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O Animismo Fetichista dos Negros Baianos PDF

138 Pages·1896·0.942 MB·Portuguese
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NINA RODRIGUES O ANIMISMO FETICHISTA DOS NEGROS BAIANOS “O projeto tem apoio financeiro do Estado da Bahia através da Secretaria de Cultura e da Fundação Pedro Calmon (Programa Aldir Blanc Bahia) via Lei Aldir Blanc, direcionada pela Secretaria Especial da Cultura do Ministério do Turismo, Governo Federal”. APOIO FINANCEIRO: NINA RODRIGUES O ANIMISMO FETICHISTA DOS NEGROS BAIANOS BAHIA / 2021 S ó a ciência oficial, na superficialidade e dogma- tismo do ensino, poderia persistir em afirmar ain- da hoje que a população baiana é na sua totalidade monoteísta cristã. Esta afirmação havia de implicar ou o desprezo sistemático no cálculo dos dois terços de negros africanos e seus mestiços que são a grande maioria da população, ou ingenuidade da nesciência vulgar que se submete cegamente às exterioridades de uma aparência que o exame mais superficial mostra ilusória e enganadora. A previsão de que não devia ser assim decor- re do conhecimento das condições mentais que exige a adoção de cada crença religiosa, junto à incapacidade física das raças inferiores para as elevadas abstrações do monoteísmo. Mas, no caso vertente, invocar esta ilação como prova seria incidir fatalmente em grosseira petição de princípio, pois a afirmação em contrário pretende nada menos do que ter aqui foros de uma derrogação tácita e formal àquela conclusão indutiva dos estudos etnográficos. E só a observação documentada, tão mi- nuciosa e severa como pede a natureza delicada do as- sunto, deverá falar, em última instância, pró ou contra a procedência e aplicação do princípio, pró ou contra a sua impugnação. Por mais de uma vez, no exercício do magisté- rio, as exigências da análise psicológica, em matéria de freniatria médico-legal, me têm levado a experimentar as dificuldades que esta controvérsia cria na prática, onde sempre os fatos se revelam em contradita formal às afirmações infundadas da ciência oficial. E, empenhado assim em bem precisar a natureza e forma do sentimento religioso dos negros baianos, procurei estudar os fatos com a máxima isenção e imparcialidade, consumindo tempo e esforço em uma observação que já vai prossegui- da atentamente para quase cinco anos. O ânimo estri- tamente científico em que tinham sido concebidas estas perquirições em busca de uma solução a sério problema de etologia prática, mal comporta a declaração prévia de que nada tiveram ou têm de comum com as contro- vérsias em que se debatem “os metafísicos da matéria e os do espírito”. Nos domínios do cognoscível, o sentimento reli- gioso é um dado psicológico positivo, que em nada pres- supõe as animosidades que se dispensam deístas e ateístas. A persistência do fetichismo africano como ex- pressão do sentimento religioso dos negros baianos e seus mestiços é fato que as exterioridades do culto católico, aparentemente adotado por eles, não conseguiram disfar- çar nem as associações híbridas que com esse culto larga- mente estabeleceu o fetichismo, nem ainda nas práticas genuínas da feitiçaria africana, que ao lado do culto cristão por aí vegeta exuberante e válida. A existência na Bahia de crenças fetichistas tão profundas, de práticas tão regularmente constituídas como as da África; não ocultas e disfarçadas, mas vivendo à plena luz do dia, de uma vida que tem arras de legalidade nas licenças policiais para as grandes festas anuais ou candomblés; que conta com a tolerância da opinião pública mani- festada na naturalidade com que a imprensa diária dá conta dessas reuniões como se tratasse de qualquer fato da nossa vida normal; a existência de práticas que estendem a sua ação a esferas muito mais amplas do que aquelas em que se geraram; de crenças que são adotadas e seguidas pelas soi-disant classes civilizadas, mercê já das alianças contraídas com o culto católico, já do consórcio firmado com as práticas espíritas; esta existência, assim vivida e multiforme, é coisa que está no ânimo público e no pleno conhecimento de todos. Mas o rigor e a precisão de observações que pre- tendem cunho e valor científicos não podem tolerar que se constituam de simples referências informações em que, na melhor hipótese, mesmo inconscientemente, ou muito se pode adulterar, ou muito se pode acrescentar de emprés- timo. A matéria não pede só autenticidade e precisão, re- quer ainda referências positivas e fatos individuados por forma a se tornarem suscetíveis, em qualquer momento, de verificação e exame por parte dos interessados em con- testá-los. Sem dúvida, obstáculos e embaraços de toda a sorte se levantam em oposição a uma interpretação justa e reta de fatos desta natureza, aqui mais do que em toda a parte. “Mesmo consagrando a isso muito tempo e cuidados, diz Tylor¹, não é sempre fácil obter dos selvagens informa- ções sobre a sua teologia. De ordinário, eles se esforçam para subtrair ao estrangeiro indiscreto e desdenhoso os detalhes do seu culto, todo o conhecimento dos seus deuses, que parecem, como seus adoradores, tremer perante o ho- mem branco e ante o seu deus mais poderoso.” Sobre não conhecermos a sua língua, a escravidão devia exagerar no negro africano essa tendência natural dos selvagens a ocultar as suas crenças. A convicção de que a conversão religiosa é uma simples questão de boa vontade, e de que nada seria mais fácil do que cancelar as crenças do negro à força de castigos, para substituí-las pelas crenças do branco, vinha talhada de molde a satisfazer os interesses do se- nhor, justificando como verdadeira ação meritória todas as violências empregadas para convertê-los à fé cristã. Bem diferente do ardor da catequese eram, todavia, as causas que instigavam mais de perto as violências dos senhores ou seus prepostos contra as práticas fetichistas do negro escravo. O medo do feitiço como represália pelos maus tratos e castigos que lhe eram infligidos, em primeiro 1E. B. Tylor, La civilisation primitive, trad. de Mme. Pauline Brunet, Paris, 1876, vol.1, pág.489. lugar; o temor supersticioso de práticas cabalísticas de caráter misterioso e desconhecido; em segundo, o receio, aliás bem fundado, de que as práticas e festas religio- sas viessem obstar a regularidade do trabalho e justifi- cassem a vadiagem; em terceiro, a coibição prepotente do poder do senhor que não admitia no negro outra vontade que não fosse a sua, tais foram os verdadeiros motivos por que, mesmo quando se concedeu licença aos negros para se divertirem ao som monótono do batuque, os candomblés eram, de contínuo, dissolvidos pela vio- lência, os santuários violados e os fetiches destruídos. Mesmo liberto, o negro não podia encontrar na lei pro- teção e amparo para a livre manifestação das suas cren- ças, durante o regime da escravidão, porque a lei tinha então a missão de manter esse regime. A pretexto de que os candomblés eram um motivo constante de conflitos e vias de fato, que se convertiam em foco de desenfreada devassidão e licença, a polícia proibia severamente, e de vez em quando dava-lhe caça, os candomblés das cidades, que pela sua natureza e sede deviam estar mais a coberto do que os dos engenhos, da ação direta dos senhores de escravos. De tudo isto resultou que, obrigados que à vida inteira, a dissimular e a ocultar a sua fé e as suas práti- cas religiosas, subsiste ainda hoje na memória do negro e subsistirá por largo tempo a lembrança das persegui- ções de que foram vítimas nas suas crenças, intimamente associadas no seu espírito ao temor de confessá-las e dar explicações a respeito. Muito recente ainda, como é, a extinção da escravidão, os pontífices fetichistas são ain- da pela maior parte velhos africanos, que todos foram escravos. Como causa não menos poderosa da reserva e do mistério dos negros concorre com estas o interesse dos feiticeiros no acréscimo de prestígio que lhes vem desse segredo. A fé dos crentes e a credulidade dos su- persticiosos são rude e proveitosamente exploradas pelos feiticeiros: divulgar as suas práticas seria destituí-los do prestígio do desconhecido com grave detrimento da influência que exercem. Com estas causas múltiplas que entendem com a dificuldade de conhecer, colidem outras que se refe- rem à dificuldade de interpretar o sentido e a forma das práticas fetichistas, grandemente modificadas pelo meio. Transportadas ao solo americano, sotopostas pela violência da escravidão ao catolicismo, imposto e en- sinado oficialmente, diluído o elemento africano num grande meio social de composição heterogênea, forçosa e infalivelmente a pureza das práticas e rituais africa- nos terá desaparecido, substituída por práticas e crenças mestiçadas. Inteiro e puro só devemos encontrar o senti- mento que anima as suas crenças, tão fetichista quando delas são o objeto as pedras, as árvores, os búzios da Costa, como quando se dirigem aos muitos santos do catolicismo. No exame e na análise deste sentimento, tal como ele se revela e sobrevive nos negros que se incorporaram à população brasileira, tal como ele está atuando grande- mente em todas as manifestações da nossa vida particu- lar e pública, pusemos a mira deste estudo, que pretende deduzir deles leis e princípios sociológicos, geralmente despercebidos ou ignorados. Para levá-lo a cabo me auxi- liaram com igual eficácia a língua portuguesa que hoje todos falam e a profissão médica que exerço. Duplamente me serviu esta, inspirando e estreitando a confiança mais íntima do clínico, multiplicando as observações e criando oportunidade de examiná-las à vontade. Menos do que buscar a filogênese africana do nosso fetichismo negro e indagar até onde se mantive- ram puras as práticas e crenças religiosas importadas, é aquele o meu intento. Mas a obrigação de demonstrar que o fetichis- mo africano domina na Bahia, que é aqui a expressão genuína do sentimento religioso do negro e da grande maioria dos seus mestiços, e que não é um simples aci- dente ocasional desta ou daquela agremiação esporá- dica de negros supersticiosos ou impostores, obriga-me, nas descrições que se seguem – premissas das conclusões terminais -, a descer a detalhes e minudências que em outras circunstâncias bem poderiam ser omitidas em be- nefício da clareza e concisão. Capítulo I Teologia2 Fetichista dos Áfrico-Baianos 2Na edição da Revista Brasileira, Nina Rodrigues escreveu “Zoologia fetichista dos áfrico-baianos” como título deste capítulo, que emendou para “Théologie fetichiste dês nègres de Bahia”, na edição francesa de 1900. (Nota de A. R.)

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