Alain Boureau SATÃ HERÉTICO O NASCIMENTO DA DEMONOLOGIA NA EUROPA MEDIEVAL (1280-I330) TRADUÇÃO IgorSalomãoTeixeira REVISÃOTÉCNICA : NérideBarrosAlmeida E D T O R A GrafiaatualizadasegundooAcordoOrtográficodaLíngua Portuguesade1990.EmvigornoBrasilapartirde2009. FICHACATALOGRÁFICAELABORADAPELO SISTEMADE BIBLIOTECASDAUNICAMP DIRETÓRIADETRATAMENTODAINFORMAÇÃO Bibliotecária:HelenaJoanaFlipsen-CRB-84/5283 B666s Boureau,Alain,1946- Satãherético:onascimentodademonologianaEuropamedieval(1280-1330) /AlainBoureau;tradução:IgorSalomãoTeixeira;revisãotécnica:NérideBarros Almeida.-Campinas,SP:EditoradaUnicamp,2016. 1.Demonologia-Históriadasdoutrinas-IdadeMédia-600-1500.2.De- . mónio-Históriadasdoutrinas-IdadeMédia-600-1500 3.Escolástica. 4.Feitiçaria.I.Teixeira,IgorSalomão.II.Almeida,NérideBarros,1965- CDD -235.40902 -189.4 ISBN978-85-268-1334-2 -133.4 índicesparacatálogosistemático: 1. Demonologia-Históriadasdoutrinas-IdadeMédia-600-1500 235.40902 2. Demónio-Históriadasdoutrinas-IdadeMédia-600-1500 235.40902 3. Escolástica 189.4 4. Feitiçaria 133.4 Títulooriginal:Satanhérétique:Naissancedeladémonologie dansl'Occidentmédiéval(1280-1330) Copyright©byAlainBoureau Copyright©byOdileJacob,2004 Copyright©byAlainBoureau Copyright©2016byEditoradaUnicamp DireitosreservadoseprotegidospelaLei9.610de19.2.1998. Éproibidaareproduçãototalouparcialsemautorização, porescrito,dosdetentoresdosdireitos. PrintedinBrazil. Foifeitoodepósitolegal. Direitosreservadosà EditoradaUnicamp RuaCaioGracoPrado,50-CampusUnicamp CEP13083-892-Campinas-SP-Brasil Tel./Fax:(19)3521-7718/7728 www.editoraunicamp.com.br [email protected] ! AGRADECIMENTOS Algunselementosdestelivroforamapresentadosediscutidospor 15anosemartigosquepubliqueiemdiversasrevistas(.Médiévales,Micro- logies,Lefaitdelanalyse,Chimères)econferênciasapresentadasemmuitas universidades(St.Andrews,Escócia;AnArbor,Michigan;Cornell,Nova York;Budapeste,Hungria).Agradeçoaosleitores,editoreseinterlocuto- resque mepermitiramavançar nessapesquisa.Sou gratoa Irène Rosier- -Catachpeloacessoaomanuscritodeseulivrosobreossacramentos.Devo sugestõeseinformaçõesaEtienneAnheim,LucFévrier,CharlesdeMira- mon e Sylvain Piron.Agradeço a todos.Enfim, meu reconhecimento a minhaesposaLauraLee Downs,quepacienteegenerosamenteseguiu e discutiualentaelaboraçãodestelivro. SUMÁRIO PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA 11 INTRODUÇÃO 15 í . 1 SATÃ HERÉTICO A INSTITUIÇÃO JUDICIÁRIA DA DEMONOLOGIA SOB JOÃO XXII 23 Aárvoredoshistoriadoresea florestadosdocumentos 25 Umesforço contínuo 29 Um mal ordinário? 33 AsconvicçõesdemonológicasdeJoão XXII 35 Retratode João XXII agentedodemónio 38 * * Aemergênciadofato 40 Oinquérito e o fato 43 Questõesde procedimento 46 Processoe majestade 49 Desconfiançada Inquisição 50 : 2 SACRAMENTOS SATÂNICOS? A DESCOBERTA DE HENRIQUE DE CARRETTO 61 Aconsultade 1320 61 i r i Os dezespecialistas 63 Resultados da consulta 67 À procura da causalidade do malefício: Deus,aimagemou o rito? 72 Asimagens falantes 75 Osacramentosatânico 77 Teologiadopacto 80 Pacto e convenção 82 3 O PACTO GENERALIZADO 89 Banalidadedo pacto? A históriadeTeófilo 90 Poderescondicionais 95 O pacto comoformade açãocoletiva 97 Prática do pacto:Osyndicatusde Albi 99 Ocomplô, um mau pacto 101 O pacto forte de Pedro Olivi:Os fundamentoscontratuaisda realeza eda propriedade 103 O pactofortee oabsolutismodivino 105 Adívida universal 106 Pacto e vontade 109 . 4 LIBERAÇÃO DOS DEMÓNIOS OS PRIMÓRDIOS DE UMA DEMONOLOGIA ESCOLÁSTICA 115 Novasinterrogaçõessobreosdemónios 116 A natureza dosdemónios 120 O momentodaqueda 123 Capacidades dos demónios 125 JoãoQuidort ou otomismo ilustrado 127 05demóniose a escatologia franciscana 132 . 5 OS NOVOS POSSUÍDOS SANTOS E DEMÓNIOS NOS PROCESSOS DE CANONIZAÇÃO DO INÍCIO DO SÉCULO XIV 143 Loucura e possessão 146 Prudência daCúria 148 Demóniosordinários ... 152 Asaparições 154 Nicolaude Tolentinodiante de Bélial 157 As possessas deSanta Lúcia 158 6 A ABERTURA DO SUJEITO. A ANTROPOLOGIA ESCOLÁSTICA DA POSSESSÃO 169 Osonâmbuloe o possesso 170 Uma psicologia cristã da plenitude 172 A nova psicologia aristotélica 176 Oretorno dossonâmbulos 177 Gervásio de Tilburye a demonização do sonâmbulo 179 Ocharacter como fecho da personalidade humana... 181 Pluralidade da pessoa 185 O homem e seu duplo 186 Da possessão demoníaca à possessão divina 187 Fragilidadedocharacter 190 . 7 AS INVASÕES SOBRENATURAIS MODELOS MÍSTICOS 201 DA POSSESSÃO Da ambivalência à suspeita 201 Clara de Montefalcoea incorporação do divino 204 Os estigmas e a imaginação de são Francisco 205 Imaginaçãoeamor 208 Angela de Foligno:Os paradoxos de uma autobiografia espiritual 211 Dois tiposde subjetividade 213 Uma narrativa sacramental 215 As incertezasdo escriba franciscano 216 Inhabitação e escândalo 220 A subjetividadede Pandora 223 229 EPÍLOGO 235 BIBLIOGRAFIA SELECIONADA 247 ÍNDICE ONOMÁSTICO ' 1 i I ;> : ! í I Î i í I * i Prefácioàedição brasileira ? HOMENS E ANJOS ! : ; NérideBarrosAlmeida « Ao contrário do que professa o senso comum que crê em uma IdadeMédiade homenssubmetidos pelo medodasforças maléficas,até o século XIII osdemónios não representavam realmente um problema. Títeresdivinos,realizavamacontragostoavontadedeDeus,umavezque cadagestoseucontribuíainvoluntariamenteparaasalvaçãodoshomens. Por intermédio das profecias bíblicas de antemão reconhecidos como condenados, eram incapazes de produzir pavor irremediável. Gestos simples-osinaldacruz,palavrasdeesconjuroouonomede umsanto- resgatavam ofieldoassédiodosdemóniosfazendo-os retornar aseu in- descritível sofrimento de seres banidos. As ações dos anjos rebeldes i \ amedrontavam,mastodossabiamqueeramilusórias,poisconstrangidas i peloslimitesdomundo naturalsobreoqualnãotinhampoderde trans- ) formação.Homenseanjosseencontravamirremediavelmenteseparados. ! 1 Dessaforma,na terrasedesfrutavade umasegurançaconfortávelem re- laçãoaomal. Mas,então,algo mudou.No último terçodoséculoXIIIvemos f i seestabelecerementreteólogosejuristastesesqueafirmavamaeficáciado í poderdemoníacosobreomundonaturaleapossibilidadedeumcomplô 11 Satãherético:OnascimentodademonologianaEuropamedieval(1280-1330) entreos homens (qualquerhomem!) eosanjoscaídos.Essaconspiração secretamudouorumodasespeculaçõessobreodomínioquesemprere- presentaraoperigoextremoparaaIgrejaeacristandade:aheresia.Nãose esperava mais que elase revelasse por meio deopiniões, pois doravante se criaqueos hereges,constrangidospor um pactopessoal,não tinham maisdisposiçãoemexpressarabertamenteoquepensavam.Passavaaser necessário,portanto,procurarpelaheresiaematos,emparticularnoma- lefício, resultantedaassociaçãodehomenscomSatãeseusdemónios.A teologiadopactoqueentãosedesenvolviaajudavaaexplicar,emparte,a possibilidadederesistênciadosujeitoàssoberaniasterrenase,aomesmo tempo,sua vulnerabilidadeàpossessão(internaouexterna),aocontato semmediaçãocomospoderessobrenaturais. Satãheréticoéumestudosobreosprimórdiosdaobsessãoeuropeia pelosdemóniosdaqualresultouacaçaàsbruxas-perseguiçãosistemática ahomensemulheressupostamenteassociadosritualmenteaSatãem um complô contra acristandade. A históriadacaça às bruxas é geralmente contadaapartirdeprimórdiosdoséculoXV,quandodoutrinaepersegui- çãocoincidem.Identificandooselementosfundamentaisparaamudança dasensibilidadeemrelaçãoaosanjoscaídos,AlainBoureaumostracomo ascondições teológicase jurídicasparaaperseguiçãopúblicaaosadora- doresdo demónio já haviam sidoestabelecidas, bem antes,entre1280e 1330.Restandoefetivamente aos inquisidoresda modernidadeapenas a proposiçãodeelementosprocedimentais. Assim, osabá que surge de forma plena por voltade 1430con- sideradopela maiorpartedosestudoscomoelementodecisivonatrama definidoradaobsessãodemoníacapassaparaoplanosecundárionoestudo de Boureau.Emseu lugar,oautorsituaa história intelectualdaqual re- sultouaeliminaçãodasfronteirasteológicasentreinvocaçãodemoníaca e magia, bem como aquelaentre magia brancae magia negra.Portanto, pacto demoníaco e possessão - temas bem conhecidos do imaginário cristão-eramunidoseadquiriamnovaspotencialidades.Porfim,apartir do pontificado deJoãoXXII (1316-1334),acompreensãoda associação entreinvocaçãoemagiaemtermosdeheresiaaexpunhaaosprocedimen- tosdecondenaçãojurídica. Grande estudioso da escolástica, Alain Boureau explora com maestria um dossiêdocumental pouquíssimoconhecido.Por meio dele 12 F Prefácioàediçãobrasileira:Homenseanjos reconstituiacomplexidadedosdebatesdosquaisresultaramideiasares- peitodasrelaçõesentreoshomenseospoderessobrenaturaisquesetor- naram hegemónicas.Mostra tambémoquanto taisideiaseramsensíveis àsengrenagensedemandasdopoderaoqualseencontravam necessaria- menteligadas.Assim,aoinvestigar ascontrovérsiasem meio àsquaisse definiramosconceitosfundamentaisàobsessãodemoníaca,oautor não eliminado horizonte do leitorocenário em que sederam -aquele das inquietaçõesapropósitodasoberaniaterrenaeultraterrena. NocontextoturbulentoquedaráorigemnoiníciodoséculoXIV à transferênciado papado para Avignon,asociedade tem bons motivos paraainsegurança.A Igreja romana,que nosdois últimosséculos havia sido bem-sucedidaem estabelecersuapresença nas maisdiversasesferas da vida social, se encontra diminuída e abalada em sua soberania por questionamentosvindosdediversasdireções,emespecialda monarquia francesa.Asreflexõessobreopoder,levadasacaboporhomenscompro- metidos com acontinuidade da Igreja,oscilam segundosuaposição em meioaessemardeconflitosnemsemprefavoráveisaRoma.Aescolástica nesse momento fervilha de questões relativas ao homem e à sua relação comasoberaniadivina,dentreasquaisaquelasreferentesàscapacidades doagentediabólicoeàscondições parasuainfluênciasobreoshomens. Noqueserefereaodestinodessasduasinquirições,édecisivoogolpeque sofreo racionalismoaristotélico-encampadosobretudopelosdomini- canos,tendoàfrenteTomásdeAquino-comasinterdiçõesestabelecidas em1277nauniversidadedeParis,equeiráfavoreceroneoagostinianismo franciscanonoqualoslimitesnaturaisnãoseaplicamaospoderessobre- naturaiseaatençãoespeculativasedesviadascausasparaosfenômenos. Dessaforma,vemosafuturaloucurapersecutóriaconsecutivaaoraciona- lismoescolástico ao menos noque se refere à justiça,à políticae àquilo quejápodemoschamardeumaciênciapositiva. Acaçaàsbruxasquedecorredaobsessãodemoníacanosmostra queoracionaleoirracionalnãosãofacilmentediscerníveis,quesuacons- piraçãointegraatotalidadeconstitutivadecadahomemequeambosos caminhospodemlevar àaniquilação.Dessaforma, àpergunta “por que pensaremdemóniosebruxas?” serespondefacilmente.Acaçaàsbruxas foi um fato sustentado por ideias a um só tempo dotadas de abstração fantasiosa(arealidadedospoderesdemoníacos)eprincípiosracionais(a 13 Satãherético:OnascimentodademonologianaEuropamedieval(1280-1330) valorização dos fenômenos sensíveis, as evidências da vulnerabilidade internadetodapessoa).Historicamente,nonívelconscientedanarrativa e da percepção históricas, seu exemplo alerta a respeito da extensão da capacidadehumana.Adistânciaaqueseencontramhojeessesséculosde “trevas” não tranquiliza quando bem mais recentementepodem serob- servadassituações que, moldando asociedade em máquina kafkiana de destruição física e moral, também produziram e continuam a produzir “bruxos”. Pensar em bruxas e demónios do passado obriga a história a adotar um padrão de verdade mais exigente, no qual o homem aparece investidodoslabirintosirracionaisdesuacondiçãopsíquica.Fazcomque elaexiba as trevasque noshabitam,seusdisfarceseescusas.E,tomando deempréstimo aspalavrasdeErnestoSabato:“ao penetrar, nessabusca, nos tenebrososabismosdoeu,descobre-se queaintimidadedohomem não tem nada a ver com a razão, nem com alógica, nem com aciência, nemcomaprestigiosatécnica”.1Diantedisso,permaneceválidaaindauma antigasugestãodahistória:aresponsabilidadedeconhecer-se. Nota ErnestoSábato,Entre0sangueeasletras.Campinas,EditoradaUnicamp,2015,p.234. 14