a justificação remete a um fim que jaz no futuro”.xii Assim, a violência pode até ser justificável (em nome do progresso da ciência, da democracia, da sociedade sem classes ou do Reino de Deus), mas nunca será legítima. Arendt, porém, não é ingênua a ponto de afirmar a possibilidade de extirpar a violência das relações humanas. De fato, ela reconhece que, em certas circunstancias, a violência é o único meio de reequilibrar as balanças da justiça.xiii O que se recusa é tomar a violência pelo que ela não seria, isto é, mais do que um instrumento. Dessa forma, longe de ser afirmação de poder, a violência é resultado da perda do mesmo, ou de um poder em agonia. Isso implica, para Arendt, em dizer aos apóstolos da nãoviolência que não é essa a atitude ideal para opor-se à violência. A oposição verdadeiramente eficaz à violência é o poder legítimo que é sustentado pelo povo e dele emana. Resta-nos, com isso, a difícil tarefa de educação política para a cidadania e a democracia como a única alternativa viável para o controle da violência: “esperar de pessoas que não têm a menor noção acerca do que é uma res publica, a coisa pública, que se comportem de maneira não violenta e discutam racionalmente em questões de interesse não é realista nem razoável”.xiv Outro autor digno de menção é Eric Weil, filosofo europeu, autor de Lógica da filosofia. A longa introdução desta que é sua principal obra, tem por título: “Filosofia e violência”. aí ele distingue duas possibilidades de se articular a vida humana: “a razão é uma possibilidade do homem; a outra é a violência”.xvDizer que a razão é uma possibilidade significa afirmar que o homem não é, essencialmente, razão. Ele é apenas “razoável”. O que define realmente o ser humano é a liberdade de optar pela razão ou pela violência. Assim, ambas são possibilidades humanas radicais, enraizadas na liberdade do homem. Quando opta pela razão, tal escolha o conduz à filosofia. Dessa forma, a história da filosofia é lida por Weil como a história da luta do homem contra a violência. Para Weil, só a escolha da razão pode pôr os seres humanos a salvo do perigo da violência, pois essa é uma constante ameaça ao discurso e à própria vida razoável, uma vez que não pode ser eliminada através do discurso pelo simples fato de operar numa outra lógica – a da força animal. A violência revela, dessa forma, a incapacidade argumentativa ou mesmo o fundamento não-discursivo de todo discurso humano. Portanto, na visão de Weil, a violência é o outro- irredutível da razão. Ela não é simplesmente algo “ainda-nãotornado- razão”, que poderia ser convertido. Ela é a recusa sempre definitiva e inapelável a toda autoridade da razão. Assim, a tarefa do filósofo é semelhante à do pregador religioso: convencer as pessoas de que é preciso fazer uma escolha definitiva e incondicional pela razão a fim de ficarem a salvo do perigo da violência capaz de nos reduzir à condição de animais não- argumentativos e, portanto, nãoracionais. No campo da psicologia, alguns trabalhos de Freud são significativos para nosso ensaio, na medida em que se reportam diretamente ao problema da agressividade, destruição e violência. Os mais conhecidos são Reflexões para os tempos de guerra e morte (1915) onde procura mostrar que o homem, sem a ação da civilização, é instintivamente destrutivo. Sua argumentação sustenta-se na análise do modo de vida dos povos por ele considerados ‘primitivos’: “era (o primitivo) sem dúvida uma criatura muito impulsiva e mais cruel e maligna do que outros animais. Gostava de matar e fazia isso como algo natural”.xvi Em 1920, quando escreve Além do princípio do prazer, Freud cria a noção de pulsão de morte. A partir daí, a destruição vai interferir decisivamente na explicação dos mecanismos mentais e passar a ser considerada um dos elementos primordiais da vida psicossocial do homem. Este ponto de vista é aprofundado em Mal-estar na civilização (1927), onde Freud acusa os “instintos destrutivos humanos” de serem os responsáveis por esse “mal-estar”. Nesse texto, Freud afirma sem hesitação que a agressividade é uma disposição instintiva primitiva que constitui a essência do ser humano. Finalmente, em 1932, Freud aborda novamente a questão na correspondência com Einstein, publicada sob o título de Por que a guerra? Nesse texto, a violência é associada novamente à agressividade instintiva: quando os seres humanos são incitados à guerra, podem ter toda uma gama de motivos para se deixarem levar – uns nobres, outros vis, alguns francamente declarados, outros jamais mencionados. Entre eles está certamente o desejo da agressão e da destruição: as incontáveis crueldades que encontramos na história e em nossa vida de todos os dias atestam a sua existência e a sua força. A satisfação desses impulsos destrutivos naturalmente é facilitada por sua mistura com outros motivos de natureza idealista. Quando lemos sobre as atrocidades do passado, é como se os motivos idealistas servissem apenas de desculpa para os desejos destrutivos.xvii Como se vê, a violência não tem outra causa senão a satisfação dos impulsos e desejos destrutivos do ser humano. Os motivos “vis” ou “nobres” nada mais são que racionalizações (no sentido psicanalítico), destinadas a justificar perante a consciência a existência desses desejos agressivos. A psicologia social, por sua vez, suspeita que a privação sistemática das necessidades básicas constitui a causa principal que leva uma pessoa a se tornar violenta. Conforme Fachini, a violência “seria uma resposta que o sujeito dá no momento que é tolhido no seu Eu, na busca de objetivos, dos seus impulsos, nos sentido de suprir suas necessidades”.xviii Dessa forma, a violência surge de motivos frustrantes, perdas irreparáveis, sonhos desfeitos e ausência de possibilidades de realização de desejos e fantasias. Na mesma linha, Amoretti acrescenta: O mundo atual é violento porque prevalecem relações que violentam primariamente as pessoas desde a sua infância, constituindo seres com puçás alternativas psicológicas de reação e aptas principalmente a reproduzi-lo. Com suas relações encobridoras, funciona como uma verdadeira fábrica de violência, produtora de psicopatas, assaltantes, estupradores, assassinos ou oportunistas de todas as espécies, que são simultaneamente vítimas, mas também de pessoas ‘normais’, nas quais a honestidade e integridade aparentes encobrem uma valência relacional violenta oculta e inconsciente, mascarada na habitualidade de relações sociais e interpessoais aceitáveis e respeitáveis, mas simultaneamente opressivas e danosas a muitos de seus semelhantes, violentas na sua essência.xix Finalmente, há que se fazer referência à antropologia de René Girard. Ele parte do princípio de que uma das qualidades mais notáveis do ser humano é sua capacidade de imitação. Entre os seres vivos, o homem é o que mais tem esse dom prodigioso de observar e reproduzir o que se observa. Essa capacidade mimética é um dos sustentáculos da própria cultura. Porém, Girard distingue duas formas de mimetismo: o de representação (um imita lo jeito de ser do outro) e o de apropriação e antagonismo (os seres humanos rivalizam no desejo de se apropriar do mesmo objeto em disputa e, na paixão da luta, se esquecem do objeto disputado e a rivalidade passa a ser pessoal; não há mais nenhuma razão objetiva para o conflito uma vez que o objeto foi deixado de lado). O que está por trás desse mimetismo é o desejo de apoderar-se da força vital que está no outro. Girard ainda que o mimetismo é, por definição, contagioso e, conseqüentemente, o conflito tende a alastrar-se gerando uma crise social onde se exige o sacrifício de uma vítima expiatória que apazigue o conflito e restaure a paz inicial. A paz – resultado desse sacrifício – terá o efeito de elevar a vítima à condição divina (talvez por mecanismo psíquicos de culpa semelhantes aos apontados por Freud em Totem e Tabu). Assim, paradoxalmente, a paz vem pela via da violência. Dessa forma, conforme Girard, “a violência e o sagrado são inseparáveis”.xx A questão, torna-se então: como escapar do círculo vicioso dessa violenta lógica sacrificial? Mesmo não sendo propriamente um teólogo, Girard afirma que em muitos relatos bíblicos aparece a revelação de uma outra lógica – a das vítimas, que desmascaram o processo vitimário da cultura e dessa forma revelam uma nova transcendência, não sacrificial e não- violenta. Interpretando Girard, Barbé diz: a resposta é dada mediante uma verdadeira revolução religiosa que começa com Abraão e culminará no evangelho: Deus não é violento, o sacrifício humano não lhe agrada, a reconciliação se fará através de um justo que se oferece livremente aos socos e golpes dos violentos. Assim, através do sofrimento do inocente, a comunidade tomará consciência do caráter insensato e odioso de seu comportamento.xxi Num encontro no Brasil com teólogos latino-americanos, Girard declarou que “toda a análise do desejo mimético está a serviço da conversão... da morte do homem velho, no sentido paulino”.xxii De modo semelhante a Weil, Girard afirma que a lógica da violência está aí, sempre presente e contra ela não adianta lutar, pois “quando você se opõe violentamente à violência, automaticamente entra no jogo dela”.xxiii A única alternativa é deixar-se transformar por uma nova lógica. Em suas palavras, “a meu modo de ver, o remédio contra a idolatria dos sistemas sacrificiais consiste na tomada de consciência acerca dessas coisas”.xxiv 1. O fenômeno da violência e sua incômoda presença na vida: um olhar teológico Apesar das diferentes abordagens que as ciências humanas nos ofereceram, parece ser possível isolar um elemento que aparece tanto em Girard como em Freud, Arendt e Weil: a permanência constante da violência nas relações humanas. Ela é sempre uma possibilidade ao alcance das mãos como instrumentos de satisfação de desejos justificáveis eticamente ou não. Por que é assim? Será que estamos condenados a conviver com a violência, aceitando- a como um elemento natural da existência? Terá a teologia a possibilidade de dirigir um olhar realista não cedendo ao pessimismo e oportunismo dos que dizem: “se é impossível erradicar a violência e a agressividade, sirvamo-nos dela!” ou embalando na ingenuidade dos que se julgam, em nome de Deus, aptos a construir uma sociedade sem violência? A exigência desse olhar realista leva-nos a propor uma abordagem que reconhece o caráter ambíguo da vida. No campo da teologia, quem aceitou esse desafio com destemor foi Tillich, na quarta parte de sua Teologia Sistemática, onde lemos: Todo processo de vida apresenta a ambigüidade de elementos positivos e negativos misturados de tal forma que se torna impossível separar o momento negativo do positivo: a vida é ambígua em cada momento. É minha intenção discutir as funções particulares da vida, não em sua natureza essencial, separadas de sua distorção existencial, mas na forma em que aparecem dentro das ambigüidades de sua atualização, pois a vida não é nem essencial nem existencial, mas ambígua.xxv A vida, enquanto atualização do ser potencial, se manifesta em três diferentes funções: auto-integração, auto-criatividade e auto-transcendência. A auto-integração (função à qual pertence a formação da moralidade e da personalidade) é constantemente ameaçada pela desintegração: a busca por saúde e consciência de seu significado só existem a partir das experiências pessoais ou alheias de doença e morte, por exemplo. De acordo com Tillich, tanto Paulo como Agostinho e Lutero foram capazes de reconhecer, cada um a seu modo, essa ambigüidade no terreno moral e religioso. A lei, por exemplo, expressão da alienação do homem com relação a si mesmo, é, ao mesmo tempo, “boa” e possui caráter educativo. A mesma ambiguidade aparece no terreno da auto-criatividade, ao qual pertence a cultura e no terreno da auto-transcendência, no qual se insere a religião. Na auto-criatividade a ambiguidade se manifesta de muitas maneiras: na linguagem, na práxis e na formação de comunidades onde se insere, como por exemplo, a ambigüidade da justiça: “as ambigüidades de justiça aparecem toda vez que justiça é exigida e atualizada. O crescimento da vida em grupos sociais é cheio de ambigüidades que – se não entendidas – levam ou a uma atitude de resignação desesperada de toda crença na possibilidade de justiça ou a uma atitude de expectativa utópica de uma justiça completa, que se verá frustrada mais tarde”.xxvi A título de exemplo, Tillich comenta que uma das ambigüidades na atualização da justiça refere-se à “inclusão e exclusão”: um grupo social é um grupo porque inclui um tipo particular de pessoas e exclui todos os outros. Sem essa exclusão é impossível haver coesão social. Quanto à auto-transcendência (conceito através do qual se expressa o anseio ardente de toda criatura de se libertar da ‘sujeição à futilidade’ dos ‘grilhões da mortalidade’, conforme Romanos 8,19-22), Tillich observa que por fazer parte da vida, tal função também não está isenta da lei da ambigüidade. Ela revela, ao mesmo tempo, a distinção e interdependência entre sagrado e profano, divino e demoníaco. Manifesta também o paradoxo de que a grandeza da vida revelada na auto-transcendência é exatamente o que a encaminha à tragicidade. Na teologia de Tillich, a hybris, uma das dimensões do pecado, nasce justamente da grandeza real da vida humana: hybris é auto-elevação do homem à esfera do divino. O homem é capaz dessa auto-elevação por causa de sua grandeza. Na tragédia grega, a hybris humana é representada não por aquele que é pequeno, feio e comum, mas pelos heróis que são grandes, bonitos e importantes, que são portadores de poder e valor... A grandeza do homem reside no fato de ser ele infinito, e é nessa tentação de hybris que ele universalmente incorre através da liberdade do destino.xxvii Não é difícil perceber, a partir daí, que à medida que uma determinada religião incute em seus fiéis sentimentos de extrema identificação com o Deus que veneram, revelam-se desejos de expansão ilimitada, conquista e aniquilação de outras religiões e culturas. O fanatismo que insufla as chamadas “guerras santas” surge exatamente onde a piedade religiosa é exacerbada e a grandeza humana ultrapassa seus limites incorrendo em hybris. A violência daí decorrente revela que o seu lugar no cenário teológico não pode ser outro que não o do pecado, instalado na natureza humana, correndo nossos atos e cegando-nos ao evangelho. Nas próprias páginas da Bíblia encontramos exemplos disso. No Antigo Testamento, principalmente, são muitas as manifestações de violência – tanto a dos poderosos (institucionalizada) como a dos que, em situações de opressão, anomia e dificuldades, tentam libertar-se e construir uma nova sociedade. Assim, tendo em vista propósito final da conquista da terra prometida, a violência é justificada. São muitos os relatos (literais ou não) principalmente em Josué e Juízes, de cidades invadidas e destruídas, nas quais ninguém se salvava e a morte de civis (inclusive mulheres e crianças) era comum. Em Jericó, por exemplo, só restou Raabe, a prostituta que colaborou com a invasão dos hebreus. Na construção literária de Êxodo, lemos que a décima praga, decisiva para a libertação dos hapirus, consistiu no massacre das crianças primogênitas do povo egípcio. E aí fica a pergunta: por que a violência do anjo exterminador de Javé tem que ser dirigida exatamente contra aqueles que não podem se defender? No caso de ser um tipo de vingança reativa ao primeiro ato de violência do faraó (a matança dos meninos hebreus) ou de ação profilática (aniquilar os que dariam continuidade ao sistema iníquo), retornarmos ao ponto de partida já explicitado por Girard: só a violência sai vitoriosa. É curioso notar que arroubos de violência surgem até mesmo nas expressões religiosas de piedade dos salmistas. A intimidade mística com Deus revelada pelo autor do Salmo 139 desemboca no desejo: “ah! Deus, se matasses o ímpio... eles falam de ti com ironia, menosprezando os teus projetos! Não odiaria os que te odeiam, Iahweh? Não detestariam os que se revoltam contra ti? Eu os odeio com ódio implacável! Eu os tenho como meus inimigos! (Salmo 139, 19-21). Como justificar os desejos (nada piedosos) de abençoar os que esmagarem a cabeça das crianças babilônicas contra as pedras (“ó devastadora filha de Babel, feliz quem devolver a ti o mal que nos fizeste! Feliz quem agarrar e esmagar teus nenês contra a rocha” - Salmo 137-8,9)? Voltamos nesse ponto a Girard: toda violência desencadeia um processo mimético de contra-violência que nos aprisiona em seu círculo vicioso, fazendo-nos crer no milagre de que só a violência pode restaurar a paz. Diz ele: “parece que sempre chega um momento onde só é possível opor-se com uma outra violência. Em tal circunstância, pouco importa ter sucesso ou fracassar, pois é sempre ela (a violência) quem ganha”xxviii. Mesmo quando a violência de um grupo é derrotada por um outro ato de violência (mais forte e coercitiva que a primeira), ela sempre triunfa, na medida em que continua a ser o único fator criativo na situação. O Novo Testamento também confere bases à violência religiosa, embora de forma mais sutil. Não é de se admirar que muitas das missões cristãs (católicas ou evangélicas) que praticaram violência física ou cultural, inspiraram-se em trechos do Apocalipse (a batalha dos santos de Deus contra seus opositores) e até mesmo em alguns versículos que justificariam acessos de ira no apóstolo Paulo contra cristãos de pensamento discordante, mais tarde queimados como hereges. Vemos em tudo isso, que as justificativas religiosas para o exercício da violência não são exclusivas do Antigo Testamento, mas surgem nas mais diversas formas de experiência religiosa. 2. A violência na tradição cristã: das Cruzadas à Guerra no Iraque No decorrer da história do cristianismo, diversos atos de violência tem sido praticados pela igreja. As cruzadas são, talvez, um dos mais conhecidos exemplos. A expressão “guerra santa” não é exclusiva dos grupos islâmicos, pois a igreja também desenvolveu justificativas para a guerra, sobretudo a partir da era constantiniana. Tradicionalmente, essa teoria tem dois conjuntos de princípios – o direito de fazer guerra e os princípios de conduta. Em linhas gerais, a cristandade ocidental tem afirmado: a) deve ser uma causa justa e não uma mera questão de retaliação; b) deve ser conduzida de modo a impedir destruição desnecessária de vidas, da natureza e da cultura ou a imposição de condições exorbitantes e humilhantes ao adversário, especialmente os inocentes; c) os custos da guerra devem ser proporcionais ao bem supostamente conquistado; d) deve ser condenado qualquer ataque intencional a nãocombatentes (civis) ou a alvos não-militares; e) deve ser o último recurso. O pensamento cristão sobre a guerra justa tem como base Agostinho e Tomás de Aquino. Ambos concordam que é difícil harmonizar a guerra com os ensinamentos de Jesus e que ela só é permitida em casos raros, para defender ou restaurar a paz. Mas com respeito à justificação da guerra, suas abordagens são diferentes. Agostinho a entende como uma obra do amor cristão, enquanto Tomás como uma obra da justiça, exigida em nome do bem comum. A mudança da situação política do cristianismo (de grupo perseguido a “religião oficial do Império”) provocou também uma mudança na atitude cristã quanto à guerra e à violência, pois esta passou a ser um meio de apoiar um estado que lhes tinha dado proteção. Os cristãos já não estavam fora da ordem política reinante, ou até mesmo opostos a ela, e sim eram participante políticos com um investimento no bem-estar e na estabilidade do governo. Em A Cidade de Deus, Agostinho fala das concessões necessárias para justificar uma guerra. Para ele, trata-se de um dever de “amor cristão”. Compara o ato de matar em guerra à ação de um pai que pune o filho (20.63). Para ele, o motivo deve ser o amor, pois às vezes, só um ato coercitivo pode desviar um pecador da má ação e promover sua conversão e arrependimento. Em outros textos, a paz e a segurança da comunidade são as principais justificativas para a guerra e a garantia de que ela seja levada a cabo de acordo com a vontade de Deus. Um soldado individual será inocente da má ação, mesmo se ele cumprir uma “ordem injusta” do rei, pois é responsabilidade da autoridade superior definir se a guerra tem uma causa justa. Agostinho preocupa-se com as razões que levam à guerra, e em preservar uma atitude cristã mesmo que estejamos envolvidos em ceifar a vida alheia, como a guerra exige. Os critérios agostinianos (causa justa, autoridade legal e intenção correta) são mais detalhados e desenvolvidos por Tomás de Aquino na Idade Média. Para ele, o objetivo primordial da guerra deve ser a paz e não a vingança. Em resumo, os critérios na tradição teológica cristã antiga são: a) causa justa (proteger o bem comum); b) autoridade legítima (o soberano ou o Papa – guardiães do bem comum); c) intenção justa (buscar a paz, não apenas inflingir danos ou obter riquezas) Porém, na história do cristianismo, a prática da Igreja em relação à violência armada sempre pareceu muito discrepante em relação à teoria. Na grande maioria dos casos, os interesses que justificaram a guerra foram muito mais de ordem econômica e política. Mas a Igreja (seja Católica ou Protestante e evangélica) sempre sujeitou-se a abençoar e justificar o uso da violência, “em nome de Deus”. 3.1. Panorama histórico das Cruzadas As Cruzadas aconteceram entre os séculos XI e XIII e sua história é marcada por um misto de motivações políticas e religiosas. Os principais objetivos declarados das cruzadas eram: a) derrotar os muçulmanos que ameaçavam Constantinopla; b) salvar o Império do Oriente; c) unir de novo a cristandade dividida; d) reconquistar a Terra Santa; e) para os participantes mortos em confronto, alcançar o céu. Desde o século IV tornaram-se populares as peregrinações a Jerusalém para conhecer os lugares sagrados e visitar túmulos de mártires A rota mais freqüente era via Constantinopla, Nicéia, Síria e Jerusalém. No Séc. XI cresce o Império turco na Europa Oriental e também o Islamismo. Para alguns cristãos mais exaltados, a morte em peregrinação à terra santa era sinal da suprema eleição divina, como a morte nas mãos do Império tinha sido para os mártires antigos. No século XI, Constantinopla, capital da cristandade oriental, estava sob constante ameaça das invasões turcas. A Europa Ocidental, por sua vez, tivera vários anos seguidos de colheitas fracas que ocasionaram fome atroz. As epidemias e pestes também eram constantes. Muitos cristãos interpretavam tais fatalidades como castigo divino pelo fato de a Igreja permitir que pagãos tomassem conta de Jerusalém e por assistir, passivamente, o crescimento da religião islâmica. No Concílio de Clermont (1095), o Papa Urbano II fez um exaltado discurso alertando para os perigos que a ameaça turca representava para a cristandade. Descreveu a profanação dos lugares sagrados e a necessidade de se acudir em socorro aos cristãos do Oriente. Ofereceu indulgência plena a todos que morressem no empreendimento. Isto queria dizer que qualquer pecado, por mais grave que fosse, seria perdoado, e eles iriam diretamente para o paraíso. A multidão expressou entusiasmo, gritando que Deus desejava aquilo. “Eu o digo aos presentes. E ordeno que seja dito aos ausentes. Cristo está mandando. Todos que forem e lá perderem a vida, seja no caminho por terra ou no mar, ou na luta contar os pagãos, terão perdão imediato dos seus pecados. Isto eu concedo a todos que marcharem, em virtude do grande dom que Deus me tem dado” (Urbano II – em 1095). Aos poucos foram surgindo numerosos pregadores do empreendimento e ressurgindo
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