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neopentecostalismo e religiões afro- brasileiras PDF

30 Pages·2007·0.12 MB·Portuguese
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MANA 13(1): 207-236, 2007 NEOPENTECOSTALISMO E RELIGIÕES AFRO- BRASILEIRAS: SIGNIFICADOS DO ATAQUE AOS SÍMBOLOS DA HERANÇA RELIGIOSA AFRICANA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO * Vagner Gonçalves da Silva Introdução O neopentecostalismo, em conseqüência da crença de que é preciso eliminar a presença e a ação do demônio no mundo, tem como característica classificar as outras denominações religiosas como pouco engajadas nessa batalha, ou até mesmo como espaços privilegiados da ação dos demônios, os quais se “dis- farçariam” em divindades cultuadas nesses sistemas. É o caso, sobretudo, das religiões afro-brasileiras, cujos deuses, principalmente os exus e as pombagiras, são vistos como manifestações dos demônios. Uma outra face desse processo é, paradoxalmente, a “incorporação” da liturgia afro-brasileira nas práticas neo- pentecostais de algumas igrejas. Neste trabalho, pretendo analisar as relações de proximidade e antagonismo existentes entre estes dois campos religiosos, o neopentecostal e o afro-brasileiro, e suas conseqüências na transformação de certo imaginário brasileiro construído a partir dos valores aí existentes. Em primeiro lugar, é bom que se diga que a visão das igrejas neopente- costais sobre as religiões afro-brasileiras é conseqüência do desenvolvimento do sistema teológico e doutrinário do pentecostalismo, surgido no Brasil no início do século XX, sobretudo a partir das décadas de 1950 e 1960. Nessa época, o movimento religioso assumiu novos contornos, expandindo a base de suas igrejas, adensando o número de denominações e ganhando maior visibilidade. Ao se distinguir pela ênfase do dom da cura divina (por isso chamada muitas vezes de “igrejas da cura”) e pelas estratégias de proseli- tismo e conversão em massa, essa segunda onda1 do pentecostalismo pre- servou as características básicas do movimento que já tinha 40 anos, como a doutrina dos dons carismáticos (fé, profecia, discernimento, cura, línguas etc.), o sectarismo e o ascetismo (Mariano 1999:31). A terceira fase do movimento pentecostal, iniciada nos anos de 1970, com grande projeção nas duas décadas seguintes, foi marcada por algumas 208 NEOPENTECOSTALISMO E RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS diferenças significativas no perfil das igrejas surgidas e nas práticas adotadas, o que lhe valeu a classificação de “neopentecostal”. Com o acréscimo do prefixo latino “neo”, pretendeu-se expressar algumas ênfases que as igrejas identificadas nessa fase assumiram em relação ao campo do qual, em geral, faziam parte: abandono (ou abrandamento) do ascetismo, valorização do pragmatismo, utilização de gestão empresarial na condução dos templos, ênfase na teologia da prosperidade, utilização da mídia para o trabalho de proselitismo em massa e de propaganda religiosa (por isso chamadas de “igrejas eletrônicas”) e centralidade da teologia da batalha espiritual contra as outras denominações religiosas, sobretudo as afro-brasileiras e o espiritismo. Mas por que a escolha dessas religiões como principal alvo? Será que uma igreja tão organizada e interessada na conversão em massa, como a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD)2, principal representante do seg- mento neopentecostal, iria se importar com religiões (candomblé, umbanda e espiritismo) que juntas, segundo o Censo Demográfico do IBGE de 2000, somam apenas 1,7 % da população? Ainda que consideremos estes valores subestimados pelos motivos históricos que geraram o duplo pertencimento dos adeptos às religiões afro-brasileiras e ao catolicismo, o ataque neo- pentecostal não seria “muita pólvora para pouco passarinho”? Ou seja, o “bom combate” a ser travado não seria contra o catolicismo que, apesar da diminuição de fiéis verificada nas duas últimas décadas, ainda representa, segundo as mesmas fontes, 73,7 % da população? Como declarar guerra aberta a esse monopólio religioso que possui vínculos com diversas esferas da sociedade brasileira? O episódio do “chute na santa” e suas repercus- sões negativas (Mariano 1999:81) são um bom exemplo da dificuldade do enfrentamento aberto. O ataque às religiões afro-brasileiras, mais do que uma estratégia de proselitismo junto às populações de baixo nível socioeconômico, potencial- mente consumidoras dos repertórios religiosos afro-brasileiros e neopente- costais, é conseqüência do papel que as mediações mágicas e a experiência do transe religioso ocupam na própria dinâmica do sistema neopentecostal em contato com o repertório afro-brasileiro. O desenvolvimento recente do catolicismo carismático atestaria a demanda crescente por tais mediações também nesse segmento religioso majoritário. No Brasil, enquanto os pro- cessos de secularização e racionalização atingiam os setores cristãos (cato- licismo, protestantismo histórico etc.), o pentecostalismo surgiu como uma possibilidade, ainda tímida na primeira e segunda fases, mas muito forte na terceira, de valorização da experiência do avivamento religioso. No neopen- tecostalismo, essa característica radicaliza-se em termos de transformá-la NEOPENTECOSTALISMO E RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS 209 em uma religião da experiência vivida no próprio corpo, característica que tradicionalmente esteve sob a hegemonia das religiões afro-brasileiras e do espiritismo kardecista. Combater essas religiões pode ser, portanto, menos uma estratégia proselitista voltada para retirar fiéis deste segmento — embora tenha esse efeito — e mais uma forma de atrair fiéis ávidos pela experiência de religiões com forte apelo mágico, extáticas, com a vantagem da legitimidade social conquistada pelo campo religioso cristão. Entre o neopentecostalismo e as religiões afro-brasileiras há, portanto, muitas diferenças, mas são as semelhanças entre estes campos que este artigo pretende analisar. Ou seja, julgopossível entender algumas dimensões da visão antagônica do pentecostalismo sobre denominações afro-brasileiras (a qual se expressa, muitas vezes, por meio da violência simbólica e mesmo física) partindo da análise do trânsito de certos “termos” entre os sistemas religiosos em conflito. Esse trânsito tem sido objeto de vários estudos recen- tes, nos quais me baseio para sistematizar os argumentos apresentados, além da observação de campo e da literatura de divulgação religiosa produzida nos meios neopentecostais. O “demônio” nos livros A visão demoníaca das religiões afro-brasileiras, propagada pelo neopen- tecostalismo, já estava presente nas fases anteriores do movimento pente- costal como elemento da teologia da cura divina. A cura, sendo uma das partes constitutivas do ritual da benção aos doentes, servia para mostrar a vitória de Deus sobre o demônio, geralmente identificado com a umbanda e o candomblé (Rolim 1990:49). Nesse período, entretanto, não se convo- cavam os “exércitos de Cristo” para saírem às ruas e impedirem rituais afro-brasileiros, ou mesmo tentar fechar terreiros, como tem ocorrido nas duas últimas décadas. Um dos indícios do acirramento desse antagonismo contra as religiões afro-brasileiras pode ser identificado na publicação do livro Mãe-de-santo (1968), do missionário canadense Walter Robert McAlister, fundador da Igreja Pentecostal de Nova Vida no Rio de Janeiro, em 1960. Conforme consta no prefácio do livro: Esta é a incrível história de uma baiana, cuja marca de faca, em seu braço di- reito, predestina-a desde o nascimento a ser mãe-de-santo, servindo os orixás e sacrificando aos exus a partir dos nove anos de idade. Nesta quarta edição, reestruturada, você vai sentir a repugnância experimentada por Georgina 210 NEOPENTECOSTALISMO E RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS Aragão dos Santos Franco, ao ser enclausurada num quarto fétido, cheirando a sangue seco, sangue este com que lhe cobriram o corpo inteiro, ao ‘fazer o santo’. Adivinhará depois toda sua alegria e euforia, quando finalmente des- cobriu não mais pertencer sua alma ao diabo, pois o sangue de Jesus Cristo passou a ser em sua vida mais forte e poderoso que quaisquer oferendas, vôos ou obrigações. Estou convencido de que você voltará muitas vezes a ler esse livro, como também o passará às mãos de amigos, parentes ou conhecidos que seguem as seitas afro-brasileiras. Aliás, este é um livro que todo brasileiro deve ler (1983 [1968]:5).3 Aqui os temas centrais desse antagonismo estão postos: 1. Identificação das divindades do panteão afro com o demônio; 2. Libertação pelo poder (maior) do sangue vivo de Jesus (em oposição ao sangue “seco” ou “fétido” da iniciação ou das oferendas); 3. Em conseqüência da libertação, a conver- são. McAlister escreve que ao tomar contato no Brasil com a “macumba”, inicialmente achou tratar-se de “folclore”, depois, ao curar uma mulher cuja perna estava paralisada desde que ela dera um pontapé em um despacho, percebeu o quanto essas “crendices” eram nocivas e reais. Comecei, a partir daí, a ter contato direto com vítimas do Candomblé e da Umbanda, que me contaram do drama terrível que é submeter-se às influên- cias dos exus e orixás. Foi assim que passei da atitude de certa incredulidade para a conscientização de que aquelas narrativas não eram apenas resultado de imaginação, e não obstante as raízes supersticiosas, seus efeitos eram reais (1983 [1968]:10). Esta seria então a quarta característica importante dessa “batalha espiri- tual”: não se trata de ver as religiões afro-brasileiras como folclore, crendice popular, ignorância ou imaginação, mas reconhecer que suas divindades “existem”, embora sejam “na verdade” “espíritos demoníacos” que enganam e ameaçam o povo brasileiro. Creio que o Brasil tem que se libertar desse mal que já domina — segundo atestam algumas autoridades — mais de um terço da população, que se curva perante pais e mães-de-santo e obedecem às leis e ordens dos orixás. É às ví- timas do poder diabólico do Candomblé e da Umbanda, portanto, que dedico este livro (1983 [1968]:11). A convocação de libertação, como se vê, é feita em nível nacional, sendo esta outra característica da ação evangelizadora neopentecostal. NEOPENTECOSTALISMO E RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS 211 Não me estenderei aqui sobre o livro de McAlister. Basta dizer que a mãe- de-santo Georgina poderia ser vista como um tipo ideal weberiano, na medida em que por meio dela percebe-se o perfil do desenvolvimento do candomblé na região Sudeste. Georgina é negra, nascida na Bahia, “sede desta religião no Brasil”, é predestinada a ser do candomblé na dupla função de herdeira dos orixás de sua avó e sacerdotisa deste culto. Vem para o Rio de Janeiro, onde freqüenta o candomblé e a umbanda, assiste a um culto do pastor McAlister e durante um ano transita entre a igreja e o terreiro, mostrando o quanto lhe foi difícil abandonar a prática religiosa anterior. Finalmente, aceita a “ceia do Senhor” e passa a se dedicar a pregar a nova verdade para seus antigos irmãos de “fé espírita”. Ao descrever este ponto da vida de Georgina, o livro parece atingir o clímax, quando a heroína, a pedido de outra mãe-de-santo recém-convertida, destrói impiedosamente o peji (altar) do terreiro desta. McAlister descreve nesse livro as fontes do espiritismo4 no Brasil e localiza na bíblia as passagens que justificariam sua condenação. Curiosamente, alega que certas cerimônias do candomblé — como o ossé (rito de purificação pela água) e o sacrifício de animais sobre a pedra (otá) — foram “roubadas” de antigas leis de Deus presentes em livros do Velho Testamento, como o Levítico. Estas leis foram, entretanto, reformuladas por Jesus Cristo, cujo sacrifício final sinalizou para a salvação e a purificação de todos os que nele crêem. Nos dois capítulos centrais do livro, o relato é feito pela própria Georgina, que revela os rituais de sua antiga religião aos quais se submeteu ou que realizou, como a iniciação (rituais de raspagem de sua cabeça para Oxum, que incluíram banhos com ervas e com sangue), os trabalhos feitos em cemitérios, despachos com miolo de boi, com bonecas para amarração etc. Ao final, revela que […] o povo do candomblé acredita que o poder dos “trabalhos” está nos segredos que a mãe-de-santo aprende através dos votos feitos aos orixás. Hoje sei perfeitamente que “segre- dos” são esses, e qual a sua fonte [...]: por trás dos sacrifícios sangrentos, das oferendas, comidas e banhos de ervas; enfim, por trás de todas as “obrigações”, há um poder maligno e diabólico em ação. O povo acredita que os orixás são deuses, mas não entende que na realidade são forças do mal forcejando por entrar em suas vidas a fim de as controlar e depois destruir (1983 [1968]:93). Georgina, espécie de “alter ego” de McAlister, reproduz no trecho acima a lógica do próprio candomblé, na qual são os ebômis (mais velhos no culto) que, detentores dos segredos do culto, os revelam aos poucos, de acordo com a senioridade dos seus interlocutores e segundo as relações de poder no interior da comunidade religiosa. Mas, sendo ela uma “mãe-de-santo convertida”, a legitimidade de sua revelação radical (o “segredo dos segredos”) apóia-se 212 NEOPENTECOSTALISMO E RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS simultaneamente em dois sistemas de legitimação: o afro-brasileiro e o pen- tecostal. Por isso, o livro é uma peça de diálogo e sobreposição desses dois sistemas religiosos: nos capítulos centrais, aparece Georgina em sua “jornada para Deus” descrita em primeira pessoa; nos capítulos iniciais e finais, surge o relato de McAlister em sua jornada para os recônditos do Diabo (candomblé e a umbanda) para condená-los e convidar seus praticantes à libertação. Além de pioneiro neste tipo de produção literária5, McAlister parece ter sido também o primeiro a utilizar a possessão in loco dos fiéis, durante sua pregação evangélica, como peça de enfrentamento dos demônios supos- tamente advindos dos cultos afros. Segundo Ricardo Mariano (1999:131), esse pastor, na época, “já obrigava os demônios a se manifestarem nos cultos públicos, conversava com eles, descobria seus nomes e os identificava com os cultos afro-brasileiros e espíritas”. O impacto das práticas da Igreja de Nova Vida no desenvolvimento desse antagonismo contra as religiões afro-brasileiras foi, entretanto, redu- zido. Essa Igreja, apesar de utilizar o rádio e posteriormente ser uma das pioneiras no uso da televisão para transmitir sua mensagem evangélica, nunca teve uma grande expansão e sobreviveu modestamente após a morte do seu fundador em 1993. Sua contribuição maior foi a formação de impor- tantes lideranças, como Edir Macedo e Romildo Ribeiro Soares, que poste- riormente fundaram suas próprias igrejas e se tornaram famosos partindo dos pressupostos de evangelização em relação às religiões afro-brasileiras aprendidos com McAlister. Edir Macedo, de origem católica e com passagem pela umbanda, havia se convertido à Nova Vida, na qual ficou por mais de uma década (Freston 1994:131; Mariano 1999:54). Dissidente desta igreja fundou, em 1977, junta- mente com Romildo Soares e Roberto Lopes, a Igreja Universal do Reino do Deus. Porém, disputas pelo poder ocasionaram a dissolução do triunvirato, ficando a igreja sob o comando exclusivo de Edir Macedo. Nas décadas se- guintes, aliando uma tática agressiva de proselitismo, investimento na mídia televisiva e acirramento da guerra espiritual contra as denominações rivais, a Universal tornou-se a mais conhecida e influente igreja do movimento neopentecostal. Na mídia impressa, o ataque iniciou-se desde as primeiras publicações da Igreja. Como menciona Ronaldo Almeida (1996:38): A primeira publicação da Igreja Universal foi a revista Plenitude, criada pouco tempo depois da sua fundação e, desde o seu primeiro número, o ataque à Umbanda e ao Candomblé imperaram como matérias principais. A Folha Uni- versal, que substituiu posteriormente a revista, traz todas as semanas diversas reportagens a respeito dos males causados por estas religiões. NEOPENTECOSTALISMO E RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS 213 É da autoria de Edir Macedo o principal e mais contundente livro de oposição aos cultos afro-brasileiros: Orixás, caboclos & guias. Deuses ou demônios?6Lançado em 1988, esse livro, cuja vendagem já teria chegado a 3 milhões de exemplares7, foi motivo de processo judicial, tendo sido “final- mente liberado pela justiça”, como se lê na capa. Uma síntese do perfil do autor e do livro é fornecida no prefácio de J. Cabral: Através dos veículos de comunicação e das igrejas que tem estabelecido pelos rincões de nossa pátria e no exterior, o bispo Macedo tem desencadeado uma verdadeira guerra santa contra toda obra do diabo. Nesse livro denuncia as ma- nobras satânicas através do kardecismo, da Umbanda, do Candomblé e outras seitas similares; coloca a descoberto as verdadeiras intenções dos demônios que se fazem passar por orixás, exus, erês, e ensina a fórmula para que a pessoa se liberte do seu domínio (apudMacedo 1996 [1988]:20). Orixás, caboclos & guias. Deuses ou demônios? retoma a estrutura e os temas centrais de Mãe-de-santo. Porém, pretendendo não deixar nem sombra de dúvida sobre a “resposta certa” à pergunta do título, apresenta argumentos mais detalhados, em um tom muito mais agressivo de condenação e alerta sobre os perigos que correm os que cultuam o panteão mencionado. Segundo a exegese bíblica contida no livro de Macedo, os demônios exis- tem e são criaturas de Deus que, por invejarem o criador, caíram em desgraça e vivem a disputar desde então o trono celeste. Como espíritos sem corpo, procuram apoderar-se dos corpos dos homens para causar-lhes doenças, infor- túnios e afastá-los de Deus. A luta dos homens contra os demônios é, portanto, uma decorrência da guerra destes contra Deus. Além disso, a vitória sobre o demônio significa, para os homens, dar o devido valor ao sacrifício feito por Jesus em nome de toda a humanidade — daí ser em nome deste (do seu sangue sacrificial) que se invoca a vitória sobre o mal e a posse da salvação eterna. Para Macedo, os diabos se apoderam dos homens especialmente quando estes freqüentam terreiros de candomblé, umbanda e espíritas ou realizam práticas de magia (como trabalhos e despachos); têm, ou tiveram, pessoas da família ou próximas envolvidas com esta prática (no caso de pessoas da família, mesmo quando estas já morreram, o demônio pode atacar seus parentes; nessa circunstância, diz-se que é um “demônio hereditário”); comeram comidas ofertadas aos orixás e, em resumo, não aceitaram Jesus plenamente em seu coração, ou seja, não têm o Espírito Santo em sua vida. Entretanto, mesmo quando estes fatores propiciatórios estão ausentes, a possessão demoníaca poderá ocorrer simplesmente por “maldade do próprio demônio”. As “evidências” de que as religiões afro-brasileiras são diabólicas 214 NEOPENTECOSTALISMO E RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS decorrem da realização de sacrifícios de animais, transe de possessão por espíritos, culto aos mortos, uso da magia para fazer malefícios etc. A exemplo do livro Mãe-de-santo, no de Macedo há uma descrição que se pretende “objetiva” dessas religiões, baseada em inúmeros testemunhos de ex-membros dos cultos afros que se converteram à IURD8, na própria experiência do autor como ex-participante da umbanda e em um caderno (manuscrito) de “fundamentos” (“conhecimentos secretos”) doado por uma ex-mãe-de-santo ao autor.9 Para além das semelhanças existentes entre os livros de McAlister e Macedo10, o que torna a publicação do segundo mais convincente para os objetivos pretendidos é o uso de uma farta ilustração que se vale do próprio status da dimensão estética e ritualística das religiões afro-brasileiras para julgá-las como demoníacas. Na capa, uma foto do orixá Oxalá (paramentado de branco) é reproduzida sobre um fundo vermelho e preto (cores de Exu)11, tendo à sua frente a estátua de um caboclo e de São Jorge, fios de contas, quartinhas etc. Ao centro, uma caveira é rodeada por velas acesas em círculo. Obviamente, trata-se de uma montagem de peças na forma estilizada de um “despacho” e, por isso mesmo, seu poder imagético é bastante suges- tivo, sobretudo pelas associações que induz por meio de coisas funestas (a caveira); ameaçadoras (o caboclo com a sua clave erguida em posição de combate); misteriosas (os elementos litúrgicos). No interior do livro, as legendas que acompanham as fotos pretendem desvendar-lhes os “significados verdadeiros”. No início do livro, por exem- plo, a reprodução de um convite para uma festa de candomblé, tendo um tridente como emblema, apresenta a seguinte legenda: “O tridente do diabo revela o intuito deste ritual” (:27). Uma foto de imagem de pombagira é seguida pelas frases: “A pomba-gira causa em muitas mulheres o câncer de útero, ovário, frigidez sexual e outras doenças. À sua atuação atribuem-se comportamentos ligados a práticas sexuais ilícitas e outras situações liga- das à sensualidade pecaminosa” (:36).12 Mas o impacto maior decorre da reprodução fotográfica de inúmeras cenas de rituais secretos de iniciação, como o orô (momento do sacrifício do animal sobre a cabeça do iniciado). Essas cenas são, de fato, o “calcanhar de Aquiles” dos cultos afros, sobretudo quando retiradas de seu contexto, visando criar a imagem dessas religiões como “sangrentas”, “selvagens” ou “primitivas”. As fotos de um sacrifício animal feito sobre a cabeça de uma iniciada e de fiéis ajoelhados diante de um congá (altar) apresentam as seguintes legendas: “A feitura da cabeça! Nesse estágio o adepto já fez um pacto com os demônios. Só Jesus poderá libertá-lo” (Macedo 1996:77); “Festa de formatura, onde os adeptos ‘ganham de presente’ uma legião de demônios para trabalhar com eles” (:65). NEOPENTECOSTALISMO E RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS 215 No entanto, a “evidência” maior da ação do demônio estaria, segundo o livro, nos assassinatos de pessoas em rituais afro-brasileiros, noticiados pela impressa e cujas manchetes estão reproduzidas no livro: “Mataram moça pra fazer despacho” (:46); “A polícia encontrou no local do despacho, cérebro e outros órgãos humanos, entre eles, um coração” (:56); “Bebê vítima de satanismo” (:109); “Homem morto à faca em ritual de umbanda” (:109). Obviamente que esses fatos, embora tenham ocorrido como atestam as re- portagens, não constituem práticas características dos sistemas religiosos afro-brasileiros. Entretanto, seu autor está convencido de que as religiões afro-brasileiras estão por trás de todas essas manifestações, daí colocar fotos de pessoas assassinadas como animais em rituais (tendo o corpo coberto por sangue) e de pessoas deitadas em um quarto de iniciação (tendo sobre o corpo o sangue ritual dos animais). A seqüência de imagens parece querer exprimir uma lógica na qual se prescreve que onde se mata o animal sobre o humano pode-se matar o humano como se fosse animal.13 Também as legendas das fotos de crianças participando dos rituais reforçam o estereótipo negativo sobre a religião: “Essas crianças, por terem sido envolvidas com os orixás, certamente não terão boas notas na escola e serão filhos ‘problemas’ na adolescência” (:50). As referências às religiões afro-brasileiras existentes em espaços públicos também demonstrariam, segundo o livro, a expansão da ação do demônio para além dos muros dos terreiros. Sob a foto da estátua de Ieman- já, localizada no litoral paulista, lê-se: “Iemanjá, na Umbanda, é a mesma Virgem Maria da religião católica. Muitos outros ‘santos’ são associados aos demônios” (:53). Fotos de placas de casas comerciais com os nomes de orixás (Gráfica Oxum, Restaurante Xangô etc.) ou esculturas de orixás, muito comuns em Salvador, também são alvos de críticas (:80,153). Na trilha aberta por Mãe-de-santo, além de Orixás, caboclos & guias. Deuses ou demônios?, muitos outros livros têm sido escritos delimitando uma área de interesse crescente na literatura de divulgação religiosa dos pastores neopentecostais. É o caso do livro Espiritismo, a magia do engano, cujo autor, o missionário Romildo Ribeiro Soares (ou R.R. Soares), depois de romper com Edir Macedo, fundou em 1980 a Igreja Internacional da Graça de Deus. Do púlpito desta igreja também vem convocando os fiéis para combaterem os “demônios afro-brasileiros” sem, contudo, ameaçar o protagonismo que marca a atuação de Macedo nesse campo.14 Esta literatura tem, inclusive, se diversificado e estende seu foco de ataque para outras religiões consideradas “heresias” ou “seitas”15. Se os livros citados nos permitem uma introdução ao universo da lite- ratura de divulgação que fundamenta a “teologia da batalha espiritual”16, 216 NEOPENTECOSTALISMO E RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS é sobretudo no plano dos atos rituais que sua mensagem tem gerado maior eficácia e adquirido grande visibilidade, tanto no interior das igrejas pen- tecostais como em outros espaços. Vejamos a seguir alguns exemplos da ação neopentecostal contra a presença do diabo associada às religiões afro-brasileiras. O “demônio” na prática Para que possamos entender melhor a natureza e a extensão dos casos de ataques neopentecostais17 às religiões afro-brasileiras, recolhi informações sobre eles publicadas na imprensa escrita e na literatura acadêmica dos últimos anos e classifiquei-os segundo alguns critérios: 1. Ataques feitos no âmbito dos cultos das igrejas neopentecostais e em seus meios de divulgação e proselitismo; 2. Agressões físicas in loco contra terreiros e seus membros; 3. Ataques às cerimônias religiosas afro-brasileiras realizadas em locais pú- blicos ou aos símbolos destas religiões existentes em tais espaços; 4. Ataques a outros símbolos da herança africana no Brasil que tenham alguma relação com as religiões afro-brasileiras; 5. Ataques decorrentes das alianças entre igrejas e políticos evangélicos e, finalmente, 6. As reações públicas (políticas e judiciais) dos adeptos das religiões afro-brasileiras. Vejamos alguns casos representativos de cada grupo. 1. Como vimos acima, os ataques feitos no âmbito das práticas rituais das igrejas neopentecostais e de seus meios de divulgação e proselitismo têm como ponto de partida uma teologia assentada na idéia de que a causa de grande parte dos males deste mundo pode ser atribuída à presença do demônio, que geralmente é associado aos deuses de outras denominações religiosas. Caberia aos fiéis, segundo esta visão, dar prosseguimento à obra de combate a esses demônios iniciada por Jesus Cristo: “Para isto se manifestou o Filho de Deus: para destruir as obras do diabo” (1 João 3:8). O panteão afro-brasileiro é especialmente alvo deste ataque, sobretudo a linha ou a categoria de exu, que foi associada inicialmente ao diabo cristão e posteriormente aceita nessa condição por uma boa parcela do povo-de- santo, principalmente o da umbanda. No interior das igrejas neopentecostais são freqüentes as sessões de exorcismo (ou “descarrego”, conforme denominação da Igreja Universal do Reino de Deus — IURD) dessas entidades, que são chamadas a incorporar para em seguida serem desqualificadas e expulsas como forma de liberta- ção espiritual do fiel. Dos púlpitos, este ataque estende-se aos programas religiosos (Fala que eu te escuto, Ponto de luz, Pare de sofrer, Show da fé

Description:
dos adeptos às religiões afro-brasileiras e ao catolicismo, o ataque neo- sobre as interpretações equivocadas das seitas, de Norman Geisler.
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