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Participação e liberdade política em Hannah Arendt PDF

18 Pages·2007·0.08 MB·Portuguese
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CADERNOS DE FILOSOFIA ALEMÃ nº 10 | P. 83 - 100 | JUL-DEZ 2007 Participação e liberdade política em Hannah Arendt* Yara Frateschi** RESUMO: PRETENDE-SE, NESTE ARTIGO, MOSTRAR DE QUE MODO ARENDT, MANTENDO-SE FIEL À SUA POSIÇÃO ANTIMARXISTA E À CRÍTICA CONTUNDENTE DA DEMOCRACIA FORMAL, COMBINA ELEMENTOS LIBERAIS E DEMOCRÁTICOS PARA DEFENDER UM MODELO DE ESTADO CONSTITUCIONAL, ONDE OS DIREITOS INDIVIDUAIS SEJAM GARANTIDOS AO MESMO TEMPO EM QUE SEJAM MANTIDOS ESPAÇOS DE LIBERDADE QUE PERMITAM AOS CIDADÃOS TORNAREM-SE, DE ALGUM MODO, PARTICIPAN- TES DA GESTÃO GOVERNAMENTAL E DAS QUESTÕES PÚBLICAS EM GERAL. PARA TANTO, ME CONCENTRAREI, NÃO NOS TEXTOS EM QUE ARENDT SE VOLTA PARA O TOTALITARISMO OU PARA A DITADURA, MAS NAQUELES (PRINCIPALMENTE DA REVOLUÇÃO E DESOBEDIÊNCIA CIVIL) EM QUE SE DEDICA A REFLETIR SOBRE OS MODOS DE GERAR E AMPLIAR ESPAÇOS DE LIBERDADE EM UM CONTEXTO POLÍTICO EM QUE AS CONDIÇÕES PARA TANTO ESTÃO, EM CERTA MEDIDA, JÁ ESTABE- LECIDAS, COMO É O CASO DA REPÚBLICA AMERICANA. PALAVRAS-CHAVE: HANNAH ARENDT, PARTICIPAÇÃO POLÍTICA, LIBERDADE, INSTITUIÇÕES. ABSTRACT: THIS ARTICLE INTENDS TO SHOW HOW ARENDT COMBINES LIBERALS AND DEMOCRATIC ELEMENTS IN ORDER TO DEFEND A CONSTITUTIONAL STATE MODEL ABLE TO GUARANTEE INDIVIDUAL RIGHTS AND TO ESTABLISH SPACES OF LIBERTY, BY WHICH CITIZENS CAN PARTICIPATE OF PUBLIC QUESTIONS AND DECISIONS. TO DEMONSTRATE THE IMPORTANCE OF PUBLIC PARTICIPATION THIS ARTICLE INTENDS TO ANALYZE HOW THIS QUESTION APPEAR IN CIVIL DISOBEDIENCE AND ON REVOLUTION. KEYWORDS: HANNAH ARENDT, POLITICAL PARTICIPATION, LIBERTY, INSTITUTIONS. 1. Nos textos Da Revolução, Desobediência Civil e Da Violência, o ponto de partida de Arendt é um diagnóstico de crise da democracia representativa, produzida pela burocratização e perda de poder das ins- tituições e, em conseqüência, pela diminuição dos espaços de liberdade por meio dos quais os cidadãos podem agir e se fazer ouvir. A burocra- cia é “a forma de governo na qual todo mundo é destituído de liberdade política, do poder de agir”;1 onde ela comanda, o poder cede à violência, já que onde não há ninguém com quem se possa argumentar, tampouco há espaço para a expressão, discussão e decisão conjunta. Mas Arendt * Agradeço a Marisa Lopes e a Bruno Nadai pelas conversas e pelas valiosas suges- tões (e provocações). Agradeço também a Renata Romolo Brito e a Luiz Diogo de Vanconcelos Junior, na companhia dos quais venho enfrentando os textos tortuosos de Hannah Arendt. ** Professora doutora do Departamento de Filosofia da Unicamp. 1 Arendt, H. Crises da República. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973, p. 151. As citações dos textos Da Violência e Desobediência Civil serão feitas a partir desta edi- ção brasileira de Crises da República (que os reúne). yara_05.pmd 83 24/9/2007, 09:12 PARTICIPAÇÃO E LIBERDADE POLÍTICA... YARA FRATESCHI não se contenta, nestes textos, em apontar a crise e as suas causas, em detectar os defeitos do sistema representativo e de partidos, em maldi- zer a sociedade de massas e sua futilidade consumista. O passo se- guinte – e que nos interessa particularmente neste artigo – é detectar onde se localiza a possibilidade de recuperação da capacidade de agir, cujos mecanismos estão enferrujados ou esquecidos, mas não inteiramen- te eliminados, ao menos no que diz respeito à república norte-americana, onde ainda existem, apesar da crise, condições favoráveis para a liber- dade. A convicção de que os Estados Unidos estabeleceram, desde a sua fundação, espaços públicos de liberdade, que podem ser restabele- cidos, é manifestada por Arendt explicitamente desde a década de cin- qüenta, em Da Revolução, em 1969, em Da Violência e mantida até o final de sua vida. Em 1973, defendendo com ardor a Constituição ame- ricana, diz sentir-se “perfeitamente livre neste país”.2 Duas observações para evitar equívocos. Em primeiro lugar, deve-se manter a distinção entre a república em crise e o sistema tota- litário. Quando Arendt se volta para a primeira, particularmente no caso dos Estados Unidos, ela faz questão de mostrar que há, de alguma maneira (mais ou menos precária, mas há), as condições básicas para que os cidadãos, no “espírito” da Revolução Americana, retomem a sua capacidade de ação e recuperem a sua liberdade. Dentre tais con- dições, desempenham papel fundamental a Constituição americana e demais instituições, como a Suprema Corte, o Senado, para citar dois exemplos. Posto que a república em crise esteja muito longe de uma ditadura ou do totalitarismo, trata-se, então, de pensar como sair da crise ou lidar com os seus efeitos mais perversos dentro da sua própria estrutura. O problema não é a constituição e não está nas liberdades e nos direitos civis “apenas formais”, que são, ao contrário, a condição necessária (ainda que não suficiente) da vida política. O problema está, sim, na restrição da participação política e dos seus mecanismos, que devem ser recuperados e devem poder conviver com a lei e com as instituições americanas. Para que se pense sobre a compatibilidade entre as instituições – 2 Apud Adler, L. Nos Passos de Hannah Arendt. São Paulo: Record, 2007, p. 545. 84 yara_05.pmd 84 24/9/2007, 09:12 CADERNOS DE FILOSOFIA ALEMÃ nº 10 | P. 83 - 100 | JUL-DEZ 2007 que dão estabilidade ao corpo político – e a participação do povo, é preciso lembrar que, para Arendt, deve haver um equilíbrio entre natali- dade (novidade) e permanência, capaz de garantir a entrada do novo no mundo. Para que venha o novo é preciso um contexto de estabilidade, e esta estabilidade é garantida, sobretudo, pela constituição e pelas insti- tuições que por ela zelam. A estabilidade não pode se converter, entre- tanto, em enrijecimento: é preciso haver espaços de abertura pelos quais o novo possa vir a ser e se instaurar. Destarte, a constituição e os legis- ladores, os governantes e os representantes, responsáveis em grande medida pela estabilidade, não podem estar cegos, surdos e mudos para o novo (ou para o velho que, finalmente, aparece). Neste processo, a participação ativa de cidadãos organizados desempenha papel funda- mental, como veremos. Em segundo lugar, deve-se observar que Arendt, ao diagnosticar a crise sem, contudo, propor a revolução como saída, não adota, por isso, uma postura resignada ou se contenta em apontar meios que visam ape- nas deter o avanço da deterioração. A revolução já foi feita e ela foi triunfan- te, dando origem a uma república livre. É preciso, agora, recuperar o ‘espí- rito’ da revolução americana, ou seja, lembrar e fazer reviver a conquista de liberdades verdadeiramente políticas, tais como a liberdade de expressão e pensamento, de reunião e associação, as quais não deixam dúvida da gran- deza e superioridade dessa revolução em relação à revolução russa, que fez nascer uma tirania. A grandeza está no fato de que a revolução america- na criou as condições para a política, enquanto a russa a fez desaparecer. Então, que se “faça” política. E política se faz com debate e associação, enfim, com participação ativa num ambiente que só se sustenta como um ambiente político porque é plural. Isso posto, a reclusão e a recusa de agir e participar da esfera pública são, talvez, aceitáveis em situações extre- mas,3 como na ditadura ou no totalitarismo, mas não são exemplares numa 3 Ver Duarte, A. “Hannah Arendt e a exemplaridade subversiva: por uma ética pós- metafísica”. Cadernos de Filosofia Alemã, n°. 9, 2007, p.27-48. André Duarte pretende, neste artigo, revelar uma “faceta menos conhecida” da reflexão de Arendt que, apesar de ser considerada uma pensadora por excelência do espaço público, “estava consci- ente de que a exemplaridade subversiva também se manifesta nos silêncios pondera- dos e na recusa discreta dos cidadãos anônimos em obedecer àquilo que o governo ou a sociedade deles espera e que, entretanto, lhes parece injusto, aviltante ou incorreto” 85 yara_05.pmd 85 24/9/2007, 09:12 PARTICIPAÇÃO E LIBERDADE POLÍTICA... YARA FRATESCHI república, mesmo em crise. Pelo contrário, Arendt nos faz ver que a mobilização dos cidadãos, seja com a intenção de preservar o status quo ou de promover mudanças necessárias ou desejadas, ganha poder e eficá- cia quando estes se associam e se organizam tornando-se capazes de se fazer ouvir e de pressionar o governo. 2. Nas linhas que seguem, pretendemos recuperar, ainda que bre- vemente, a comparação entre a Revolução Americana e a Francesa fei- ta por Arendt, em Da Revolução, sobretudo com a intenção de ressaltar que a experiência americana da fundação aparece na obra como exem- plo de participação ativa na vida política: os homens da revolução são exemplares porque permaneceram “homens de ação do princípio ao fim, da declaração da Independência à organização da Constituição”.4 Por meio da distinção entre liberdade e libertação Arendt mobili- za os argumentos de que precisa para ressaltar a grandeza e superiori- dade da revolução americana em relação à francesa e também à russa. A libertação de um povo exige uma série de conquistas – no plano dos direitos – que o liberte da repressão e da intervenção arbitrária do gover- no. A libertação, pode-se dizer, é a conquista da liberdade na sua acepção negativa, garantida pelos direitos civis. Entretanto, ela não pode ser con- fundida com liberdade política propriamente dita, pois esta consiste em dar um passo além, na medida em que “o verdadeiro conteúdo da liber- dade significa participação nas coisas públicas, ou admissão ao mundo político”.5 Porque a liberdade – para além da libertação – era a verdadei- ra meta dos americanos, fez-se necessária e possível a descoberta de uma nova forma de governo, “a constituição de uma república”. Ao dis- (p. 35). Parece-me, contudo, que Arendt aceita a resistência silenciosa como um último recurso que resta aos cidadãos quando estão privados da possibilidade de agir e que, portanto, é exemplar apenas na ditadura ou no totalitarismo, mas não em uma democracia. Na democracia, os homens são cidadãos quando agem, quando manifestam as suas opiniões em palavras e ações, dialogando com os outros e não apenas consigo mesmos. 4 Arendt, H. “Desobediência Civil”. In: _____. Crises da República, p. 75. 5 Arendt, H. Da Revolução. São Paulo: Editora Ática, 1990, p. 26. 86 yara_05.pmd 86 24/9/2007, 09:12 CADERNOS DE FILOSOFIA ALEMÃ nº 10 | P. 83 - 100 | JUL-DEZ 2007 tinguir liberdade e libertação, Arendt quer atacar, com um só golpe, mar- xistas e liberais. Mesmo que fosse possível, a libertação do trabalho não levaria, por si só, à liberdade, garante ela. Aliás, pelo contrário, ela leva- ria, na expectativa de Marx, a uma vida em que a liberdade política já não teria sentido algum.6 De outro lado, a liberdade dos liberais não é liberdade, mas libertação, que garante tão somente as condições apro- priadas para uma vida vivida na ‘privatividade’. Em ambos os casos, vige a ficção de uma harmonia de interesses, que é antipolítica e contrá- ria à pluralidade.7 Ainda que não possa ser tratada com a merecida atenção neste artigo, deve-se destacar que a questão da pobreza desempenha papel central em Da Revolução, mas não porque Arendt se dedica a pensar de que modo resolvê-la e sim porque está determinada a recusar que a pobreza seja questão política. As insuficiências da noção arendtiana de poder e do seu modo de pensar a relação entre o político e o social se fazem ver aqui: só dá para fazer política se o problema da pobreza esti- ver ausente ou resolvido, mas não sabemos exatamente como ele se resolve, já que não é e não pode ser questão política. Basta, no presente momento, lembrar que, para Arendt, a premência da pobreza e a conse- qüente redução do político ao econômico e ao social foram as causas principais do fracasso da revolução na França. A redução do político ao econômico (ou a transformação da questão social na questão política 6 “Provavelmente, nem a abundância de bens, nem a redução do tempo gasto com o labor resultarão no estabelecimento de um mundo comum; o animal laborans expropri- ado não se torna menos privado pelo fato de já não possuir um lugar privativo onde possa esconder-se e proteger-se da esfera comum. Marx predisse, embora com indevido júbilo, a ‘decadência’ da esfera pública nas condições de livre desenvolvimento das ‘forças produtivas da sociedade’; e estava igualmente certo, isto é, coerente com a sua noção de homem como animal laborans quando previu que, ‘socializados’ e libertos do trabalho, os homens gozariam essa liberdade em atividades estritamente privadas e essencialmente isolados do mundo que hoje chamamos de ‘hobbies’”. Arendt se refere aqui à da Ideologia Alemã: “Na sociedade comunista ou socialista”, continua ela, “todas as profissões se tornariam uma espécie de hobby: não haveria pintores, mas apenas pessoas que, entre outras coisas, passam parte do tempo pintando; ou seja, pessoas que ‘hoje fazem uma coisa, amanhã fazem outra, que caçam pela manhã, pescam à tarde, criam gado ao anoitecer, são críticos após o jantar, a seu bel-prazer, sem por isso jamais chegarem a ser caçadores, pescadores, pastores ou críticos’”. Arendt, H. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 130. 7 Arendt, H. A Condição Humana, p. 53. 87 yara_05.pmd 87 24/9/2007, 09:12 PARTICIPAÇÃO E LIBERDADE POLÍTICA... YARA FRATESCHI por excelência) é também a fonte do engano de Marx, que “acabou por enfatizar, mais do que qualquer outro, a doutrina politicamente mais per- niciosa da Idade Moderna, ou seja, que a vida é o bem maior, e que o processo vital da sociedade é o próprio centro do esforço humano”.8 Arendt não esconde que exalta o aspecto democrático da revolução americana para falar contra a “tirania” russa ou que acusa o insucesso da experiência francesa para falar contra os marxistas e toda a esquer- da que ainda acalenta o sonho (daquela) da revolução. Ela quer, ao mesmo tempo, ressaltar o fracasso político da revolução francesa com a instauração do terror e lembrar que a solução de Marx também levaria, ao fim e ao cabo, à destruição da política, como levou, por sua vez, a revolução Russa.9 Eis a razão pela qual Arendt insiste na separação, “inteiramente não-marxista, entre economia e política”10 (sem nenhum constrangimento em dizer apenas que uma boa solução para o proble- ma da pobreza se dá por meios técnicos, já que a tecnologia é “politica- mente neutra”). O sucesso político da revolução americana se deve, então, à ausência, naquele contexto, de carências “avassaladoras”, que teriam impedido (como foi o caso da França) que a política ganhasse a autono- mia que ela deve ter em relação à questão social: Já que não existia, em torno deles [dos americanos], nenhum sofrimento que pudesse ter despertado suas paixões, nem ca- rências avassaladoramente prementes que os levassem a se submeter à necessidade, nem piedade para desviá-los da razão, os homens da revolução Americana permaneceram homens de 8 Arendt, H. Da Revolução, p. 51. 9 Da Revolução diz a que veio em seu capítulo final: mostrar que as conquistas ameri- canas de liberdades verdadeiramente políticas, tais como a liberdade de expressão e pensamento, de reunião e de associação, não deixam dúvidas da grandeza e superio- ridade de uma república livre em relação à tirania. A referência é a Rússia e a pergunta é: qual é a melhor forma de governo, uma tirania ou uma república livre? Arendt res- ponde comparando as instituições de liberdade “nascidas da vitória triunfante de uma revolução” e as várias formas de dominação “da ditadura de um partido, de Lênin, ao totalitarismo de Stalin e às tentativas de Krushev em direção a um despotismo ilumina- do, que apareceram na esteira de uma derrota revolucionária”. Arendt, H. Da Revolu- ção, p.174. 10 Idem, p. 52. 88 yara_05.pmd 88 24/9/2007, 09:12 CADERNOS DE FILOSOFIA ALEMÃ nº 10 | P. 83 - 100 | JUL-DEZ 2007 ação do princípio ao fim, da Declaração da Independência à or- ganização da Constituição.11 A presença inegável da pobreza e da miséria fez com que a revolução francesa se baseasse mais na compaixão e na “fé na bon- dade natural” do que nas instituições. Mas a compaixão é, segundo Arendt, inteiramente irrelevante do ponto de vista político porque inca- paz de estabelecer instituições duradouras e também é inadequada para modificar as condições materiais, pois quando o faz “elimina os demorados e extenuantes processos de persuasão, negociação e acor- do, que são processos da lei e da política, e empresta sua voz ao pró- prio sofrimento, que deve clamar por ação direta e rápida, isto é, ação com meios de violência”.12 Abstendo-se de refletir sobre as causas e as soluções das carências materiais, Arendt quer reforçar sobretudo que os processos da lei e da política são demorados e se consolidam não sem dificuldade - e assim deve ser - porque o poder é a capacida- de humana de agir em conjunto, isto é, de comum acordo. A obtenção do acordo é precedida por um processo em que as diferenças são atenuadas e não eliminadas, até que se atinja, por persuasão e nego- ciação, um ponto em que elas possam conviver no espaço público: um ponto comum, mas que jamais elimina a pluralidade. Foi isso precisa- mente o que aconteceu nos Estados Unidos, para Arendt (e se assim se deu foi justamente porque as diferenças que ela exalta não são, evidentemente, aquelas provocadas pela pobreza, questão ausente daquele cenário). Enquanto na França apostou-se na vontade popular, como volonté générale, isto é, numa inatingível e fictícia unidade da vontade que substitui o consentimento, os fundadores da república americana entendiam o povo como uma coletividade de infindável va- riedade, “cuja majestade residia em sua própria pluralidade”.13 Não apostavam na unanimidade potencial de todos, pois sabiam que “o plano político, numa república, se constituía numa troca de opiniões 11 Idem, p. 75. 12 Idem, p. 69. 13 Idem, p. 74. 89 yara_05.pmd 89 24/9/2007, 09:12 PARTICIPAÇÃO E LIBERDADE POLÍTICA... YARA FRATESCHI entre iguais, e que esse plano desapareceria no próprio instante em que se tornasse supérfluo, se por acaso todos os iguais fossem da mesma opinião”. Todo o argumento que se segue à análise da experiência americana converge para mostrar que a igualdade almejada e que pode ser alcançada é tão somente política, isto é, se dá no plano dos direi- tos: para além disso o que temos é a pluralidade, que não pode jamais ser eliminada. Nesse sentido, os fundadores haviam dado uma ênfase positiva à facção e ao partido, que correspondem, no governo, às múl- tiplas vozes e diferenças de opinião que devem ter espaço para conti- nuar existindo. A defesa da democracia participativa encontra sustentação teóri- ca na definição de ação como única faculdade humana que demanda uma pluralidade de homens e de poder como único atributo humano que só tem aplicação no espaço intermundano.14 No plano histórico, a De- claração da Independência e a Constituição dos Estados Unidos são a prova de que os homens podem construir uma nova ordem política em que a ação (no contexto da pluralidade) e o poder (indissociado da liber- dade e executado no espaço intermundano) são perfeitamente possí- veis, exeqüíveis. A própria noção de constituição, tal como entendida pelos americanos, o demonstra: a constituição não é ato de um governo, mas de um povo que constitui um governo.15 E para que se concretizas- se, e este é o ponto fundamental, não foi possível prescindir de ampla discussão e debate dos seus artigos, tanto no plano municipal, quanto no estadual.16 Debate, confronto de opiniões, busca de acordo num uni- verso plural: através de um longo processo, a ação levou à formação do poder. Foi o ambiente propício ao autogoverno que, inicialmente, o per- mitiu; e a fundação de um novo governo, baseado no princípio da sepa- 14 “A gramática da ação: a ação é a única faculdade humana que demanda uma pluralidade de homens; e a sintaxe do poder: o poder é o único atributo humano que só tem aplicação no espaço intermundano, em cujo âmbito os homens se relacionam mutuamente, se associam no ato de criação, por força das promessas feitas e cumpri- das, as quais, na esfera política, podem muito bem ser a expressão da mais elevada das faculdades humanas”. Idem, p. 140. 15 Idem, p. 116. 16 O país estava articulado “desde as províncias ou Estados, até as cidades e municí- pios, vilas e comarcas, em organismos devidamente constituídos”. Idem, p. 140. 90 yara_05.pmd 90 24/9/2007, 09:12 CADERNOS DE FILOSOFIA ALEMÃ nº 10 | P. 83 - 100 | JUL-DEZ 2007 ração e equilíbrio de poderes, bem como na substituição da soberania pela Federação, deu continuidade ao empreendimento: Nesse aspecto, o curso da Revolução Americana nos mostra um exemplo inesquecível e nos ensina uma lição sem precedentes, pois essa revolução não eclodiu simplesmente, mas foi antes conduzida por homens que tomaram juntos uma resolução, uni- dos pela força de compromissos mútuos. O princípio veio à luz durante os conturbados anos em que foram lançadas as funda- ções – não por determinação de um arquiteto, mas pelo poder combinado de muitos – foi o princípio interconexo da pro- messa mútua e da deliberação comum (...).17 Ao mesmo tempo em que o novo governo estava configurado para assegurar a todo cidadão o direito de tornar-se participante da ges- tão governamental, contrapunha-se à identificação da felicidade com a felicidade exclusivamente individual. Não que, nos Estados Unidos, as noções de “felicidade pública” e “liberdade política” não tenham sofrido posteriormente duros golpes em favor da felicidade e da liberdade in- dividuais. Aliás, este é um perigo a que está sujeito todo governo cons- titucional: erigir leis que protejam os cidadãos dos abusos do poder pú- blico tão somente para que estes possam cuidar dos seus negócios pri- vados. Deste momento em diante, a liberdade migra da esfera pública para a vida particular e o poder passa a se identificar com a violência, isto é, com relações de comando e subordinação. O governo deixa de contar com a participação dos cidadãos e passa a ser considerado um mal ne- cessário, fazendo com que a política perca o seu significado. Eis o pro- blema do liberalismo. O problema é que a revolução americana, embora tivesse dado liberdade ao povo, não conseguiu proporcionar um espaço onde essa liberdade pudesse ser exercida: “apenas os representantes, e não o pró- prio povo, tiveram uma oportunidade de se engajar nas atividades de ‘expressão, discussão e decisão’, as quais, num sentido positivo, são as 17 Idem, p. 171. Grifo meu. 91 yara_05.pmd 91 24/9/2007, 09:12 PARTICIPAÇÃO E LIBERDADE POLÍTICA... YARA FRATESCHI atividades da liberdade”.18 Ainda que o Senado e a Suprema Corte, por exemplo, tenham sido fundamentais na medida em que se configuram como instituições que dão a permanência e a estabilidade necessárias para uma república, por outro lado, isso não foi suficiente para preservar intacto o espírito da revolução e garantir a participação do povo que sucumbiu à vitória do sistema de partidos. 3. Em Da Revolução, Arendt quer, sobretudo, mostrar que os Estados Unidos tiveram uma experiência de liberdade política plena, ainda que não tenham sido capazes de encontrar, posteriormente, um modo apropriado de organização política. O problema do sistema de partidos e da represen- tação é transformar a democracia numa mera formalidade. A democracia “abstrata” – isto é, aquela que carece de órgãos concretos de participação política que permitam ao povo se engajar nas atividades de expressão, discussão e decisão – trai o espírito da revolução ao permitir que a repre- sentação se torne um mero substitutivo para a ação política direta.19 Contu- do, importa notar que os momentos de pessimismo revelados nas infindáveis críticas à sociedade de consumo e ao esquecimento americano do espírito revolucionário não pesam mais na balança do que a expectativa da recupe- ração de algo que não foi inteiramente eliminado desde a revolução: A conseqüência, em contraposição ao desenvolvimento europeu, foi que as noções revolucionárias de felicidade pública e de liber- dade política jamais desapareceram totalmente do cenário ame- ricano; elas se tornaram parte integrante da própria estrutura do corpo político da república. Se essa estrutura possui uma base granítica, capaz de suportar as fúteis artimanhas de uma socie- dade voltada para a abastança e para o consumo, ou se ela ce- derá ante a pressão da riqueza, como as comunidades européias capitularam sob o jugo da desgraça e do infortúnio, é algo que só 18 Idem, p.188. 19 Arendt, H. Da Revolução, p. 189. 92 yara_05.pmd 92 24/9/2007, 09:12

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