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Marx e o problema da decadência ideológica PDF

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MARX E O PROBLEMA DA DECADÊNCIA IDEOLÓGICA György Lukács Les personnes faibles ne peuvent être sincères. [As pessoas fracas não podem ser sinceras.] La Rochefoucauld Marx tinha 13 anos quando Hegel morreu, 14 quando morreu Goethe. Os anos decisivos de sua juventude transcorrem no período entre a revolução de julho e a de fevereiro. O período de sua primeira grande atividade política e jornalística é a preparação da Revolução de 1848 e a direção ideológica da ala proletária da de- mocracia revolucionária. Uma das questões fundamentais da preparação ideológica da Alemanha para a Revolução de 1848 é a tomada de posição em face da dissolução do hegelianismo. Esse processo de dissolução assinala 97 o fim da última grande filosofia da sociedade burguesa. Isso se torna, ao mesmo tempo, um importante fator da for- mação do materialismo dialético. A elaboração da nova ciência do materialismo histórico, contudo, implica também o exame crítico do nascimento e da decomposição da economia clássica, isto é, da maior e mais típica ciência nova da sociedade burguesa. Como his- toriador e crítico da economia clássica, Marx descobriu e escreveu, pela primeira vez, a história dessa decomposição. A caracterização sumária dessa decomposição, feita por Marx no que diz respeito ao período 1820-1830, torna-se ao mesmo tempo uma exposição e uma crítica rica e multilateral da decadência ideológica da burgue- sia. Esta tem início quando a burguesia já domina o poder político e a luta de classes entre ela e proletariado se coloca no centro do cenário histórico. Esta luta de classes, diz Marx, [...] dobrou finados pela ciência econômica burguesa. Agora não se trata mais de saber se este ou aquele teorema é verdadeiro, mas sim se é útil ou prejudicial ao capital, cômodo ou incômodo, contrário aos regulamentos da polícia ou não. Em lugar da pesquisa desinteressada, temos a atividade de espadachins assalariados; em lugar de uma análise científica despida de preconceitos, a má consciência e a premeditação da apologética. Esta crítica foi precedida no tempo não somente por aquela de- dicada aos epígonos hegelianos dos anos posteriores a 1840, mas sobretudo pela grandiosa e vasta crítica da decadência política dos partidos burgueses na Revolução de 1848. Na Alemanha, os parti- dos burgueses traíram, em favor da monarquia dos Hohenzollern, os grandes interesses – ligados ao povo – da revolução democrático- -burguesa; na França, traíram os interesses da democracia, em favor de Bonaparte. Segue-se a essa crítica, logo após a derrota da revolução, a crítica das repercussões de tal traição sobre a ciência da sociedade. Marx conclui seu julgamento de Guizot com as palavras: “Les capacités de la bourgeoisie s’en vont” [as capacidades da burguesia desparecem]; e, no Dezoito Brumário, fundamenta este juízo com a frase epigramática: A burguesia tomava consciência, com razão, de que todas as armas que havia forjado contra o feudalismo voltavam-se agora contra ela; que toda a cultura que havia gerado rebelava-se contra sua própria civiliza- ção; que todos os deuses que criara a haviam renegado. 98 Existe assim, em Marx, uma vasta e sistemática crítica da grande reviravolta político-ideológica de todo o pensamento burguês no sentido da apologética e da decadência. Por isso, é naturalmente im- possível tratar aqui dessa crítica de um modo completo, ainda que aproximativo, ou mesmo através de uma simples enumeração. Para isso, seria necessária uma história da ideologia burguesa do século XIX, guiada pelos resultados da investigação marxista. No que se segue, sublinharemos apenas alguns pontos importantes, escolhidos intencionalmente do ponto de vista da conexão da literatura com as grandes correntes sociais, políticas e ideológicas que determinaram a reviravolta em questão. Comecemos com a evasão da realidade, com a fuga no predo- mínio da ideologia “pura”, com a liquidação do materialismo e da dialética espontâneos próprios do “período heroico” da revolução burguesa. O pensamento dos apologetas não é mais fecundado pe- las contradições do desenvolvimento social, as quais, ao contrário, ele busca mitigar, de acordo com as necessidades econômicas e po- líticas da burguesia. Logo após a Revolução de 1848, Marx e Engels criticam um opúsculo de Guizot sobre as diferenças entre a revolução inglesa e a francesa. Antes de 1848, Guizot é um daqueles notáveis his- toriadores franceses, que descobriram cientificamente a função da luta de classes na história das origens da sociedade burguesa. Após 1848, Guizot pretende demonstrar a todo custo que a manutenção da monarquia de Luís Filipe, estabelecida pela revolução de julho de 1830, é um imperativo da razão histórica e que 1848 foi nada mais do que um grande equívoco. Para provar a tese reacionária, Guizot reelabora, a seu modo, toda a história francesa e inglesa, esquecendo tudo quanto aprende- ra em sua longa vida de estudioso. Em vez de utilizar, como chave das diferenças entre as revoluções inglesa e francesa, a diversidade do desenvolvimento agrário dos dois países diante do capitalismo nascente, parte da exclusiva legitimidade histórica da monarquia de julho, considerada como um a priori histórico. Projeta na evolução inglesa o predomínio de um elemento religioso e conservador, en- quanto ignora completamente a realidade histórica, isto é, sobretu- do o caráter burguês da propriedade fundiária inglesa e o desenvol- vimento particular do materialismo filosófico, do iluminismo. Disto decorrem os seguintes resultados. Por um lado, [...] com a consolidação da monarquia constitucional, cessa, para o Sr. Guizot, a história inglesa [...]. Onde o Sr. Guizot não vê mais do que 99 doce tranquilidade e idílica paz, desenvolveram-se na realidade confli- tos gigantescos, revoluções decisivas. E, por outro lado, paralelamente a este desprezo pelos fatos his- tóricos, pelas reais forças motrizes da história, surge uma tendência à mistificação. Guizot “[...] se refugia na fraseologia religiosa, na in- tervenção armada de Deus. Por exemplo, o espírito de Deus paira de modo imprevisto sobre o exército, impedindo Cromwell de pro- clamar-se rei etc.”. Assim, sob a influência da Revolução de 1848, um dos fundadores da ciência histórica moderna transformou-se num apologista do compromisso entre a burguesia e os resíduos do feudalismo, justificado por meio de mistificações. Essa liquidação de todas as tentativas anteriormente realizadas pelos mais notáveis ideólogos burgueses no sentido de compreender as verdadeiras forças motrizes da sociedade, sem temor das contradi- ções que pudessem ser esclarecidas; essa fuga numa pseudo-história construí da a bel-prazer, interpretada superficialmente, deformada em sentido subjetivista e místico, é a tendência geral da decadência ideológica. Do mesmo modo como, em face da revolta de junho de 1848 do proletariado parisiense, os partidos liberais e democráticos fugiram e se esconderam sob as asas dos vários Hohenzollern, Bo- naparte e consortes, agora fogem também os ideólogos da burgue- sia, preferindo inventar os mais vulgares e insípidos misticismos a encarar de frente a luta de classes entre burguesia e proletariado, a compreender cientificamente as causas e a essência desta luta. Metodologicamente, essa mudança de orientação manifesta-se no fato de que, como já vimos em Guizot, os teóricos evitam cada vez mais entrar em contato diretamente com a própria realidade, co- locando no centro de suas considerações, ao contrário, as disputas formais e verbais com as doutrinas precedentes. O exame crítico dos precursores, naturalmente, desempenha uma importante função em toda ciência, e teve uma grande impor- tância inclusive nos clássicos da economia e da filosofia. Mas, para eles, um tal exame era tão somente um meio entre outros para uma aproximação, profunda e multilateral, à própria realidade. Apenas nos ecléticos, que exaltam a sociedade constituída, a doutrina cientí- fica se afasta da vida que deveria refletir; e se afasta tanto mais quan- to mais forte for o impulso dos apologetas a falsificar a realidade. Esse afastamento da vida da sociedade, próprio da pseudociência eclética, transforma cada vez mais as afirmações da ciência em fra- ses vazias. Trata-se da mesma retórica nas relações com o passado e com o presente que Marx satirizara nos “radicais” franceses da 100 Revolução de 1848. Nos anos grandiosos que vão de 1789 a 1793, a referência dos revolucionários ao mundo clássico, inclusive ao ves- tuário clássico, era um elemento positivo da revolução. Quando a Montanha de 1848 utiliza as palavras e os gestos de 1793, oferece o espetáculo de uma mascarada caricatural: palavras e gestos estavam em aberto contraste com as ações reais. Aduziremos apenas dois exemplos da mudança de orientação ocorrida na ciência, um econô- mico e um filosófico. Marx julga Stuart Mill, com o qual se inicia essa evolução (e que, não obstante, ainda apresentava alguns elementos do verdadeiro es- tudioso), do seguinte modo: Sua matéria-prima não é mais a realidade, mas sim a nova forma teó- rica pela qual o Mestre a sublimou. Em parte a oposição teórica dos adversários da nova teoria, em parte a relação quase sempre paradoxal desta teoria com a realidade, incitam-no a tentar refutar os primeiros e eliminar a segunda [...]. Mill, por um lado, pretende representar a pro- dução burguesa como forma absoluta da produção, e busca demons- trar, portanto, que suas contradições reais são apenas aparentes. Por outro lado, busca apresentar a teoria de Ricardo como forma teórica absoluta deste modo de produção, visando demonstrar a inconsistên- cia das objeções a esta teoria, feitas em parte por outros, em parte surgidas espontaneamente dele mesmo [...]. Trata-se, simplesmente, da tentativa de apresentar como sendo existente o que não o é. Mas é por meio desta forma imediata que Mill busca resolver o problema. Portanto, não é possível aqui nenhuma solução real, mas tão somente uma característica abolição das dificuldades através do raciocínio, ou seja, uma solução apenas escolástica. Já que a dissolução do hegelianismo na Alemanha, não obstante todas as diferenças entre o desenvolvimento social e ideológico da- quele país e o da Inglaterra, é um processo cujas raízes sociais são afins, em última instância, às da dissolução da escola ricardiana, tan- to os fatos quanto o julgamento dados por Marx a respeito deveriam apresentar uma certa analogia metodológica. Por ocasião da crítica a Bruno Bauer, Marx assim resume essa crítica à concepção filosófica e histórica dos jovens-hegelianos radicais: A expressão abstrata e celestial que assume uma colisão real, graças à deformação hegeliana, aparece – nesta cabeça ‘crítica’ – como se fosse a colisão real [...]. A retórica filosófica da questão real é, para ele, a própria questão real. Este método geral da orientação apologética do pensamento bur- 101 guês revela-se, de modo ainda mais evidente, quando se compara tal pensamento com a contradição do progresso da sociedade. O cará- ter contraditório do progresso é um problema geral do desenvolvi- mento da sociedade dividida em classes. Marx define este problema, bem como a necessidade de sua solução unilateral no pensamento burguês (de dois pontos de vista opostos), do seguinte modo: Os indivíduos universalmente desenvolvidos, cujas relações sociais, enquanto relações que lhes são próprias e comuns, são igualmente submetidas ao seu próprio controle comum, não são um produto da natureza, mas da história. O grau e a universalidade do desenvolvi- mento das faculdades, que tornam possível esta individualidade, pres- supõem precisamente a produção baseada sobre os valores de troca, pois só ela produz a universalidade da alienação do indivíduo em face de si mesmo e dos outros, mas igualmente a universalidade e omnila- teralidade das suas relações e capacidades. Em épocas mais antigas de seu desenvolvimento, o indivíduo singular revela-se mais completo, precisamente porque ainda não elaborou a plenitude de suas relações e ainda não as contrapôs a si mesmo como potências e relações so- ciais que são independentes dele. Se é ridículo alimentar nostalgias por aquela plenitude originária, é igualmente ridículo crer que se deva man- ter o homem neste completo esvaziamento. A concepção burguesa não conseguiu jamais superar a mera antítese àquela concepção ro- mântica: por isto, esta a acompanhará como legítima antítese até que chegue a sua hora. Marx indica aqui o contraste necessário entre defesa burguesa do progresso e crítica romântica ao capitalismo. Na última floração da ciência burguesa, este contraste é personificado pelos grandes economistas Ricardo e Sismondi. Com o triunfo da orientação apo- logética, a linha de Ricardo é deformada e rebaixada a uma apolo- gética direta e vulgar do capitalismo. Já a partir da crítica romântica ao capitalismo, desenvolve-se uma apologética mais complicada e pretensiosa, mas não menos mentirosa e eclética, da sociedade bur- guesa: sua apologia indireta, a defesa do capitalismo a partir de seus “lados maus”. O ponto de partida do primeiro tipo de apologética, vulgar e direta, do capitalismo encontra-se novamente em James Mill. Marx assim caracteriza este método: Quando as relações econômicas – e, portanto, também as categorias que as expressam – incluem contrastes, contradições, e são precisa- mente a unidade de tais contradições, Mill sublinha o momento da unidade dos contrastes e nega os próprios contrastes. Transforma a unidade das contradições em identidade imediata destas contradições. 102 Com isto, Mill abre a porta à mais trivial apologética da econo- mia vulgar. De suas investigações, que ainda devem ser parcialmente levadas a sério, um rápido atalho leva à exaltação vazia da “harmo- nia” do capitalismo, aos múltiplos Say, Bastiat, Roccher. A economia se limita, cada vez mais, a uma mera reprodução dos fenômenos superficiais. O processo espontâneo da decadência científica opera em estreito contato com a apologia consciente e venal da economia capitalista. A economia vulgar – diz Marx – acredita ser tão mais simples, natural e de utilidade pública, tão mais afastada de qualquer sutileza teórica, quanto mais, na realidade, não fizer mais do que traduzir as ideias cor- riqueiras em uma linguagem doutrinária. Por isto, quanto mais alienada for a forma pela qual concebe as formações da produção capitalista, tanto mais ela se aproxima do elemento das ideias corriqueiras, tanto mais, portanto, imerge em seu elemento natural. Além disto, presta ótimos serviços à apologética. Esta é a linha seguida pela apologética simples e direta, a linha ideológica através da qual a ideologia burguesa degenera num libe- ralismo vil e disposto aos compromissos. A outra posição extrema e unilateral em face do progresso social é mais complexa e hoje, para nós, mais perigosa, já que – da inter- pretação decadente e vulgar que o anticapitalismo romântico já ado- tara muito cedo (em Malthus) – surgiu, no curso da decomposição do capitalismo, a bárbara demagogia social do fascismo. Malthus busca obter uma apologia do capitalismo a partir das dissonâncias deste regime econômico. Por isto, é instrutivo confron- tar sua concepção com as de Ricardo e Sismondi, visando extrair claramente o contraste entre esta forma de apologia e os dois últi- mos clássicos da economia política. Ricardo quer a produção pela produção, isto é, segundo a formu- lação de Marx, “o desenvolvimento das forças produtivas humanas, o desenvolvimento da riqueza da natureza humana, portanto, como um fim em si mesmo”. Por isto, Ricardo toma posição, corajosa e honesta- mente, contra toda classe que impeça, em qualquer aspecto, este desenvolvimento – e, portanto, quando for necessário, até mesmo contra a burguesia. Por conseguinte, quando ele, com cínica fran- queza, equipara o proletariado, no seio da sociedade capitalista, às máquinas, aos animais de carga ou às mercadorias, esse cinismo está implícito nas próprias coisas. Pode fazê-lo, diz Marx, 103 [...] porque os proletários, na produção capitalista, são realmente e apenas mercadorias. E isto histórica, objetiva e cientificamente. Sem- pre que possível, sempre que isso não o leva a pecar contra a própria ciência, Ricardo é um filantropo, o que, ademais, ele o foi na prática. A defesa da sociedade capitalista, feita por Malthus, segue cami- nhos completamente opostos. Marx assim resume os seus pontos principais: Também Malthus quer o mais livre desenvolvimento possível da socie- dade capitalista, na medida em que a condição de tal desenvolvimento é tão somente a miséria de seus principais artífices, as classes trabalha- doras; mas, ao mesmo tempo, ele deve se adaptar às “exigências do consumo” da aristocracia e de suas sucursais no Estado e na Igreja, deve servir ao mesmo tempo de base material para as envelhecidas pretensões dos representantes dos interesses herdados do feudalismo e da monarquia absoluta. Malthus quer a produção burguesa na medi- da em que ela não for revolucionária, não for um momento histórico, mas sim algo que se limite a fornecer uma base material mais vasta e mais cômoda à “velha” sociedade. Malthus possui também pontos de contato com a crítica românti- ca do capitalismo, na medida em que sublinha suas dissonâncias. Foi isto que Sismondi fez em relação a Ricardo: colocou em destaque os direitos do homem individual, aniquilados material e moralmente pelo desenvolvimento capitalista. Ainda que esta opinião fosse uni- lateral e – vista de um mais amplo horizonte histórico – injustifica- da, ainda que Sismondi fosse obrigado a se refugiar ideologicamente no passado, cabe-lhe todavia o mérito de ter descoberto, diz Marx, que a produção capitalista é contraditória. [...] Sismondi julga convin- centemente as contradições da produção burguesa, mas não as com- preende; por isto, compreende ainda menos o processo de sua reso- lução. Mesmo criticando asperamente as ideias românticas de Sismondi, Marx constata que existe nelas um pressentimento das contradições do capitalismo, do caráter historicamente transitório da sociedade capitalista. A crítica romântica do capitalismo em Sismondi, a desco- berta de suas necessárias contradições e dissonâncias, é assim uma notável conquista de um pensador corajoso e honesto. A revelação das dissonâncias do capitalismo possui, em Malthus, um conteúdo e uma orientação diametralmente opostos. Diz Marx: 104 Malthus não tem interesse em encobrir as contradições da produção burguesa, mas, ao contrário, quer evidenciá-las, por um lado, para de- monstrar como é necessária a miséria das classes trabalhadoras [...], e, por outro, para demonstrar aos capitalistas que um clero eclesiástico e estatal bem nutrido é indispensável a fim de lhes proporcionar uma demanda adequada. Assim, esta decadência da crítica romântica ao capitalismo já se manifesta muito cedo, em Malthus, nas suas formas mais baixas e repugnantes, como expressão da ideologia da parcela mais reacioná- ria da burguesia inglesa, envolvida nas violentíssimas lutas de classe dos princípios do século XIX. Malthus é, portanto, um precursor da depravação máxima da ideologia burguesa, que só se tornou univer- salmente dominante mais tarde, sob o impacto dos eventos interna- cionais de 1848. Essa crise rebaixou um dos mais talentosos e brilhantes repre- sentantes do anticapitalismo romântico, Thomas Carlyle, ao nível de um mesquinho decadente, de um mentiroso apologeta do capi- talismo. Antes de 1848, Carlyle era um crítico corajoso, profundo e espirituoso dos horrores da civilização capitalista. Assim como o francês Linguet no século XVIII, assim como Balzac e Fourier no XIX, a partir de diferentes posições ideológicas e de classe, des- nudaram corajosamente as contradições do capitalismo, do mesmo modo Carlyle – em suas obras anteriores a 1848 – travou uma impla- cável batalha de desmascaramento contra o capitalismo dominante, contra os exaltadores de seu caráter incondicionalmente progres- sista, contra a teoria mentirosa de que este progresso serviria aos interesses do povo trabalhador. As tempestades da Revolução de 1848 assinalaram para Carlyle, como Marx e Engels observaram, “o fim do talento literário em consequência do aguçamento das lutas históricas”. Nos eventos de 1848, Carlyle não vê a debilidade, a duplicidade e a velhacaria da democracia burguesa na defesa dos grandes interesses históricos do povo trabalhador, mas percebe neles apenas o caos, o delírio, o fim do mundo. Considera a bancarrota da democracia burguesa em 1848, fruto de uma traição em prejuízo do povo, como sendo a bancarrota da democracia em geral. Invoca a “ordem” em lugar do “caos”, isto é, coloca-se ao lado dos bandidos reacionários que su- focaram a Revolução de 1848. Considera como “eterna lei natural” o domínio dos “nobres” na sociedade, bem como a correspondente estrutura hierárquica. Mas quem são agora estes “nobres”? São os “líderes” da in- dústria. A crítica de Carlyle ao capitalismo padecia, mesmo em seu 105 período combativo – assim como a crítica diversa, mas igualmente romântica, de Sismondi –, da tendência a buscar o caminho da sal- vação da barbárie da civilização não na direção do futuro, mas na do passado. Porém, quando o “herói” de antes, como consequência ideológica do pânico provocado em Carlyle pela revolução, trans- forma-se em “líder industrial”, seu anticapitalismo romântico con- verte-se numa apologia pequeno-burguesa do sistema capitalista. O conteúdo desta apologia já corresponde à baixeza mentiro- sa do apavorado filisteu vulgar, do qual Carlyle se distingue apenas pelo brilho do estilo e pelos paradoxos formais. Mas tampouco esta diferença o honra, já que é precisamente através de seu brilho “ge- nial” que este conteúdo pequeno-burguês assume um demagógico poder de sedução. “A nova época”, diz Marx, “na qual predomina o gênio, distingue-se da antiga principalmente pelo fato de que o logro imagina ser genial”. Um Carlyle, outrora honesto e altamente talentoso, cai no nível espiritual e moral de um Malthus. A filosofia da defesa do progresso burguês já havia sido, há algum tempo, ingloriamente destronada na Inglaterra. (Na Alemanha, essa etapa é assinalada pela dissolução da filosofia hegeliana.) Hobbes e Locke, Helvétius e Holbach foram os representantes grandiosos e corajosos da filosofia burguesa do progresso. Decerto, é verdade que traduziram em sistema filosófico as ilusões a respeito do progresso; todavia, dado que essas ilusões eram historicamente necessárias, sua expressão filosófica podia e devia conduzir à descoberta, numa forma profunda e genial, de momentos importantes do desenvolvimento histórico real. A defesa do progresso histórico realizado pelo capita- lismo é inseparavelmente acompanhada, neles e em seus seguidores, por um corajoso desmascaramento de todas as contradições e horro- res da sociedade burguesa que podiam perceber. O teórico do utilitarismo, Jeremias Bentham, personifica o ver- gonhoso fim dessa grande e gloriosa linha de desenvolvimento fi- losófico: enquanto o anticapitalismo romântico degenerava numa demagogia colorida e mentirosa, a decadência da filosofia do pro- gresso revela-se muito mais abertamente na forma de filisteísmo vulgar. Marx indica essa decadência, sublinhando precisamente as conexões de Bentham com seus gloriosos antecessores: Ele não faz mais do que reproduzir, sem nenhuma inteligência, o que Helvétius e os demais franceses do século XVIII disseram de modo muito inteligente [...]. Com a mais ingênua vacuidade, propõe o pe- queno-burguês moderno, particularmente o inglês, como o homem normal. O que é útil a este tipo de homem normal e a seu mundo é útil em si e para si. Utilizando esta escala, ele mede ainda o passado, o 106

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