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Jesus e o Império: o reino de Deus e a nova desordem mundial PDF

147 Pages·2004·1.197 MB·Portuguese
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2 Índice Agradecimentos Introdução - Identidade americana e um Jesus despolitizado A identidade ambígua da América Separação da religião e domesticação de Jesus Pesquisando Jesus e o Império 1. Imperialismo Romano - A nova desordem mundial Emergência de uma única superpotência Imperialismo Romano Governo indireto por meio de reis e de sumos sacerdotes 2. Resistência e revolta na Judéia e na Galiléia Persistência e raízes sociais de revolta na Palestina Romana Protesto, resistência e terrorismo de grupos escribais Protestos populares e movimentos israelitas característicos 3. Perspectiva relacional à pessoa de Jesus Múltiplos aspectos na abordagem de um líder histórico Condições históricas e tradições culturais Jesus-em-movimento em fontes evangélicas O Evangelho em seu todo 4. Julgamento divino da ordem imperial romana Condições de renovação: Julgamento dos governantes Jesus e a condenação profética do Templo e dos sumos sacerdotes Jesus e a condenação profética do domínio imperial romano 5. Comunidade e cooperação segundo a aliança Correção dos efeitos do imperialismo Atuação em comunidades camponesas Renovação de comunidades da aliança Alternativa de Jesus para a ordem imperial romana Epílogo - Império Cristão e Império Americano Império Cristão Império Americano Abreviaturas 3 Agradecimentos Este livro é uma expansão das Rauschenbusch Lectures proferidas na Colgate- Rochester Theological School, em 2001. Agradecimentos especiais ao ex-diretor William Herzog pelo convite para pronunciar essas palestras e ao corpo docente e discente pela calorosa acolhida e receptividade. Devo muito a Bill também pela sensibilidade, estímulo e lucidez dos seus livros sobre Jesus. Para as pesquisas, dependi quase totalmente do apoio e da ajuda de três alunas de grande capacidade reflexiva e senso crítico: Marlyn Miller, especialmente com relação aos movimentos populares; Audrey Pitts, particularmente sobre o imperialismo romano, e Maureen Worth, no que se refere à recente teoria política. Aprendi muito com Warren Carter sobre o imperialismo romano no contexto dos Evangelhos, e Jim Tracy me ensinou história americana. Além disso, Warren e Jim leram com a maior disponibilidade, se não todo, grande parte do penúltimo esboço de Jesus e o Império. Acima de tudo, agradeço a Tom Conry, que analisou criticamente o primeiro esboço e, inspirando-se em seu profundo conhecimento do Novo Testamento e da história política, ofereceu sugestões valiosas para revisão; e a Ran Huntsberry, amigo de longa data e companheiro em muitas interlocuções, autor de um estudo crítico sobre o penúltimo esboço, o que me ajudou a ver como a apresentação poderia ser mais clara em aspectos importantes. Finalmente, manifesto o meu apreço aos muitos alunos que produziram debates e idéias estimulantes sobre Jesus e a política, e a todos os colegas cujos textos sobre o Jesus histórico deram origem a novas compreensões, perspectivas e questionamentos. O meu maior débito talvez seja para com aqueles de quem, implícita ou explicitamente, eu mais possa discordar sobre vários pontos ao longo destes capítulos. 4 Introdução Identidade americana e um Jesus despolitizado Os textos são vinculados às circunstâncias e às políticas, globais e regionais, e estas exigem atenção e crítica.... Não podemos abordar a literatura das periferias sem também levar em consideração a literatura dos centros metropolitanos. Edward Said A IDENTIDADE AMBÍGUA DA AMÉRICA Os americanos se consideram um povo bíblico desde o momento em que começaram a ocupar a Nova Inglaterra. Ao emigrar da Inglaterra e estabelecer-se em Plymouth, Boston e Providence, os Peregrinos e Puritanos identificavam-se com os relatos bíblicos do antigo êxodo de Israel em sua fuga do Faraó do Egito e nas narrativas da aliança de Israel com Deus, no Monte Sinai. Essa identidade formadora era tão visceral, que a própria Revolução Americana foi interpretada como um novo êxodo, uma fuga para longe do novo faraó, Jorge III. Ninguém mais senão o deísta Thomas Jefferson poderia propor que o Grande Selo dos Estados Unidos representasse Moisés conduzindo os israelitas através do mar Vermelho. Depois, quando a Constituição estava sendo ratificada, os pregadores da Nova Inglaterra aclamaram-na como a nova aliança. Assim como as doze tribos de Israel haviam recebido a aliança no Sinai como modelo de governo civil e farol para a história que se desenvolveria, agora os treze Estados formavam um novo modelo de aliança de 1 governo civil como protótipo para outras sociedades. Embora fossem proibidos de aprender a ler, os escravos afro-americanos, ao ouvirem as histórias bíblicas da libertação da escravidão e as descrições da terra prometida a que Deus conduzia os israelitas, imaginavam-se fugindo da sua condição de escravos e “atravessando o Jordão” em direção à terra prometida da liberdade. Quando a emancipação dos escravos finalmente chegou, ela foi amplamente interpretada nos termos do êxodo bíblico. E novamente no movimento dos direitos 2 civis, a libertação do êxodo tornou-se imagem predominante. Essa compreensão de si e essas experiências modeladoras exerceram forte impacto sobre a identidade de muitos americanos, talvez da maioria. O sociólogo Robert Bellah mostrou a enorme influência da herança bíblica e cristã sobre a “Religião Civil 3 Americana” que, dada a “separação entre Igreja e Estado”, estrutura a coesão religiosa do país. O martírio do presidente Abraham Lincoln chegou a introduzir uma “figura de Cristo” na “religião civil” americana, ampliando, com conteúdos do Novo Testamento, a infusão bíblica já existente nela. Os assassinatos mais recentes do 5 presidente John Kennedy, do seu irmão Robert e do líder dos direitos civis, Martin Luther King Jr., aumentaram o número de figuras de Cristo com um novo “dia santo”, na identidade americana. Muitos movimentos reformistas, conclamando o país aos seus valores e ideais originários (como povo bíblico), recorrem à herança bíblica dos Estados Unidos. Além do Movimento Feminino de Moderação e do Movimento para o Voto Feminino, um dos mais importantes foi o Movimento do Evangelho Social, no final do século XIX e início do século XX. Um dos seus representantes mais eminentes, Walter Rauschenbusch, acreditava que o reino de Deus proclamado por Jesus podia 4 perfeitamente inspirar uma transformação das instituições americanas. Segundo o que ele e outros pregavam sobre o evangelho social, o reino de Deus comportava dois aspectos complementares. Por um lado, o reino de Deus pairava como juiz sobre o pecado social e as forças sobre-humanas opressivas, especialmente as das instituições econômicas capitalistas que criavam injustiças cada vez maiores. Por outro, o reino podia estimular o povo americano a concretizar uma ordem político-econômica justa, a potencializar a sociedade para pôr as suas instituições econômicas e políticas a serviço da realização do reino de Deus. Apoiando-se na mudança social gerada pelo New Deal, o movimento dos direitos civis reconduziu a herança bíblica ao seu lugar de honra no cenário público. O Direito Cristão (Christian Right) também reacendeu outra chama da herança bíblica em seu esforço de tornar os americanos um povo não apenas bíblico, mas cristão. Afora isso, o elemento bíblico na identidade americana parece ter diminuído, com algumas exceções notáveis. O fato de a publicação de livros sobre Jesus ter alcançado níveis de uma “indústria em crescimento” na década de 1990, e redes de TV, aberta e satélite, transmitirem documentários especiais sobre Jesus sugere que ele está vivo na cultura geral, e não apenas nas igrejas. Jesus vende — e ajuda a vender — produtos para os patrocinadores desses programas. Em outro traço importante da sua identidade, os americanos passaram a ver-se como a nova Roma. Além de conceber a Constituição como uma nova aliança, os “pais” fundadores consideravam-se instituidores de uma República à imitação da antiga Roma. Instituíram um Senado como componente legislativo de governo. A própria disposição do espaço cívico e os grandes prédios da capital nacional em Washington, D.C., e muitas assembléias estaduais são testemunhos incontestes da conformação da nova República Americana sobre o modelo da antiga Roma. Ao cultivar a “virtude republicana”, a busca do bem da sociedade como um todo, os líderes políticos da nova nação pretendiam ansiosamente evitar os erros dos antigos romanos. A antiga democracia fracassara ao permitir o declínio da virtude pública e o crescimento dos interesses egoístas, uma vez que os patrícios romanos perseguiam 5 esses interesses acima dos interesses da República. Parece algo totalmente diferente da identidade originária dos americanos — um povo bíblico praticando a virtude republicana romana — o fato de os Estados Unidos terem se tornado recentemente a única superpotência remanescente. Depois do ataque a Pearl Harbor, os Estados Unidos terminaram dramaticamente o seu longo isolamento com relação aos problemas mundiais, entrando e ajudando a vencer a II 6 Guerra Mundial. Depois, em sua determinação de proteger a herança do “Mundo Livre” do que percebiam como projetos imperiais do Comunismo Soviético — e para tornar o mundo seguro para o sistema capitalista — os Estados Unidos construíram sistematicamente o que, retrospectivamente, só se pode chamar de seu próprio 6 império. A relutância dos americanos com relação ao seu império tornou-se mais evidente, sem dúvida, nas manifestações contra a guerra do Vietnã, que dividiu seriamente o país. Entretanto, o presidente Reagan imediatamente promoveu a reabilitação dos americanos com uma escalada e incursões militares sem precedentes em Granada e no Panamá. Com o colapso econômico da União Soviética, muitos americanos proclamaram orgulhosamente que os Estados Unidos haviam “vencido” a Guerra Fria. O país emergiu como a única superpotência remanescente no mundo. Quando o “estado fora-da-lei”, o Iraque de Saddam Hussein, desafiou os interesses americanos no Oriente Médio, o presidente George Bush (pai) desencadeou uma ação militar com toda a sua superioridade tecnológica na Tempestade do Deserto. “Vencida” mais uma guerra, o presidente Bush anunciou o estabelecimento de uma “Nova Ordem Mundial”, com o exército americano exercendo a função de força policial do mundo. Finalmente, sob outro presidente George (W.) Bush, o governo americano deu sinais claros de que não mais acataria os acordos internacionais firmados e agiria unilateralmente. Afinal, os Estados Unidos eram a única superpotência. Depois de 11 de setembro de 2001, porém (e conforme o chavão do momento), “o mundo jamais será o mesmo”. Os americanos experimentaram um brusco despertar para uma nova desordem mundial. Além do horror e indignação pela morte de milhares de pessoas, estivemos lamentando intensamente nossas perdas e nos tornamos profundamente angustiados com relação à nossa vulnerabilidade. Milhares de americanos ajudaram a resgatar vítimas dos escombros. Milhões contribuíram doando sangue para os feridos ou dinheiro para as famílias dos atingidos. Novos heróis americanos nasceram entre os policiais e bombeiros de Nova Iorque. Mais impressionante talvez tenha sido a maré generalizada de patriotismo: a profusa exposição de bandeiras americanas e a onda de sentimento civil religioso no canto dos hinos nacionais “America, the Beautiful” e “God Bless America”. Subjacente a tudo isso estava a sensação desconfortável de vulnerabilidade despertada pelos ataques terroristas, uma sensação de que a nova ordem mundial era também uma nova desordem mundial. Muitos americanos também começaram a se perguntar: “Por que os outros povos nos odeiam tanto?” Esse questionamento levou à dolorosa constatação de que não apenas árabes/muçulmanos, mas também membros de muitas outras etnias/religiões se fazem uma pergunta semelhante há muito tempo: Por que os americanos nos odeiam tanto? Os Estados Unidos mataram centenas de milhares de civis nos bombardeios de Badgá durante a Tempestade no Deserto. Os Estados Unidos causaram a morte de meio milhão de recém-nascidos e crianças em conseqüência das sanções impostas ao Iraque, negando-lhes o acesso aos remédios necessários e a cuidados de saúde adequados. Os Estados Unidos, um país pretensamente cristão, violam o solo sagrado do islã aquartelando forças militares na Arábia Saudita, forças que também apóiam o impopular regime saudita, opressor do próprio povo. E, dizem 7 os muçulmanos e outros árabes, os Estados Unidos tomam o partido de Israel na opressão aos palestinos. Antes de tudo isso, os Estados Unidos lançaram napalm e bombas de combate sobre o povo vietnamita e treinaram exércitos latino-americanos que oprimiram e muitas vezes massacraram seus próprios concidadãos. De modo geral, os Estados Unidos consomem porcentagem enorme dos recursos naturais do mundo, incluindo combustíveis fósseis para SUVs (veículos utilitários esportivos), e depois se recusam a assinar o tratado de Quioto, que visa a diminuir o aquecimento global que ameaça a vida no planeta. Agora o capitalismo global, que não se identifica com os Estados Unidos, mas neles se centra, controla efetivamente a economia de quase todos os países do mundo, para desgraça de muitos povos. Mesmo que se acredite que o verdadeiro poder controlador do mundo seja atualmente o capitalismo global, tudo indica que no século XX os Estados Unidos se tornaram os herdeiros do império mundial e agora, como a única superpotência remanescente, postam-se de fato no ápice de uma nova ordem internacional. Muitos americanos, porém, começam a sentir uma aguda discrepância entre os elementos mais importantes da sua identidade histórica e as realidades da sua atual posição no mundo. Os Estados Unidos teriam uma enorme dificuldade em convencer o mundo de que ainda praticam a virtude republicana. Levando em consideração o comportamento dos Estados Unidos no mundo, seria extremamente difícil para os americanos pretender ainda ser um povo bíblico, defendendo a liberdade e a justiça da aliança como valores e compromissos essenciais. Com efeito, muitos americanos não conseguem evitar a sensação incômoda de que agora se assemelham mais à Roma imperial do que ao antigo povo do Oriente Médio que celebrava as suas origens na libertação efetuada por Deus da dura servidão a um governante estrangeiro e vivia de acordo com os princípios da justiça socioeconômica. A posição imperial americana na nova (des)ordem mundial pode ser especialmente inusitada para os americanos que refletem sobre as origens cristãs, pois Jesus de Nazaré cumpriu sua missão precisamente entre um antigo povo do Oriente Médio, que fora subjugado pelo Império Romano. SEPARAÇÃO DA RELIGIÃO E DOMESTICAÇÃO DE JESUS Para a maioria, sem dúvida, isto talvez não constitua problema nenhum, dadas as representações padronizadas de Jesus. Afinal, na famosa orientação de “dar a César o que é de César”, Jesus declarou que o império devia receber o que lhe cabia de direito. E em “amai os vossos inimigos”, em geral se entende que Jesus queria dizer que os “judeus” deviam amar, certamente sem resistir, os soldados romanos que os atormentavam com violências. O Jesus que condescende com o império, porém, está radicado num Jesus que foi reduzido a uma mera figura religiosa. Sendo o império, por definição, um ente político, um Jesus meramente religioso deixa de ter para ele qualquer relevância e implicação. Além disso, os contextos em que Jesus operava, tanto na antiga Palestina como no Império Romano em geral, são igualmente despolitizados, pois com Jesus ocupamo-nos apenas com uma figura que está na origem de uma religião a partir de outra, o surgimento do cristianismo a partir do judaísmo. 8 Desde 11 de setembro de 2001, porém, não temos mais condições de ficar sossegados com essas representações domesticadas de Jesus. Não podemos mais ignorar o impacto do imperialismo ocidental sobre povos subordinados e sobre as formas de reação de povos que sentem suas vidas invadidas. A analogia histórica “coincidente” é muito inquietante, isto é, que o Império Romano viera para controlar o antigo Oriente Médio, incluindo a Galiléia e a Judéia, onde Jesus operava. Passamos a reconhecer que o antigo povo palestino reagiu ao domínio romano numa longa série de protestos e movimentos. É difícil continuar imaginando que Jesus tenha sido o único personagem imune à submissão do seu povo à ordem imperial romana. Se outro não há, talvez o simples fato de que ele foi crucificado, uma forma de execução que os romanos adotavam para intimidar os rebeldes nas províncias, deve levar-nos a reavaliar a situação. Um Jesus despolitizado Podemos identificar pelo menos quatro fatores inter-relacionados, de suma importância, nesta construção de um Jesus despolitizado — mais recentemente sob a 7 aparência de um mestre de sabedoria. 1. Mais determinante é o pressuposto ocidental moderno de que a religião está separada da política e da economia. As sociedades ocidentais institucionalizaram esta divisão da realidade não apenas na separação da Igreja do Estado e da economia capitalista, mas também na divisão acadêmica do trabalho. Faculdades e universidades têm departamentos distintos de religião, ciência política, economia etc. A educação nos cursos de pós-graduação e de preparação profissional continua em escolas separadas de teologia, administração política e negócios. Projetamos então o pressuposto ocidental moderno de que a religião está separada da política e da economia nas sociedades antigas. Presumindo que Jesus está adequadamente categorizado como figura religiosa, até certo ponto ignoramos os aspectos político- econômicos e as implicações da pregação e da prática de Jesus. 2. Ao pressuposto da religião como esfera separada associa-se estritamente o individualismo ocidental moderno. O individualismo é um desenvolvimento social relativamente recente e peculiar, característico das sociedades ocidentais modernas, especialmente forte nos Estados Unidos. Novamente projetando um pressuposto ocidental moderno na sociedade antiga, pensamos em Jesus como uma figura individual independente das relações sociais em que estava inserido. E pensamos em Jesus relacionando-se principalmente com outros indivíduos, não com grupos sociais e instituições políticas. 3. Outro fator importante na despolitização de Jesus é a orientação científica dos seus intérpretes acadêmicos. Captando sinais da cultura acadêmica dominante, os pesquisadores bíblicos se sentem forçados a ser científicos em seus critérios e procedimentos de pesquisa e interpretação de Jesus. “Dados” dos Evangelhos precisam ser isolados, analisados e postos sob rigoroso controle para então ser usados 8 na reconstrução histórica. Somente os dados que passam no teste da razoabilidade/racionalidade moderna podem ser aproveitados. Depois de reduzir os Evangelhos a fragmentos religiosos dirigidos a indivíduos e de passá-los pelo crivo 9 científico, eliminamos os resíduos de tudo que seja milagroso, mítico ou fantástico e deixamos as pepitas puras de ditos e parábolas reificados que podemos testar para comprovar a sua “autenticidade”. Indiscutivelmente, esses três fatores reduzem Jesus a um mestre religioso que proferia sentenças e parábolas isoladas relevantes apenas para pessoas em sua individualidade. 4. Alguns intérpretes recentes de Jesus despolitizaram-no ainda mais, eliminando do “banco de dados” das suas palavras “autênticas” tudo o que implicasse juízos embaraçosos. Eles sustentam que João Batista, o mentor de Jesus, era um profeta apocalíptico que proclamava o juízo, e que os discípulos de Jesus, logo depois da sua morte, o interpretaram como uma figura apocalíptica, o Filho do Homem, vindo para julgar. O próprio Jesus, dizem eles, não pregou o juízo. As expressões proféticas de condenação são produtos posteriores dos seguidores de Jesus, que ficaram ressentidos por fracassarem e serem perseguidos. Assim, o próprio Jesus não era um profeta, mas um mestre de sabedoria, como os filósofos cínicos errantes nas cidades da Grécia, ensinando um modo de vida alternativo, como o dos hippies modernos, a um bando de nulidades sem raízes. Seja qual for a credibilidade deste quadro como reconstrução histórica, ele mostra um instrutor individual despolitizado pronunciando aforismos isolados que pertencem apenas a um estilo de vida contracultural individual fora de qualquer contexto político-econômico particular e sem implicações políticas. É difícil compreender por que o governador romano, Pôncio Pilatos, se incomodaria em crucificar uma figura como essa. Os pressupostos e procedimentos que levam a um quadro de Jesus assim, porém, são indefensáveis na pesquisa e reconstrução históricas. 1. É simplesmente impossível separar a dimensão religiosa da vida político- econômica nas sociedades tradicionais. Se os americanos não tinham consciência disso antes de 11 de setembro de 2001, estão cientes hoje de que, na maioria dos países do Oriente Médio, é extremamente difícil separar a fé e a prática muçulmanas das questões políticas e econômicas e da vida social em geral. A julgar pelo extravasamento de patriotismo de feições religiosas ocorrido depois dos ataques terroristas, também nos Estados Unidos é difícil dizer onde termina a religião civil americana e onde começa o processo político estadunidense e a sua economia de consumo. 2. O individualismo é uma ideologia ocidental, evidente de modo especial nos Estados Unidos, mas em grande parte é uma ficção operacional. Novamente, como reconhecemos depois de 11 de setembro de 2001, se não antes, é impossível separar identidade, crenças e comportamento individuais da rede de relações e de instituições nas quais as pessoas estão inseridas. Identidades são sempre complexas e híbridas. As vidas das pessoas estão sempre entretecidas numa rede de formas e instituições sociais. Como insistem as pensadoras feministas, as próprias relações maritais e sexuais são políticas. As pessoas estão sempre já envolvidas em relações de poder complexas. 3. Os procedimentos adotados pelos pesquisadores para criar um “banco de dados” que sirva de base para construir um quadro de Jesus são especialmente problemáticos como método histórico. As pessoas não se comunicam com frases isoladas. A maioria 10

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