revista de antropologia São Paulo, USP, 2016, v.59 n.3 n havelzo dor Sc © Salva dossiê artigos resenhas cosmopolíticas e ontologias relacionais Antropologia Urbana: desafios e perspectivas O abraço da serpente: entre povos indígenas e populações José Guilherme Cantor Magnani um sonho amazônico, tradicionais na américa latina de Ciro Guerra Indígenas e quilombolas em situação de violência: Por Danilo Paiva Ramos & Apresentação como garantir direitos diferenciados? Carolina de Camargo Abreu Salvador Schavelzon Jane Felipe Beltrão ¿Qué hace un camino? Alteraciones infraestructurales “Egressos” de serviços de acolhimento e políticas Universalismo e en el Sur de Chile públicas: a “reversão figura-fundo” diversidade: contradições da Cristóbal Bonelli & Marcelo González Gálvez Fernanda Cruz Rifiotis modernidade-mundo, de Renato Ortiz La equivocación de las cocinas: humos, humores y Retrato, pessoa e imagem: o universo fotográfico de Por Francisco Alves Gomes otros excesos en los Andes meridionales Madalena Schwartz Francisco Pazzarelli Marco Antonio Teixeira Gonçalves Notas cromáticas sobre os sonhos ameríndios: Peyote: History, Tradition, Deciphering Ontologies: Divination and “Infinition” transformações da pessoa e perspectivas Politics and Conservation, in Classic Maya Inscriptions João Jackson Bezerra Vianna organizado por Beatriz Alonso Zamora Caiuby Labate e Clancy Cavnar Conexiones inestables, imprevistas y pérdidas: expandiendo la arena política en la cooperación para entrevista Por Isabel Santana de Rose el desarrollo y comunidades indígenas en el Chaco paraguayo “Há um mundo africano inteiro à nossa espera” – Valentina Bonifacio & Rodrigo Villagra Carron Wilson Trajano Filho, um profissional da alteridade Por Denise Pimenta, Laura Moutinho & Pedro Lopes Comunidad cosmopolítica, feminismo comunitario y ontologías en Bolivia plurinacional: registro de algunos debates y posibilidades constituyentes Salvador Schavelzon Palavras carnais: sobre re-lembrar e re-esquecer, ser e não ser, entre os Filhos do Erepecuru Julia F. Sauma revista de antropologia Fundada por Egon Schaden em 1953 editor responsável – Renato Sztutman comissão editorial – Laura Moutinho, Renato Sztutman e Sylvia Caiuby Novaes secretário – Edinaldo F. Lima assistente editorial – Pedro Lopes assistente editorial (seção de resenhas) – Luísa Valentini revisão – André Bailão, Léa Tosold, Lorena Avellar e Pedro Lopes editoração eletrônica – Fernando Bizarri (Estudio Brita) estagiário – Fabrício Silva conselho editorial capa Ana Lúcia Marques Camargo Ferraz – Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil Andrés Chajmi, autoridade Antonio Motta – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Brasil originária na comunidade Catarina Alves Costa – Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal de Mallku Khota - Potosí, Claudio Furtado – Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil Bolívia Eduardo Viveiros de Castro – Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil Esmeralda Celeste Mariano – Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, Moçambique foto de Salvador Schavelzon Fernando Giobellina Brumana – Universidade de Cadiz, Espanha Gilton Mendes dos Santos – Universidade Federal do Amazonas, Manaus, Brasil Jane Felipe Beltrão – Universidade Federal do Pará, Belém, Brasil Joanna Overing – University of Saint Andrews, Saint Andrews, Reino Unido João Biehl – Princeton University, New Jersey, Estados Unidos da América Júlio Cézar Melatti – Universidade de Brasília, Brasil Klass Woortmam – Universidade de Brasília, Brasil Livio Sansone – Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil Lourdes Gonçalves Furtado – Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém, Brasil Luiz Fernando Dias Duarte – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Museu Nacional, Rio de Janeiro, Brasil Mara Viveiros – Universidad Nacional de Colombia, Bogotá, Colômbia Marisa G. S. Peirano – Universidade de Brasília, Brasil Mariza Corrêa – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil Moacir Palmeira – Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil Oscar Calavia Sáez – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil Paul Henley – University of Manchester, Manchester, Reino Unido Roberto Kant de Lima – Universidade Federal Fluminense, Brasil Ruben George Oliven – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil Simone Dreyfrus Gamelon – École de Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, França Tânia Stolze Lima – Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil Wilson Trajano – Universidade de Brasília, Brasília, Brasil Zethu Matabeni – University of Cape Town, Cape Town, África do Sul revista de antropologia 59(3) – Dezembro de 2016 Sumário dossiê cosmopolíticas e ontologias relacionais entre povos indígenas e populações tradicionais na américa latina 7 Apresentação | Salvador Schavelzon 18 ¿Qué hace un camino? Alteraciones infraestructurales en el Sur de Chile | Cristóbal Bonelli & Marcelo González Gálvez 49 La equivocación de las cocinas: humos, humores y otros excesos en los Andes meridionales | Francisco Pazzarelli 73 Deciphering Ontologies: Divination and “Infinition” in Classic Maya Inscriptions | Alonso Zamora 90 Conexiones inestables, imprevistas y pérdidas: expandiendo la arena política en la cooperación para el desarrollo y comunidades indígenas en el Chaco paraguayo | Valentina Bonifacio & Rodrigo Villagra Carron 115 Comunidad cosmopolítica, feminismo comunitario y ontologías en Bolivia plurinacional: registro de algunos debates y posibilidades constituyentes | Salvador Schavelzon 150 Palavras carnais: sobre re-lembrar e re-esquecer, ser e não ser, entre os Filhos do Erepecuru | Julia F. Sauma Artigos 174 Antropologia Urbana: desafios e perspectivas | José Guilherme Cantor Magnani 204 Indígenas e quilombolas em situação de violência: como garantir direitos diferenciados? | Jane Felipe Beltrão 214 “Egressos” de serviços de acolhimento e políticas públicas: a “reversão figura-fundo” | Fernanda Cruz Rifiotis 239 Retrato, pessoa e imagem: o universo fotográfico de Madalena Schwartz | Marco Antonio Teixeira Gonçalves 265 Notas cromáticas sobre os sonhos ameríndios: transformações da pessoa e perspectivas | João Jackson Bezerra Vianna entrevista 295 “Há um mundo africano inteiro à nossa espera” – Wilson Trajano Filho, um profissional da alteridade | Por Denise Pimenta, Laura Moutinho & Pedro Lopes resenhas 322 Olhos luminosos e peles de metal – Resenha do filme O abraço da serpente: um sonho amazônico, de Ciro Guerra. Por Danilo Paiva Ramos & Carolina de Camargo Abreu. 329 Contrapontos entre o universal e o particular: a narrativa apoética da parte e do todo no contexto da modernidade-mundo – Resenha do livro de Renato Ortiz. Universalismo e diversidade: contradições da modernidade- mundo. São Paulo, Boitempo, 2015. | Por Francisco Alves Gomes 337 Notas sobre os usos contemporâneos do peiote – Resenha do livro organizado por Beatriz Caiuby Labate e Clancy Canvar. Peyote: History, Tradition, Politics and conservation. Santa Barbara/Denver, Praeger, 2016. | Por Isabel Santana de Rose revista de antropologia 59(3) – December 2016 Table of Contents special issue cosmopolitics and relational ontologies among indigenous and traditional peoples in latin america 7 Presentation | Salvador Schavelzon 18 What Does a Road Do? Infrastructural Alterations in Southern Chile | Cristóbal Bonelli & Marcelo González Gálvez 49 The Equivocation of the Kitchens: Smokes, Humours and Other Excesses in the Meridional Andes | Francisco Pazzarelli 73 Deciphering Ontologies: Divination and “Infinition” in Classic Maya Inscriptions | Alonso Zamora 90 Unstable, Unforseen and Lost Connections: Expanding the Political Arena in Development Cooperation and Indigenous Communities in the Paraguayan Chaco | Valentina Bonifacio & Rodrigo Villagra Carron 115 Cosmopolitical Community, Communitarian Feminism and Ontologies in Plurinational Bolivia: Revisiting Some Debates and Constituent Possibilities | Salvador Schavelzon 150 Carnal Words: About Re-Remembering and Re-Forgetting, Being and Not Being, among the Sons of Erepecuru | Julia F. Sauma articles 174 Urban Anthropology: Challenges and Perspectives | José Guilherme Cantor Magnani 204 Indigenous and Quilombolas Victims of Violence: How to Ensure Differentiated Rights? | Jane Felipe Beltrão 214 Care “Leavers” and Public Policies: The “Figure- Ground” Reversal | Fernanda Cruz Rifiotis 239 Portrait, Self and Image: The Photographic World of Madalena Schwartz | Marco Antonio Teixeira Gonçalves 265 Chromatic Notes About Amerindians Dreams: Transformations of Person and Perspectives | João Jackson Bezerra Vianna interview 295 “There’s a Whole African World Waiting for Us”: Wilson Trajano Filho, a Professional of Alterity | Denise Pimenta, Laura Moutinho & Pedro Lopes reviews 322 Bright Eyes and Metal Skins – Review of the film El abrazo de la serpiente: un sueño amazonico, directed by Ciro Guerra. | Danilo Paiva Ramos &Carolina de Camargo Abreu. 329 Between the Universal and the Particular: The Apoetical Tale of Parts and Wholes in the Modernity-World Context – Review of the book Universalismo e diversidade: contradições da modernidade-mundo, Renato Ortiz. São Paulo, Boitempo, 2015. | Francisco Alves Gomes 337 Notes on the Contemporary Uses of the Peyote — Review of the book Peyote: history, tradition, politics ans conservation, organized by Beatriz Caiuby Labate and Clancy Canvar. Santa Barbara/Denver, Praeger, 2016. | Isabel Santana de Rose 7 DOSSIÊ | “COSMOPOLÍTICAS E ONTOLOGIAS RELACIONAIS ENTRE POVOS INDÍGENAS E POPULAÇÕES TRADICIONAIS NA AMÉRICA LATINA” Apresentação Salvador Schavelzon Universidade Federal de São Paulo | São Paulo, SP, Brasil [email protected] Este dossiê surge da necessidade de abrir um diálogo entre trabalhos recentes provenientes de distintos contextos etnográficos da América do Sul e do passa- do mesoamericano. Todos eles estão relacionados de alguma forma com uma abertura para sensibilidades e mundos outros, não modernos, ou de moder- nidades nas quais algo sempre escapa, com modos de vida ou racionalidades outras que, embora minoritárias, estão por toda parte e mostram, nos artigos a seguir, sua vitalidade. Apresentamos aqui um conjunto de pesquisas que nos reportam a modos de existência e resistência de populações mapuche-pehuenches do sul do Chile; cosmopolítica de povos indígenas do Paraguai; transformações da política indí- gena, comunitária e feminista da Bolívia; significados da arte e epigrafia maia; desentendimentos vinculados aos programas de desenvolvimento nas cozinhas de um povoado do norte da Argentina; e sentidos da vida de povos afro-indíge- nas do oeste paraense no Brasil. Estes trabalhos resultam de pesquisas de doutorado e pós-doutorado concluídas nos últimos anos, num momento em que, dentro e fora da antropo- logia, alguns caminhos parecem se abrir. A crise civilizatória, de fato, visibiliza a possibilidade e urgência de um retorno cosmopolítico entre povos tradicionais e ameríndios, assim como na imaginação política das cidades que se relaciona com aquela. Na antropologia, um momento de reflexividade e questionamento sobre o lugar do antropólogo parece não ser mais o centro da discussão, com caminhos etnográficos certeiros que fogem do passado colonial e funcionalista da disciplina, mostrando, desde outro lugar, imagens potentes. Estes caminhos trilham mundos com atenção às ficções e mitologias modernas, as certezas do imaginário ocidental que ameaçam determinar nossa conexão com a diferença. Rev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 59 n. 3: 7-17 | USP, 2016 dossiê | Apresentação | Salvador Schavelzon 8 Discussões vinculadas à chamada “virada ontológica”, à antropologia re- versa, pós-humana e pós-social, confluem com antropologias de contextos explorados pelos estudos da Ciência e Tecnologia, fortalecendo uma opção pela etnografia, com abertura para mundos relacionais e cosmopolíticos, isto é, uma política que não pode mais ser pensada sem o cosmos (Stengers, 2005; Latour, 2004, De La Cadena 2010). O lugar a partir do qual se situam os artigos aqui reunidos parece ser o único possível para uma antropologia que se rela- ciona com populações tradicionais ou indígenas: o dos mundos dos outros, e os outros mundos, numa volta ao território e ao poder da invenção como força para enfrentar o universalismo do mundo do Um. Nesse lugar, a cosmopolítica não é apenas um modo de existência em florestas ou comunidades afastadas ainda não alcançadas pelo poder da mercadoria, das políticas públicas ou as planta- ções. Constitui-se também como programa para a antropologia, onde queira que exista um lugar para algo não ser incorporado, para divergir ou continuar pensando por fora da ordem e racionalidade dominantes. Entre as populações indígenas da América do Sul, universo da maioria das pesquisas aqui trazidas, o retorno cosmopolítico se verifica com uma maior visi- bilidade para lutas pelo território e pela vida – em um sentido amplo e aberto. A comunidade – complexo de relações de não-representação e conexões parciais com outros seres, onde se confundem tempo e espaço, natureza e cultura (na definição de De La Cadena, 2015) – conseguiu alterar marcos constitucionais e de políticas públicas, levando também Pachamama para novos lugares, que não são os da “Natureza”, nem da “Cultura”, como esferas diferenciadas. No entanto, a comunidade se desenvolve principalmente num nível subterrâneo, onde tam- bém se tecem alianças com resistências cosmopolíticas de cidades colapsadas, burocratizadas e atropeladas por promessas do progresso que se realiza como destruição. As relações do Ayllu andino que, como arquipélago ou memória an- cestral persiste nos Andes, se encontra também com um esquecimento e noma- dismo das terras baixas onde o corpo, como ensamblagem de afetos, é o lugar de onde se perfila uma troca de perspectivas, que também não é um diálogo entre culturas, e exige pensar para além da representação (Viveiros de Castro, 2015a). Nesse cenário, a possibilidade de nossa contribuição encontra dificuldades na eminente destruição de territórios e formas de vida, produto de um avan- ço avassalador contra a diferença que questiona o próprio sentido do projeto antropológico. Este encontra vigor na cumplicidade com outros mundos, contra os universalismos imperiais, ali onde seja possível experimentar, criar ou diferir, antes ainda que direitos sejam reivindicados, e pacificações violentas tentem ser decretadas. Poucas são as ferramentas contra o governo biopolítico, o pensa- mento de Estado, e o antropocentrismo que define o ambiente em função do Homem, tentativas articuladas de demarcação dos limites do possível. Xamãs, Rev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 59 n. 3: 7-17 | USP, 2016 dossiê | Apresentação | Salvador Schavelzon 9 bruxas, e persistentes agricultores ou ociosos selvagens, no entanto, mantém uma resistência cosmopolítica ativa, em sintonia com a necessidade de inter- ferência contra as frentes do capitalismo sul-americano do agronegócio, da exploração extrativa de grande escala, da mercantilização da vida e do território (ver por exemplo, nessa direção, Kopenawa e Albert, 2010 e Comisión Sexta del EZLN, 2015). É junto a esses mundos e possibilidades de diferença que a antropologia se soma às lutas de descolonização, autonomia e cosmopolítica, contra a sobreco- dificação dos mundos dos outros, e como parte de uma reconfiguração do cam- po científico que aposta por uma nomadologia, ou ciência menor; do clinâmen; da cartografia problematizadora como método; da coexistência de heterogêne- os; da metamorfose continua contra os aparelhos de identidade do Estado; de mundos que são acontecimentos antes do que essenciais ou estabilizações que se pretendem universais e redutíveis a binarismos persistentes (Deleuze e Guat- tari, 1980). Essa antropologia assume o “programa” zapatista de pensar um mun- do onde caibam muitos mundos, e resiste hoje por distintos caminhos à tentativa de calar as vozes dos outros a partir de vários pragmatismos desencantados, sejam sofisticados, na imposição de uma única História onde todos se proponham incluídos, ou brutais, mas sempre negando a proposta cosmopolítica pela qual a diferença não é explicada nos termos do mundo hegemônico, não corresponde ao folclore, nem ao pequeno teatro humano do multiculturalismo. Para além do humano, numa contínua reinvenção de mundos que escapam da civilização euro-estadunidense, os trabalhos aqui apresentados contribuem numa cartografia que recupera, traduz, problematiza, descreve e dialoga com mundos de populações que mantêm vínculos ancestrais com o lugar, ou novas resistências frente ao persistente assédio etnocida (cf. Clastres, 2003) na resis- tência desde o lugar (Escobar, 2008). Eles se inserem nos esforços de registrar a diferença entre as próprias formas de entender a diferença (Wagner, 1975), com estórias etnográficas (Blaser, 2010) que permitem que nos aproximemos de fragmentos de interações entre mundos. A antropologia encontra assim, nos desdobramentos da sua etnografia, a recusa de uma ciência da identidade e dos significantes mestres que fazem da vida dos outros um eterno retorno aos nossos lugares de conforto: o social, o poder, os direitos, a cultura, a natureza. Ao contrário, infinitas epistemologias se configuram a partir de outras onto- logias. Estas abrem caminhos de multiplicidade, de acordo com as práticas que sejam agenciadas, porque a cosmopolítica exige perguntarmos não sobre um mundo de diferenças, também não sobre diferentes perspectivas sobre o mun- do, mas sobre como as diferenças dizem respeito a diferentes mundos. Longe do mononaturalismo que separa toda forma de sociedade da natureza; e do mul- ticulturalismo, que faz a mesma coisa na ideia de ontologias que se encontram Rev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 59 n. 3: 7-17 | USP, 2016 dossiê | Apresentação | Salvador Schavelzon 10 num mundo que é igual para todos; a ontologia se afasta do uso comum do con- ceito de “cultura” (Venkatesan et al., 2010). No seu sentido antropológico atual, aberto ao multinaturalismo, a “ontologia” aparece então, no dizer de Viveiros de Castro (2015b), como máquina filosófica de guerra antiepistemológica e contra- cultural (nos dois sentidos de “contracultura”), além de ser também “contrana- tura”, como simbiose transversal entre heterogêneos, devir entre o homem e a natureza, aliança “antinatural” e externa ao Estado (Viveiros de Castro, 2015a). Um elemento revelador do tipo de antropologia que aparece nos trabalhos aqui reunidos é a evitação do tratamento conceitual das “realidades” apresen- tadas pelos indígenas como “representações”; como idiossincrasias particulares de um mundo único, que seria produto da organização da vida em torno de uma “Sociedade” que a política dos homens, através do Estado, deveria cuidar e pasto- rear; e de uma “Natureza” que a ciência moderna seria responsável por desvelar, o Homem por transformar, o capitalismo por explorar e desenvolver; e a “cultura” por explicar, de forma “relativa” em cada lugar. A crítica a esta episteme moderna, descrita de forma notável por Foucault (1966), é também a crítica da “Constitui- ção Moderna” de Latour (1993), como regime que reduz “mundos” e “ontologias” a variações locais, simbólicas, humanas, não audíveis pelas ciências “sociais” fieis ao edifício civilizacional de Ocidente. O cenário é então de guerra de ontologias (Almeida, 2013; Schavelzon, 2016), ou de “conflitos ontológicos” que vem obtendo uma visibilidade sem preceden- tes na crise da modernidade, e dão conta de pluriversos performados na forma de uma “ontologia política”, onde a realidade é atuada e produto da intervenção, não da observação ou da construção humana (Blaser, 2013). Se trata de diferenças ontológicas que são políticas porque implicam uma situação de guerra, que também não é de palavras (como para a virada linguística), mas de mundos, como mostra a etnografia (Viveiros de Castro, 2015b) ou, no mesmo sentido, “po- líticas de ontologia”, como multiplicidade de formas de existência agenciadas na forma de práticas (Mol, 2002; Povinelli, 2012; Holbraad, Pedersen, e Viveiros de Castro, 2014), contra o empobrecimento do universo, ou sua mistificação natura- lista ou sociológica. Neste confronto, os povos com os quais a antropologia entra em contato resistem contra um mundo invadido faz tempo pelos Modernos e que, mesmo que já acabado, se impõe aos mundos dos outros com capacidade para destruí-los (Danowsky e Viveiros de Castro, 2014). A guerra de ontologias confronta universos diferentes, de universalismos cartesianos e imperiais com universalismos tribais, não sempre de totalidade projetada e ecumenismo; de ruptura a-significante e não de captura e expansão centralizada; de abertura para o outro contra o fechamento para si. Essa guerra contra a unidade e a eliminação da diferença ocorre com um pluriverso formado por elementos dispersos, pedaços e restos que se articulam de outra forma, sem Rev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 59 n. 3: 7-17 | USP, 2016
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