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Relatório de viagem ao rio Tapajós elaborado por Rita Heloísa de Almeida em atendimento ao PDF

65 Pages·2017·14.59 MB·Portuguese
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Preview Relatório de viagem ao rio Tapajós elaborado por Rita Heloísa de Almeida em atendimento ao

\ 1·· -- ---T-. -·- -- -- - - -----------. --- . ' ! . 1 f / 1 .} ' f 1 1 1 MINISTÉRIO DA msTIÇA Fundação Nacional do Índio Relatório de viagem ao rio Tapajós elaborado por Rita Heloísa de Almeida em atendimento ao artigo 3º da Portaria n.º 84 de 31 de janeiro de 2001, publicada pelo DOU de 02 de fevereiro de 2001, e ao artigo 1º da Portaria n.º 478/PRES/31 de maio de 2001, DOU de 7 de junho de 2001. Brasília, julho de 2001. ., ," J MINISTÉRIO DA JUSTIÇA Fundação Nacional do Índio Sumário Introdução 3 1. Aguardando o barco em Sai Cinza • 5 2. Viagem de barco pelo trecho Jacareacanga a Itaituba 1 O 2.1. Esclarecimentos sobre os métodos de pesquisa empregados 1 O 2.2. Comunidades visitadas no alto e médio Tapajós 14 2.2.1. São Martinho 14 2.2.2. Boca do Pacu 17 2.2.3.Uma colônia sem especificação do nome 17 2.2.4.Mamaiãnã 18 2.2.5.TerraPreta 20 2.2.6.Tucunaré 21 2.2. 7.Boa Fé 22 2.2.8.Ilha do Tucunaré 24 2.2.9.Povoado de Pimental 25 2.2.1 O.Povoado de São Luís do Tapajós 27 2.2.1 l.Km 43 30 3.Reunião em Santarém -PA 31 4. De volta ao barco para o trecho Santarém a Itaituba do baixo Tapajós 36 4.1 Comunidades que solicitaram esclarecimentos do GT 3 7 4.1.1.Anumã 37 4 .1.2 Solimões 3 7 4.1.3.Capichauã e Vista Alegre 38 4.1.4.Itapaiúna e Paraíso 39 4.2. Comunidades da Floresta Nacional do Tapajós que solicitaram a presença do GT 41 4.2.1.Taquara 44 4.2.2.Bragança 46 4.2.3.Marituba 47 4.3.Comunidades da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns que solicitaram o GT 48 4.3.1.Muratuba 50 4 .3 .2.Mirixituba 51 4.3.3.Santo Amaro 52 4.3.4.Jauarituba 54 4.3.5.Paranã Pixuna 55 4.3.6.Jaca 56 4.3.7.Pinhel 57 4.3.8.Camarão 58 4.3.9.Escrivão 59 5. Considerações Finais 59 Material de pesquisa 62 Lista de anexos 65 ) MINISTÉRIO DA JUSTIÇA Fundação Nacional do Índio Relatório de viagem ao rio Tapajós Introdução Desde 1998 chegam à Diretoria de Assuntos Fundiários da Fundação Nacional do Índio (Funai) solicitações da Administração Executiva Regional de Itaituba, P A, advogando a formação de grupo de trabalho para realizar estudos antropológicos sobre as comunidades ribeirinhas do baixo Tapajós. O primeiro documento entregue por uma das comunidades à administração da Funai em Itaituba traz informações sobre procedência étnica, mencionando três indivíduos que fizeram a história recente do lugar: Simplício Pinto de Assunção, "descendente da tribo Munduruk:u", Manuel Ribeiro dos Santos, "descendente da tribo Tupinambarana,..da margem esquerda do rio Tapajós", e Laurelino Floriano Cruz, "descendente da tribo Cumoruara, do rio Arapiuns". Afirmando-se indígenas, nascidos e criados na localidade de Taquara, perguntam, neste documento, se não teriam direito de validar a terra em que vivem "como área indígena". Sua dúvida consistia na condição de essas terras estarem localizadas dentro da Floresta Nacional do Tapajós, sob a jurisdição do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (lhama). No ano seguinte, em 17 de julho de 1999, a mesma comunidade renova a solicitação de seu reconhecimento como povo indígena, dirigindo-se, desta vez, ao Departamento de Identificação e Delimitação da Funai(Deid), em Brasília. Mas não obteve resposta. Em carta redigida durante o II Encontro dos Povos Indígenas do Tapajós e Arapiuns, realizado de 30 de dezembro a l.º de janeiro de 2001 na comunidade de São Francisco, mais de duzentas pessoas representantes das etnias Maitapu, Tupinambá, Munduruk:u, Cumaruara, da ThPfiló, Cara-Preta, Arapiµn, Kaiapó dirigem-se ao presidente da Funai, Glênio Costa Alvarez, solicitando a demarcaçãodé suas terras em regime de urgência, tendo em vista as invasões e ameaças que vêm sofrendo por parte de madeireiros, fazendeiros e, ainda, em razão da pesca predatória. O abaixo-assinado, entregue junto com este requerimento, traz uma série de nomes de pessoas e respectivas comunidades entre os quais destacam-se Tak:uara, Jauarituba, Muratuba, Vila Franca, São Pedro, Camarão, Escrivão, São Francisco, Santo Antônio, Paraná-Pixuna, Santo Amaro, Mirixituba, Nova Vista e Pinhel. Dentre as entidades, compareceram representantes do Conselho Nacional de Seringueiros (CNS), Grupo Consciência Indígena (GCI), Grupo de Religiosos Negros e Indígenas (Greni), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira(Coiab), Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Ordem dos Frades Menores (OFM) e muitas das associações comunitárias de ribeirinhos que residem dentro da Flona - Tapajós e da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns. Estava configurada a questão. Uma outra carta redigida na aldeia Bragança alguns dias depois, em 14 de janeiro do corrente ano de 2001, é dirigida ao Procurador da República em Santarém, com cópias para o Ministério Público Federal, a &Câmara da Procuradoria da 3 MINlSTÉR10 DA JUSTIÇA Fundação Nacional do ÍndÍo República, o Presidente da Funai, o Coordenador do Conselho de Saúde Indígena(Cosai), autoridades públicas estaduais e municipais, Cimi, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e Coiab. Esta carta principia com um orgulhoso "nós Munduruku do baixo Tapajós", citando 18 comunidades dos rios Tapajós e Arapiuns, . entre as quais Jaca, Bragança, Marituba e Anhinhauzinho aparecem pela primeira vez. Em que pese estarem estas comunidades situadas em área de preservação ambiental, é relatado um quadro preocupante de invasões de suas terras por posseiros, fazendeiros, madeireiros e pescadores. Argumentando que dependem exclusivamente da extração de produtos da floresta para a sobrevivência tisica e coletiva, renovam a solicitação feita inicialmente por Taquara pela constituição de um grupo técnico para realizar estudos antropológicos que atestem a presença de índios nas margens direita e esquerda do baixo Tapajós e Arapiuns carentes de assistência médica, educação e garantia das terras que ocupam tradicionalmente, muitas vezes em caráter imemorial. O passo seguinte foi a criação de grupo técnico pela Portaria 84, de 31 de janeiro de 2001 (Diário Oficial da União (DOU) de 2 de fevereiro de 2001), para realizar estudos e levantamentos preliminares sobre as comunidades Munduruku localizadas ao longo do Rio Tapajós, composto por Rodrigo Pádua Rodrigues Chaves, antropólogo, Funai/United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization(Unesco), como Coordenador, Rita Heloísa de Almeida, antropóloga, Deid/Daf e Walter Azevedo Tertulino, Administrador regional da Funai em Itaituba. Assim, conforme a mesma portaria, o grupo técnico teria o prazo de quarenta dias para a realização dos trabalhos de campo e mais trinta dias para entrega do relatório. No Plano Operacional do GT definiu-se como objetivo geral "realizar levantamento das comunidades localizadas ao longo do rio Tapajós, visando a fornecer subsídios aos estudos futuros de identificação e delimitação de suas terras. Como objetivos específicos estabeleceu-se: a) realizar estudos e levantamentos sócio-econômico, histórico e antropológico dos grupos indígenas envolvidos, b) apresentar diagnóstico da situação atual das comunidades e c) propor sugestões para solução do problema fundiário existente. Os integrantes do GT Rio Tapajós iniciaram a viagem de barco ao longo do rio Tapajós em Jacareacanga, pontilhando visitas a diversas comunidades ribeirinhas até Itaituba, onde seriam convidados a participar de reunião pela manhã do dia 9 de abril de 2001, no lhama, em Santarém, com representantes das comunidades do baixo Tapajós. Retomaram a seguir ao barco para realizar a segunda etapa do levantamento conhecendo, as comunidades que foram motivo desta viagem e que estão situadas nas margens do baixo Tapajós, ao longo dos municípios de Santarém, Belterra e Aveiro. No correr do trabalho de campo foi necessário solicitar mais onze dias para concluir a programação de visitas às comunidades que aguardavam a presença do grupo técnico, o que se efetivaria através da Portaria 380, de 19 de abril de 2001 (DOU de 8 de maio de 2001 ). O deslocamento de Brasília para área objeto da pesquisa deu-se em 15 de março, concluindo-se os estudos e levantamentos de campo em 2 de maio do corrente ano. Todo o trabalho de campo foi pensado e realizado em equipe pelos dois antropólogos. Ao retomar a Brasília, o antropólogo coordenador deste grupo técnico, Rodrigo de Pádua Chaves, deparou-se com a situação, que esperamos ser provisória, de suspensão dos contratos da Funai com os consultores da Unesco. O relatório de viagem que será tratado a .. ,al -, :··· .. ~:;·:' ... . "Ju.:: .• MINIS1ÉRIO DA JUSTIÇA Fundação Nacional do Índio seguir foi elaborado por Rita Heloísa de Almeida com base nos estudos e levantamentos realizados em conjunto com Rodrigo Chaves. As opiniões aqui emitidas são de responsabilidade da autora, que espera possam elas subsidiar futuras decisões e relatórios conclusivos a serem apresentados como produto desta viagem. 1. Aguardando o barco em Sai Cinza O ponto inicial da viagem foi uma estada no Posto Indígena Sai Cinza, onde existe uma aldeia Munduruku de 500 pessoas. Essa é a aldeia mais próxima da cidade de Jacareacanga, a uma hora de "voadeira", e ao mesmo tempo representa a porta de entrada para o mundo Munduruku, posicionada em está nos limites de seu território tradicional. A particularidade histórica de ter sido área de um empório comercial, onde era vendida a produção de borracha dos índios do Cadiriri e do Cabitutu, reforça essa condição liminar. (Murphy, 1954:26) A própria Jacareacanga é uma cidade indígena, com uma população residente de origem Munduruku numerosa e uma participação igualmente expressiva tanto na economia extrativista - a castanha e a copaíba - quanto na política do município, atualmente representada por três vereadores e o vice-prefeito. Para termos mais idéia da representação numérica da etnia Munduruku: de um total de 45 escolas, 34 são exclusivamente para crianças indígenas que vivem nas aldeias e, de um eleitorado geral de 5.000 pessoas, 1.600 são eleitores índios. ( dados fornecidos pela prefeitura municipal) Deslocamo-nos de Brasília no dia 15 de março de 2001 com destino ao Posto Indígena Sai Cinza, aproveitando a oportunidade oferecida pela Associação Pusuru de acompanhar de perto as atividades realizadas no último dia da XIII Assembléia Geral do Povo Munduruku que ocorria entre os dias 15 e 18 de março último. O evento atraiu índios de todas as aldeias da etnia, além de trazer autoridades públicas e organizações não governamentais. Algumas destas organizações, como a OFM e o Greni, mais familiarizadas com a questão das comunidades ribeirinhas do baixo Tapajós, forneceram as primeiras indicações relativas à sua localização geográfica, permitindo o delineamento do que seria o nosso roteiro de viagem. ( anexos 1,2,3) Além da movimentação trazida pela realização da XIII Assembléia, a aldeia resplandecia em satisfação assistindo aos preparativos para o início da demarcação fisica da Terra Indígena Munduruku, após longa e penosa batalha política e administrativa na qual a etnia teve participação ativa. Era um momento privilegiado para avaliar o sentimento de etnia. Tinha-se nítida sensação de estar em território de uma etnia fortemente constituída, a quem consideramos apropriadamente uma tribo no sentido da organização social. A língua Munduruku atuante, muito viva estabelece a :fronteira com o mundo exterior. A grande maioria - mulheres, crianças, anciãos - conhece pouco a língua portuguesa. Um véu de silêncio e recato preserva esse significativo segmento social, que fica na retaguarda em relação ao mundo exterior, na concepção genuinamente guerreira de um povo que fez da guerra um oficio de revitalização de sua sociedade. A comunicação dá-se assim através do homem, principalmente o jovem Munduruku que domina a língua portuguesa e outros códigos culturais de nossa sociedade. No transcurso da XIII Assembléia, em meio as atividades desenvolvidas, destacava-se o jovem na condução das discussões e na formulação de MINISTÉRIO DA JUSTIÇA Fundação Nacional do Índio propostas políticas e projetos comunitários para a etnia. A melhor expressão deste fato é a existência de duas fortes organizações indígenas nascidas entre eles a partir dos próprios quadros de liderança: a Associação Indígena Pusuru e o Conselho Indígena Munduruku do Alto Tapajós (Cimat). A preparação de monitores indígenas para o exercício de educação bilíngüe constitui outro exemplo. Os jovens Munduruku voltam-se às suas tradições como o fizeram os jovens das gerações anteriores que tinham a guerra como referência à sua preparação. Naturalmente o movimento de resgate não se faz na mesma direção: não são os velhos a transmitirem aos jovens a propósito de uma formação que forjava guerreiros, são os próprios jovens a aprenderem e transmitirem as tradições de seu povo enquanto professores, líderes de aldeias e associados. Numa sociedade guerreira em que não se faz mais a guerra, os jovens preparam-se para atuar como mediadores de sua cultura. Fazem-no, entretanto, com a mesma postura de defesa e continuação da etnia que orientou as gerações passadas. Sai Cinza retoma a seu cotidiano com o encerramento do encontro e a partida dos participantes para suas aldeias de origem. De nossa parte, voltamos toda atenção às questões do levantamento a ser feito entre as comunidades ribeirinhas do baixo Tapajós. Até então, com os documentos iniciais de que dispúnhamos, estávamos diante de duas explicações apresentadas por estas comunidades para se assumirem como indígenas: a) são filhos, netos, bisnetos de índios Munduruku que saíram dos campos do alto Tapajós descendo o rio em direção aos povoados e cidades nos últimos 50 anos do século XX ou b) são índios que descendem de etnias históricas, Maitapu, Tupinambá, Cumaruara, Arapiun, Tapajós, isto é, distintas populações indígenas que habitavam a região nos primeiros séculos da colonização, sobre as quais - até a manifestação destas comunidades contemporâneas - não havia evidências históricas e etnográficas que atestassem a sua continuidade nos dias atuais. Veremos adiante - e com mais detalhes e discussão - que essas duas explicações sobre a origem dessas comunidades que reivindicam reconhecimento étnico são exatamente as situações que serão encontradas ao longo do levantamento, muitas vezes coincidindo ambas em uma mesma comunidade. Naquele momento, porém, em Sai Cinza, o que se apresentava fazer era refletir sobre a primeira explicação investigando os movimentos migratórios e a expansão territorial do povo Munduruku. É bastante conhecida e realçada como dado cultural, tanto na literatura antropológica quanto na história da colonização da região, a mobilidade espacial do povo Munduruku. Desde a segunda metade do século XVJII, quando passam a ser observados, os registros coloniais assinalam a presença de seus grupos tanto em incursões guerreiras aos povoados brancos e tribos inimigas quanto em assentamentos permanentes por vários pontos dentro desta vasta região que compreende os cursos dos rios Madeira e Tapajós. Há notícias de sua presença nos rios Canumá e Mahué em 1768; no rio Madeira, e além deste, o Lago Autazes, em 1786, e a leste do Tapajós às margens do rio Curuá, em 1780. Há também notícias (porém, sem comprovação) de sua expansão bélica em direção ao extremo leste, cruzando o Xingu e o Tocantins, assim como de sua penetração ao sul atingindo a foz do rio Parado, afluente oriental do Teles Pires e do Juruena. (Menéndez, 1981/2: 351-352) Durante todo o século XIX, as fontes são unânimes em afirmar o predomínio bélico e cultural dos Munduruku por todo o Vale do Tapajós. (Ramos, 2000:27) ,;'•.J;,, '····9 '· .. ; •..~ ,1,; •' ,. .,:_~ :-\_.j. .:i' MINISTÉRIO DA JUSTIÇA Fundação Nacional do Índio Avalie a dimensão desta mobilidade, tendo em vista o habitat tradicional da etnia que os registros históricos situam nos campos interiores do alto Tapajós e que a mitologia Munduruku particulariza indicando o lugar de origem como sendo a aldeia Dekodyemi, localizada nas campinas do alto Cururu, e visualize os surpreendentes deslocamentos então verificados entre esses índios durante os séculos XVIII e XIX. Esses registros por si só explicam e vêm confirmar porque hoje certas comunidades ribeirinhas localizadas no baixo Tapajós atribuem sua origem à etnia Munduruku. Contudo, a permanência de alguns dias em Sai Cinza iria propiciar a observação de novos aspectos sobre a mobilidade Munduruku, quando nos seriam dados a conhecer os casos recentes de migração e as suas possíveis razões. Sai Cinza lembra menos uma aldeia tupi - com sua casa dos homens e algumas poucas moradias dispostas em círculo - do que os povoados habitados por brancos civilizados (para ficarmos com as dicotomias regionais) que se desenvolvem em linha reta paralelamente ao principal curso d'água. A administração do posto funciona em uma das casas de alvenaria dispostas lado a lado, formando uma rua defronte ao rio Tapajós. Nas demais casas, também de alvenaria, funcionam uma das escolas e o posto médico. Ao fundo, dois galpões utilizados como escola e local de reunião. Dentro da aldeia, há também uma igreja da Convenção Batista e duas residências pertencentes a missionários daquela orientação religiosa. Em torno assentam-se as famílias indígenas em 70 casas feitas de pau-a-pique ou tábuas, cobertas de palha ou telha de cimento. Algumas possuem televisor, rádios, toca-fitas. A barreira da língua mantém mulheres e anciãos à distancia dos visitantes, parecendo a nós, recém-chegados, que vivem alheios ao mundo além de sua aldeia. Em compensação, a nova geração parece estar sintonizada com a cultura nacional: descolorem os cabelos, fazem cortes à moda, comportam se como os jovens de nossa sociedade, mas combinam essa adesão aparentemente incondicional com o uso de tatuagens emblemáticas de sua etnia feitas com tinta de jenipapo (o que, enfim, se traduz numa rara coincidência cultural entre duas sociedades). Com tal gesto, estes jovens parecem comunicar o modo como o povo Munduruku tem procurado manter sua cultura e unidade étnica sem fechar-se ao que de interesse, prazer ou necessidade entre os nossos meios possa ser incorporado ao seu modo de vida. Os Munduruku cessaram as hostilidades contra os brancos em 1795_ Desde então os contatos serão intermitentes com os comerciantes da borracha, acentuando-se quando este comércio chega aos seus domínios territoriais no alto Tapajós, em meados do século XIX. Em caráter permanente passam a conviver com nossa sociedade com a chegada da Missão São Francisco no rio Cururu, em 1911 e, do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), em 1942, instalando-se o Posto Indígena Munduruku na aldeia Apompê, situada também nas proximidades do mesmo rio. (Ramos, 2000: 134) Quando estiveram com os Munduruku, entre 1952 e 1953, os antropólogos Robert e Yolanda Murphy (1954) visualizaram claramente três situações socioculturais: a) a dos índios campineiros, que conservavam seu modo de vida tradicional habitando regiões menos acessíveis a leste do Tapajós nas cabeceiras dos rios Cadiriri, Cabitutu e das Tropas (p.22); b) a dos índios do rio Cururu, mais sujeitos ao contato interétnico, estando às margens de um MINISTÉRIO DA JUSTIÇA Fundação Nacional do Índio curso d'água navegável; e e) a dos indivíduos e famílias que já viviam nas proximidades ou dentro de povoados ribeirinhos junto às demais populações indígenas e não-indígenas. Presenciando momentos importantes de transição da sociedade Munduruku, os antropólogos demonstraram ceticismo quanto às possibilidades futuras de sobrevivência cultural e étnica destes índios, a julgar pelas condições servis de sua incorporação à economia regional, pelas perdas populacionais em surtos epidêmicos e pela ingerência dos missionários sobre suas crenças e práticas religiosas. As maiores mudanças seriam observadas no campo da cultura material que visivelmente se empobrecia na razão direta da dependência que os índios passam a ter dos artigos manufaturados adquiridos no comércio da borracha. Alterações significativas na organização social dos grupos locais também iriam produzir novos arranjos do espaço social. Como exemplo, as casas ficam menores, destinadas a abrigar menos pessoas, ordinariamente, a família nuclear. A família extensa deixa assim de ser referência, cedendo lugar à família nuclear enquanto grupo primário de definição do espaço social e da organização das atividades econômicas, inclusive as realizadas coletivamente como a caça e o cuidado das roças. (Murphy & Murphy, 1954:38-41) Essas mudanças profundas na concepção de grupo doméstico seriam visualmente observadas na disposição espacial das aldeias que, segundo os Murphy, passam a ser constituídas de "casas quadradas colocadas numa clareira, sem qualquer arranjo especial". (id.: 38) O ponto de referência a estas observações são os Munduruku habitantes de aldeias tradicionais nos campos interiores do alto Tapajós, onde puderam presenciar em pleno funcionamento uma sociedade fortemente orientada pelo padrão de descendência patrilinear definindo a população no âmbito de cada localidade em clãs patrilineares inclusos em metades exogâmicas que se distribuem, em termos espaciais, segundo a regra do casamento matrilocal. Estas observações - lidas 50 anos depois enquanto conhecia pessoalmente uma das aldeias Munduruku ( e exatamente uma que não é tradicional) - servem-nos como guia de referência para avaliar os desdobramentos de um contato interétnico que apenas se iniciava. À procura de dados sobre as migrações recentes, estando justamente a relacionar os possíveis parentes que desceram o rio Tapajós e que hoje integram as comunidades ribeirinhas a serem visitadas, chegamos às pessoas mais idosas da comunidade de Sai Cinza e destes aos seus grupos domésticos. Nessas visitas podia-se ouvir senhores indígenas se posicionarem em termos espaciais, dizendo: "estou entre cunhados", ou registrar seu genro explicar que "mora próximo à casa de sua sogra", como que confirmando uma matrilocalidade ainda viva e atuante na distribuição contígua das casas onde residem famílias nucleares relacionadas entre si. Tudo isto a mostrar que detrás do aparente acaso de uma distribuição espacial semelhante a dos povoados ribeirinhos da Amazônia, há padrões culturais e étnicos definidores de relações e categorias sociais estabelecendo uma identidade, o rosto daquela sociedade. O mais surpreendente, o que mais se destaca nestes dois momentos de observação antropológica é a maleabilidade dos índios Munduruk:u, a sua capacidade de refazer-se nas situações socioculturais e econômicas que se apresentam no contato interétnico. E, ao contrário de um enfraquecimento ou mesmo diluição da cultura Munduruku, como parecia ser a tendência decorrente de um processo de aculturação, o que se revelou foi um vigoroso sentimento de etnia recuperando o já perdido ou fortalecendo o existente, remodelando-o, do qual são 8 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA Fundação Nacional do Índio exemplos coletivos, vale acentuar, a formação das associações e a preparação de professores para o ensino bilingüe nas aldeias. Entendo sentimento de etnia como a convicção com que seus membros realizam um modo de ser e compreender o mundo. Penso que o povo Munduruku possui essa convicção sobre as próprias interpretações, expressando-a mediante uma mitologia, uma visão histórica dos fatos de que participa e um entendimento religioso absolutamente peculiares. O indigenista e historiador André Ramos (2000) em sua dissertação ''Entre a cruz e a riscadeira: catequese e empresa extrativista ente os Mundurukú (1910-1957)" coloca em evidência a convicção desses índios em suas interpretações da história ao reconstituir os anos de atuação do SPI no alto Tapajós tomando como fonte de pesquisa o que relatam esses próprios. É com esta mesma convicção que os índios de Sai Cinza irão nos fornecer uma versão peculiar das migrações recentes dos parentes que saíram em caráter definitivo desta e outras aldeias do alto Tapajós nesses últimos 50 anos. As poucas notícias que os parentes que permaneceram dispõem a respeito destes indivíduos que migraram dão-nos como vivendo em povoados ribeirinhos como Pimental e São Luís, na altura das cachoeiras do Tapajós ou à beira da rodovia Transamazônica, já nas proximidades de Itaituba. Atrás destes indivíduos seguem os parentes imediatos, mulher e filhos e, mais tarde os parentes da esposa, entre outros, constituindo, gradualmente, grupos maiores que não perdem a identidade indígena mesmo estando imersos ao longo de muitas gerações em comunidades não indígenas. Indagando aos índios de Sai Cinza os motivos da migração, estes nos disseram com recato, embora com muita franqueza, que, em alguns casos, foram indivíduos acusados de feitiçaria que fugiram, livrando-se de uma condenação coletiva que inevitavelmente os levaria à morte, conseguindo escapar tomando o rumo da descida do rio e dos povoados ribeirinhos do médio e baixo Tapajós. Estas explicações também foram ouvidas pela antropóloga Ana Luísa Gonçalves de Alencar quando, em março de 1997, realizou estudos complementares para a regularização :fundiária das terras indígenas Praia do Índio e Praia do Mangue, ambas situadas no município de Itaituba. Ao informar pela primeira vez em caráter oficial a presença de grande número de famílias Munduruku vivendo em Pimental e São Luís, a antropóloga deixa-nos este importante registro: "Sabe-se, de acordo com alguns dos informantes da Praia do Mangue, que muitos dos índios que moram nestas regiões também vieram fugidos do alto Tapajós por acusação de feitiçaria. E que, além destes Munduruku aqui destacados, existem outras tantas famílias que muitas vezes vivem isoladas em várias partes do Tapajós, pela mesma razão. (Processo Funai n.º 08620.1.662, fl. 190) V ale salientar outro trecho de seu relatório em que esta antropóloga chama atenção para que não se vejam as migrações Munduruku somente como resultado de suas atividades guerreiras no passado ou das vicissitudes do contato interétnico, sugerindo em contrapartida que, concomitante a estes fatores, considerem-se esses movimentos populacionais como decorrentes de divergências internas no âmbito das aldeias, causando fracionamentos e disoersão esoacial. (id .. 186) MJNISTÉRIO DA JUSTIÇA Fundação Nacional do Índio Estas observações estão de acordo com o que percebeu Robert Murphy (1958) em um estudo específico (talvez o único ainda existente) sobre a religião Munduruku, ao considerar a execução de feiticeiros uma fonte de faccionalismo. E de fato estas execuções, acontecendo em momentos de comoção social (por exemplo, uma epidemia), atuam como válvula de escape aplacando agressões e hostilidades internas dentro da sociedade. É o que nos explicaria este antropólogo ao chamar nossa atenção para o delicado equilíbrio existente entre as crenças religiosas e as relações internas no âmbito das aldeias. É sabido que a posse de um poder hereditário, como o de ser filho de um pajé, é condição suficiente para ser um suspeito potencial. Assim o medo contínuo ou a ameaça efetiva de ser acusado e executado pela coletividade acaba suscitando esses movimentos migratórios que, a principio, têm o caráter individualizado de segmentos familiares mas, com o passar das gerações, tomam-se responsáveis pela formação de novas comunidades de referência étnica Munduruku. Além da quase natural conexão entre a religião e a política que estas migrações revelam existir, vale acrescentar as pertinentes observações do engenheiro Antônio Manuel Gonçalves Tocantins a respeito do fenômeno quando, em 1875, ele foi o primeiro homem branco a atingir as aldeias centrais do alto Tapajós e a registrar em pleno funcionamento esta mesma crença nos maus pajés e na necessidade de executá-los para o restabelecimento do equilíbrio social, como expressão do código criminal específico deste grupo indígena. (1875/1877: 111) Trata-se, pois, de uma exclusão social por morte ou fuga. Punição irrevogável, na qual nem os parentes podem intervir ou antecipar-se avisando o acusado. Quando, porém, a fuga se toma possível propicia o exílio e a constituição de algumas das comunidades que iremos aqui descrever. Teremos assim a oportunidade de conhecer a versão daqueles que migraram sobre o que acabamos de registrar em Sai Cinza, com os seus parentes. 2. Viagem de barco pelo trecho Jacareacanga a Itaituba 2.1. Esclarecimentos sobre os métodos de pesquisa empregados A julgar pelos documentos de reivindicação iniciais aqui já mencionados e que hoje fazem parte do Processo Funai 08620 0656/2000 nos quais as comunidades do baixo Tapajós e Arapiuns solicitam a vinda do GT para realizar estudos antropológicos, tínhamos como perspectiva de pesquisa visitar, separadamente ou em conjunto, algo em tomo de 32 comunidades, a saber: 1.Jauarituba, 2.Takuara, 3.Vila Franca, 4.São Francisco, 5.Muratuba, 6.São Pedro, 7. Camarão, 8.São Pedro, 9.Escrivão, 10.Santo Amaro, 11.Paraná Pixuna, 12.Santo Antônio, 13.Mirixituba, 14.Nova Vista, 15.Pinhel, 16.Marituba, 17.Bragança, 18.Marai, 19. Prainha,20.Paraíso, 21.Itapaiuna, 22.Anumã, 23.Pedra Branca, 24.Amorim, 25.Tucumã, 26.Raposa, 27.Maripa, 28.Suruacá, 29.Pini, 30.Tauari, 31.ltapuama, 32.Itapaiúna. Esses nomes foram anotados a partir de abaixo-assinados que acompanhavam os documentos de reivindicação oficiais, além daqueles listados nos documentos enviados pela administração regional da Funai em Itaituba. Até então não se conhecia a dimensão destas lo

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seguir foi elaborado por Rita Heloísa de Almeida com base nos estudos e encaminhados à Funai, agora manifestavam receio de virem a ser
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