Momento Angular Um Prelu´dio `a Teoria de Grupos em F´ısica Eliezer Batista Dep. de Matem´atica, Universidade Federal de Santa Catarina, CEP:88 040-900, Florian´opolis, SC. Roda mundo, roda-gigante, Roda moinho, roda pi˜ao. O tempo rodou num instante Nas voltas do meu cora¸ca˜o. (Roda Viva), Chico Buarque Conteu´do Introdu¸c˜ao 2 1 Rota¸c˜oes em Trˆes Dimens˜oes 6 1.1 O Espa¸co Euclidiano em Trˆes Dimens˜oes . . . . . . . . . . . . 6 1.2 Delta e Epsilon . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10 1.3 Transformac¸˜oes Ortogonais e Rota¸co˜es . . . . . . . . . . . . . 12 2 O M.A. na Mecˆanica Cl´assica 21 2.1 O Momento Angular . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 2.2 Simetria e Leis de Conserva¸c˜ao . . . . . . . . . . . . . . . . . 25 2.3 O Formalismo Hamiltoniano e Transformac¸˜oes Canˆonicas . . . 31 3 O M.A. em Mecˆanica Quˆantica 40 3.1 Do Cl´assico ao Quˆantico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40 3.2 O Momento Angular Quˆantico . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46 3.3 Harmˆonicos Esf´ericos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51 3.4 Teoria do Spin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57 4 Grupos e A´lgebras de Lie 60 4.1 Grupos de Lie . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60 ´ 4.2 Algebras de Lie . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70 Bibliografia 77 1 Introdu¸c˜ao Estas notas destinam-se ao acompanhamento do minicurso entitulado Mo- mento Angular, Um Prelu´dio `a Teoria de Grupos em F´ısica, ministrado du- rante a Primeira Bienal da Sociedade Brasileira de Matem´atica, realizada em Belo Horizonte de 14 a 18 de outubro de 2002. Este minicurso destina-se principalmente a alunos de gradua¸c˜ao e p´os-gradua¸c˜ao em F´ısica ou Ma- tem´atica e a todos quantos se interessam em ver as interconexo˜es entre estas duas ciˆencias. Existem duas motiva¸c˜oes principais para a realiza¸ca˜o de um minicurso como este, uma negativa e outra positiva. Negativamente falando, este curso se faz necess´ario devido a uma deficiˆencia existente na maioria dos cursos de gradua¸ca˜o em f´ısica e em matem´atica. Se por um lado, nos cursos de f´ısica n˜ao se enfatiza o ensino de estruturas matem´aticas e o rigor desta disciplina, por outro lado nos cursos de matem´atica n˜ao se apresenta a intera¸c˜ao desta com outras ciˆencias, em particular a f´ısica, tornando a matem´atica um ass- unto estanque, sem contato com o mundo real. Positivamente falando, um curso como este se faz necess´ario pois nas u´ltimas d´ecadas a f´ısica te´orica se viu cada vez mais necessitada de ferramentas matematicas muit´ıssimo mais sofisticadas e a pr´opria pesquisa em matem´atica pura teve seus rumos deline- ados nos u´ltimos anos por id´eias e t´ecnicas oriundas da f´ısica. Portanto esta interac¸˜ao n˜ao ´e apenas uma curiosidade acadˆemica, mas uma necessidade real para o avan¸co das pesquisas nos pr´oximos anos. Como o tempo dispon´ıvel ´e muito restrito e as conex˜oes s˜ao numerosas, decidimos nos concentrar na teoria de grupos e sua utiliza¸c˜ao em f´ısica. A teoria de grupos sempre aparece em f´ısica quando tratamos de simetrias em sistemas f´ısicos. Mesmo este tema de simetrias tem se mostrado vast´ıssimo, isto pode ser observado pela ubiqu¨idade da teoria de grupos em f´ısica te´orica, da estrutura de cristais a teorias de calibre (gauge). Foram descobertas tamb´em uma s´erie de conex˜oes inusitadas entre ´areas aperentemente diferen- 2 3 tes, formando uma imensa teia conceitual imposs´ıvel de ser exaurida. Logo resolvemos nos concentrar em um tema cl´assico que possui um sem nu´mero de desenvolvimentos subsequ¨entes e cujas t´ecnicas servem de padr˜ao para a formulac¸˜ao de uma teoria geral: o momento angular em mecˆanica cl´assica e em mecˆanica quˆantica. O momento angular ´e uma quantidade simples de ser definida mas que possui implica¸c˜oes profundas como, por exemplo, este ´e uma quantidade conservada decorrente da isotropia espacial [5, 7], isto ´e sempre que n˜ao exista uma dire¸ca˜o privilegiada no espa¸co, o momento angular ´e conservado. Os conceitos b´asicos subjacentes a toda esta discuss˜ao ´ s˜ao os conceitos de Grupo de Lie e Algebras de Lie [12]. A teoria abstrata teve in´ıcio com o matem´atico alem˜ao Sophus Lie, que explorava as simetrias de equa¸c˜oes diferenciais como formas de encontrar solu¸co˜es exatas, veja por exemplo na referˆencia [12] sobre a id´eia do trabalho original de Lie. Os campos vetoriais que geravam as tranforma¸c˜oes do grupo possuiam tamb´em propriedades alg´ebricas interessantes. O espa¸co vetorial formado por estes geradores infinitesimais constitui o que´e chamado uma ´algebra de Lie [4, 10]. J´adopontodevistaf´ısico, ograndeimpulsoparaautiliza¸ca˜odateoriade grupos em f´ısica foi o surgimento da mecˆanica quˆantica. Em seus prim´ordios, a mecˆanica quˆantica consistia de uma s´erie de regras ad-hoc como uma ten- tativa de explicar efeitos f´ısicos observados experimentalmente em medidas atˆomicas, veja, por exemplo o primeiro cap´ıtulo da referˆencia [14] para um breve apanhado hist´orico das origens da mecˆanica quˆantica. Uma das regras mais importantes s˜ao as regras de quantiza¸ca˜o de Bohr-Sommerfeld, que diziam que o momento angular dos el´etrons ao redor do nu´cleo somente po- deriam assumir valores mu´ltiplos inteiros de (cid:126) ≈ 10−34 unidades do S.I. Estas regras de quantiza¸c˜ao por exemplo explicavam por que um el´etron n˜ao caia no nu´cleo atˆomico,pois segundo a f´ısica cl´assica um el´etron em uma ´orbita circular ou el´ıptica ao redor do nu´cleo emitiria radia¸ca˜o, perdendo energia e portanto colapsando com o nu´cleo. A explica¸ca˜o para estas regras de quan- tiza¸ca˜o s´o viriam mais tarde com a resolu¸c˜ao da equa¸ca˜o de Schro¨dinger em trˆes dimens˜oes, onde o momento angular aparece explicitamente ao escrever- se o laplaciano em coordenadas esf´ericas [11, 14]. A separa¸c˜ao de varia´veis em uma parte radial e uma parte angular mostraram explicitamente que as solu¸co˜es obedeciam `as regras de quantiza¸c˜ao anteriormente propostas. Mas o papel da teoria de grupos na mecˆanica quˆantica foi delineado principalmente por Wolfgang Pauli, Hermann Weyl [13] e Paul A.M. Dirac [3]. Um pouco redescobrindo conceitos antigos, um pouco inventando id´eias novas, os f´ısicos foram construindo as bases para a moderna teoria de representa¸co˜es utilizan- 4 do como mat´eria prima as ´algebras de Lie dos grupos SO(3) e SU(2) (como ´algebras elas s˜ao isomorfas, mas a teoria de representa¸co˜es possui sutilezas). Este curso basicamente est´a dividido em 4 cap´ıtulos. Cada cap´ıtulo est´a planejado para ser exposto em uma aula de 1 hora, com excess˜ao do terceiro cap´ıtulo que nos tomar´a duas aulas. Portanto, muitos detalhes de c´alculos s˜ao deixados para os leitores atrav´es de exerc´ıcios, que servir˜ao para comple- mentar a teoria exposta nas aulas bem como para estimular o aprendizado. No primeiro cap´ıtulo, estebelecemos a linguagem m´ınima para tratarmos do momento angular. Isto compreende a geometria no espa¸co euclidiano tridi- mensional R3, o produto vetorial, rota¸co˜es e transforma¸co˜es ortogonais. No segundo cap´ıtulo, expomos o momento angular nas diversas formula¸co˜es da mecˆanica cl´assica: a mecˆanica Newtoniana, a Lagrangeana e a Hamiltonia- na, em cada uma destas formula¸co˜es as propriedades de simetria v˜ao ficando mais expl´ıcitas bem como a rela¸ca˜o entre os grupos de tranforma¸c˜oes e a ´algebra de Lie de seus geradores infinitesimais. No terceiro cap´ıtulo, faremos a tradu¸c˜ao da mecˆanica cl´assica para a mecˆanica quˆantica e veremos como os estados quˆanticos associados ao momento angular est˜ao associados `as re- presentac¸˜oes da ´algebra de Lie so(3) e apresentaremos o spin no contexto de representa¸co˜es da ´algebra su(2). Finalmente, no quarto cap´ıtulo, retoma- remos os temas anteriores de um ponto de vista mais formal, definiremos a no¸ca˜o de grupo de Lie e ´algebra de Lie em abstrato, mostraremos como estes dois objetos matem´aticos est˜ao relacionados. Mostraremos tamb´em qual a rela¸ca˜o que existe entre os grupos SO(3) e SU(2), j´a que suas ´algebras pos- suem uma forma idˆentica. Por u´ltimo daremos alguns conceitos da teoria de representac¸˜oes. Embora este seja um assunto padr˜ao nos livros de mecˆanica quˆantica e basicamente a teoria de representa¸co˜es de SO(3) e SU(2) serem bem conhe- cidas, h´a desenvolvimentos modernos envolvendo id´eias simples com estes grupos. Citamos como exempo a teoria de redes de Spin de Roger Penrose [6,9]eaesferadifusadeMadore[8]. Aolongodocurso, visamosofereceruma perspectiva para os alunos em final de gradua¸ca˜o e in´ıcio de um programa de p´os gradua¸ca˜o de que existe ainda muita coisa a ser pesquisada mesmo com objetos razoavelmente simples como a ´algebra su(2). Neste curso, pretendemos ser auto contidos no que diz respeito aos con- ceitos f´ısicos, permitindo assim que alunos de matem´atica tamb´em possam participar sem se sentirem perdidos. O pr´e requisito m´ınimo para um bom acompanhamento deste curso ´e que o aluno ja tenha tido contato com o c´alculo b´asico em uma e v´arias varia´veis e com a ´algebra linear. Mas cer- 5 tamente obter˜ao maior proveito deste curso alunos que j´a cursaram alguma disciplinademecˆanicacl´assicaedemecˆanicaquˆantica. Paraestes,emtermos de f´ısica n˜ao ter´a nada de novo, mas poder´a se obter uma nova perspectiva destes mesmos assuntos sob um ponto de vista de teoria de grupos e ´algebras de Lie. Cap´ıtulo 1 Rota¸co˜es em Trˆes Dimens˜oes Neste cap´ıtulo, introduziremos alguns conceitos b´asicos e nota¸co˜es que nos ser˜ao importantes no decorrer do curso. O leitor que j´a estiver familiarizado com os sistemas de coordenadas no espa¸co, com produtos escalares e com matrizes ortogonais poder´a ir direto para o cap´ıtulo 2, onde trataremos do momento angular em mecˆanica cl´assica. 1.1 O Espa¸co Euclidiano em Trˆes Dimens˜oes O espa¸co que estamos considerando ´e o espa¸co euclidiano tridimensional R3. Como espa¸co vetorial R3 ∼= Span{(x ,x ,x ) | x ∈ R,i = 1,2,3}. 1 2 3 i Vamos denotar a base canˆonica de R3 por eˆ , para i = 1,2,3, onde i eˆ = (1,0,0) , eˆ = (0,1,0) e eˆ = (0,0,1). 1 2 3 Assim, um vetor em R3 pode ser escrito como a soma (cid:88)3 (cid:126)v = x eˆ . i i i=1 A vantagem de denotarmos desta maneira a base de R3, ao inv´es dos usuais vetores i, j e k,´e a possibilidade de escrevermos todas as f´ormulas em nota¸ca˜o abstrata, usando somat´orios e´ındices. A utilidade disto ficar´a clara a medida que formos evoluindo no texto. 6 ´ ˜ ˆ ˜ CAPITULO 1. ROTAC¸OES EM TRES DIMENSOES 7 Dois sistemas de coordenadas em R3 ser˜ao particularmente u´teis no de- correr deste texto, o sistema de coordanadas retangulares, ou Cartesianas, e o sistema de coordenadas esf´ericas. Em coordenadas retangulares, um vetor (cid:126)v ∈ R3 ´e escrito como (cid:126)v = (x,y,z), conforme ilustrado na Figura 1.1. z v y x Figura 1.1: Representac¸˜ao de um vetor(cid:126)v ∈ R3 em coordenadas retangulares. Em coordenadas esf´ericas, um vetor ´e representado por trˆes parˆametros r, θ e φ, e est´a relacionado com o sistema cartesiano pelas equa¸co˜es x = rsinθcosφ, y = rsinθsinφ, z = rcosθ, (1.1) conforme indicado pela Figura 1.2. ´ ˜ ˆ ˜ CAPITULO 1. ROTAC¸OES EM TRES DIMENSOES 8 v q r f Figura 1.2: Representac¸˜ao de um vetor(cid:126)v ∈ R3 em coordenadas esf´ericas. Exerc´ıcio 1 Encontre as rela¸c˜oes inversas de (1.1), isto ´e, encontre as ex- press˜oes de r, θ e φ em termos de x, y e z. Al´em da estrutura vetorial, o espa¸co euclidiano R3 tamb´em ´e munido de um produto escalar, o que lhe confere propriedades m´etricas. O produto escalar ´e uma aplica¸c˜ao · : R3 × R3 → R ((cid:126)v,w(cid:126)) (cid:55)→ (cid:126)v · w(cid:126). Com as seguintes propriedades: ´ 1. E bilinear ((cid:126)u +(cid:126)v) · w(cid:126) = (cid:126)u · w(cid:126) +(cid:126)v · w(cid:126), (cid:126)u · ((cid:126)v + w(cid:126)) = (cid:126)u ·(cid:126)v +(cid:126)u · w(cid:126), (λ(cid:126)u) ·(cid:126)v = (cid:126)u · (λ(cid:126)v) = λ(cid:126)u ·(cid:126)v. ´ 2. E sim´etrica (cid:126)u ·(cid:126)v = (cid:126)v ·(cid:126)u. 3. E ´e positiva definida (cid:126)v ·(cid:126)v ≥ 0 ; (cid:126)v ·(cid:126)v = 0 ⇔ (cid:126)v = 0.
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