PHILOSOPHICA n.° 12, Novembro de 1998 ÍNDICE EDITORIAL DIREITOS HUMANOS E FILOSOFIA Joaquim Cerqueira Gonçalves 3 ARTIGOS A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM (LUZES E SOMBRAS DA SUA RECEPÇÃO EM PORTUGAL, EM 1948) Norberto Ferreira da Cunha 7 ÉTICA E DIREITOS HUMANOS Carlos Morujão 37 NOVA RETÓRICA E RECONSTRUÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS Hermenegildo Ferreira Borges 53 IDENTIDADE PESSOAL. NOTAS PARA UMA REDEFINIÇÃO DO CONCEITO DE PESSOA SEGUNDO O PENSAMENTO DE RICOEUR Carlos João Correia 75 O DOENTE PSIQUIÁTRICO COMO PESSOA MORAL: ENTRE O DIREITO À SAÚDE E O DIREITO À AUTONOMIA Cristina Beckert 89 KANT E O SUPOSTO DIREITO DE MENTIR POR FILANTROPIA Aylton Barbieri Durão 97 A CIÊNCIA NA EDUCAÇÃO SEGUNDO JOHN DEWEY Pedro Galvão 129 O HOMEM VERDADEIRO E A MÁQUINA DE TERRA: SOBRE O PROBLEMA MENTE/CORPO E O TEMA DA CONSCIÊNCIA NO PENSAMENTO DE DESCARTES Pedro M. S.Alves 145 • EDITORIAL DIREITOS HUMANOS E FILOSOFIA Estamos a celebrar, neste ano de 1998, o 50.° Aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. A filosofia não pode ficar indiferente a tão importante referência histórica, sendo múltiplas e imperiosas as razões de a comemorannos em Philosophica. A tradição filosófica ocidental consigna, em larga escala, mode los e linguagem de inspiração jurídica. Mais do que os modelos e a linguagem, aproximam o direito e a filosofia os desígnios fundamen tais de ambos: a dignificação da vida humana, mensagem que, hoje, também se pretende estender ao desenvolvimento e à defesa da reali dade do próprio universo. As afinidades entre filosofia e direito são visíveis desde a chamada aurora da cultura ocidental - na cidade grega e no império romano. No entanto, o espaço e o modo do exercício da filosofia não costumam ser registados entre os factores militantes a favor da promoção da dignida de humana e, talvez menos ainda, da sua defesa. Por outro lado, se alguns filósofos merecem o nobre rótulo de mártires da dignidade huma na, para muitos outros - "nem todos são heróis" - essa missão é-lhes indiferente, não obstante, tantas vezes, os amigos da filosofia deverem a salvaguarda de aspectos fundamentais da sua liberdade de homens e de profissionais a escudos jurídicos. Os filósofos não podem contentar-se com os resíduos jurídicos que persistem - por vezes contra a vontade dos puristas da filosofia - na sua especulação. Eles têm de dispensar particular atenção à produ- Philosophiea 12, Lisboa, 1998, pp. 3-5 4 Direitos Humanos e Filosofia ção jurídica que, ao menos na cultura ocidental, é uma referência insubstituível da sociedade, precisamente em ordem à promoção e defesa da dignidade humana. Se existir, na especulação filosófica, tal preocupação, filósofos e juristas serão concomitantemente conduzidos para outro plano, o das instâncias de fundamentação da própria dignidade humana, as quais não são redutíveis a cânones de ordem jurídica. Cada vez mais o direito se defronta com a. questão dos seus fundamentos, tarefa que coloca, frequentemente, nas mãos da filosofia - filosofia do direito; cada vez mais também os fundamentos da digni dade humana solicitam um esclarecimento de índole filosófica. Mas a consciência das afinidades entre o direito e a filosofia deve ser acompanhada das reservas desta perante o eixo do seu encontro com o direito. Deve reconhecer-se que foram as exigências de vida na cidade - Atenas — e no Império - romano - que provocaram, em gran de parte, o desenvolvimento da filosofia e do direito que ainda hoje cultivamos. Significa esse facto que a filosofia e o direito ocidentais se colocaram ao nível da cidadania, aliás circunscrita às suas formas gregas e latinas, bem como a todas as outras que daí germinaram. Mas se a filosofia quiser manter a fidelidade à sua exigência da radicalidade, terá. de se deslocar do nível da cidadania — e do direito —, para se enraizar nos sedimentos radicais da realidade e do ser humano, o que, a suceder, aprofundará o próprio campo do direito. A filosofia não pode permitir que o ser humano seja reduzido à sua con dição de cidadão, menos ainda a um perfil específico deste - o cida dão grego, romano ou europeu. E por isso que o exercício de radicalização intrínseco à racionali dade filosófica terá de se concretizar, muitas vezes, no processo de superação dos enquadramentos jurídicos que informam a cultura oci dental, representando esta operação o próprio encontro da filosofia com a dinâmica da sua intencionalidade. A maior dificuldade de radicalizar a filosofia reside, porventura, no facto de esta se haver transformado num saber disciplinar, ocupan do um lugar nas escolas - que é circunscrição de cidadania, portanto da política e do direito -, ao lado de outros. No campo dos direitos humanos, a filosofia tem hoje um insubsti tuível papel a desempenhar: o de contribuir para a universalização deles. Trata-se duma missão especulativa e social particularmente espinhosa, mas que testará a própria legitimidade de a filosofia exer cer o seu próprio direito de existir. Direitos Humanos e Filosofia 5 Com efeito, para universalizar os direitos humanos, a filosofia tem de se universalizar a si própria, enraizando a universalidade do seu saber no solo da essencialidade, não apenas na do ser humano mas na de toda a realidade. Em termos concretos, isso significa que os filóso fos terão de ler, além dos textos filosóficos do Ocidente, os textos das outras culturas e promover todos os textos em que as possibilidades da realidade manifestem o seu sentido. Uma militância filosófica em prol dos direitos humanos? Decerto, sem que tenha de ser uma filosofia específica, a dos direitos humanos, bastando que seja a própria militância do exercício da razão filosófica. 1998 - Cinquentenário da Declaração Universal dos Direitos Humanos - Momento ímpar de interpelaçâo-teste sobre o grau de uni versalidade e de eficácia da filosofia. Joaquim Cerqueira Gonçalves ARTIGOS A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM (LUZES E SOMBRAS DA SUA RECEPÇÃO EM PORTUGAL, EM 1948) Norberto Ferreira da Cunha Universidade do Minho 1. Os Direitos do Homem no regime salazarista O regime sob o qual fomos governados de 1926 a 1974 (chamemos-lhe "Ditadura" ou "democracia orgânica", como sucessivamente a denominaram os seus próceres, para o caso presente é secundário) foi pródigo em atropelos e violações aos chamados "Direitos do Homem" tal como os fixou e aprovou a Declaração da Assembleia Gerai da Organização das Nações Unidas em 10 de Dezembro de 1948. Oliveira Salazar, então Presidente do Conselho de Ministros do Governo, disse - e mais de uma vez o repetiu - que esses des vios e injustiças não eram, felizmente, numerosos nem, excessivamente, gra ves, decorrendo não dos princípios que alicerçavam o regime mas do excesso de zelo (deplorável ainda que compreensível) dos seus funcionários, das con tingências da acção e da imperfeição das instituições; atitudes e circunstân cias susceptíveis de revisisão e rectificação1. Esta repugnância de Salazar pela violência já a manifestara a António Ferro, em Dezembro de 1932. Reconhecendo, embora, que o recurso a ela podia, por vezes, acelerar uma solução política, era da opinião que, em geral, mais a atrasava do que adian tava, podendo mesmo gerar efeitos opostos; além de ser contrária à nossa índole e aos nossos hábitos2; por isso - ao contrário do fascismo - não a pre- 1 António de Oliveira SALAZAR, "Votar é um grande dever" (7 de Outubro de 1945, numa das salas da biblioteca da Assembleia Nacional), in Discursos e notas políticas, IV, 1943¬ -1950. Coimbra, Coimbra Editora. Lda, 1951, p. 173. 2 Apud António FERRO, Salazar. O homem e a soa obra (1933), Lisboa, Fernando Pereira- -Editor, s.d.,p. 115. Philosopliica 12, Lisboa, 1998, pp. 7-35 8 Norberto Ferreira da Cunha conizava entre nós. Era, no entanto, da opinião que a maioria dos presos políticos eram "criaturas sinistras" e que os abusos tinham de ser, firmemen te, atalhados e reprimidos1. Repressão que - do seu ponto de vista - decresce ra com a consolidação da Ditadura, pois, em 18 de Maio de 1945, afirmava que em Portugal se gozava, então, de "mais liberdades que anteriormente" e que se um regime democrático se media pelas liberdades concedidas, certa mente o nosso fazia inveja a muitos que se reclamavam como tais. O que não era verdade, pese embora o número de prisões ter diminuído, entre 1936 e 19454. Efectivamente - como lembra Manuel Braga da Cruz - "o Estado de Direito (salazarista) foi dando lugar a um Estado de polícia em que, a pre texto de prevenir o abuso, se limitou o uso. A juridicidade foi dando lugar à arbitrariedade administrativa, o direito à força policial. A legislação ordinária de regulamentação do exercício das liberdades limitá-las-ia de tal maneira que o regime preventivo policial criado para as controlar as viria a suprimir, em grande medida. Foi o que aconteceu, em especial com os direitos de expressão, de reunião e associação, bem como com as garantias judiciais, coarctadas pela existência da censura e da policia política"^, enfim, "o Estado de Direito pretendido teórica e constitucionalmente pelo salazarismo acaba ria, na prática administrativa e governativa do regime, por se transformar num Estado policiai e numa ditadura constitucionalizada"6; mesmo no perío do da sua maior abertura política e num dos períodos de maior actividade legal e organizada da Oposição, ou seja, de í 945 ao primeiro trimestre de 1949. 1.1. Dos princípios às práticas do Estado Novo Segundo Salazar, em conformidade, aliás, com o tradicionalismo políti co e a doutrina moral e social da Igreja, "nenhum povo, verdadeiramente, civilizado pode deixar de garantir nas leis e na realidade os direitos funda mentais da pessoa humana"7. Mas um equívoco - em sua opinião - girava à 3 Ibidem, pp. 118-19. 4 Entre 1936 e 1939, o regime efectuou 9.575 prisões contra 4.952, entre 1940 e 1945, conforme os dados apresentados pela Comissão do Livro Negro sobre o Fascismo (tn Presos Políticos no regime fascista, II, 1936-1939, Lisboa, 1982; IDEM, Presos Políticos no regime fascista, III, 1940-1945, Lisboa, 1984). 5 In "Salá22r e a Política", AA.VV., Salazar e o salazarismo, Lisboa, Publicações D. Quixote. 1989, p. 66; IDEM, "Notas para uma caracterização política do salazarismo", in Análise Social, vol. XVIII (72-73-74), 1982, 3.", 4.0c5.°, pp. 779-80. 6 Ibidem. 7 Oliveira SALAZAR, "Ideias falsas e palavras vãs" (na reunião das comissões dirigentes da União Nacional, realizada numa sala da Biblioteca da Assembleia Nacional, em 23 de Fevereiro de 1946), in Discursos e notas políticas, IV, 1943-1950. Coimbra, Coimbra Editora. Lda, 1951, p. 204. Sobre os problemas da distinção salazarista entre "indivíduo" e "pessoa", veja-se Anto- A Declaração Universal dos Direitos do Homem 9 volta deles: ter-se como uma "verdade axiomática" a sua associação à liber dade, à democracia e ao parlamentarismo (também reivindicados pela Oposi ção portuguesa), como se - e cito Salazar, de novo - "o grau e efectividade das liberdades individuais dependessem, essencialmente, de determinada forma de organização do poder"8. O que, para Salazar, estava longe de ser verdade, tanto na doutrina como na prática, pois não só os regimes políticos não se equivaliam como nem sempre o mais perfeito na teoria o era nas con tingências da prática9. Para Salazar, o respeito, de princípio e de facto, pelos direitos da pessoa humana (que, como disse, expressamente, em 1932, nada tinham que ver com os chamados Direitos do Homem10) não passava, necessariamente, pela liberdade (a liberdade dos liberais e dos republicanos, saída da Revolução Francesa de 1789). Em sua opinião, esta liberdade individualista (alegada mente incondicionada e categórica) era "uma expressão de retórica, uma simples imagem literária", existencialmente incompatível com a autoridade", da quaí derivava a ordem, condicionadora e impeditiva daquela liberdade se converter em licença ou anarquia12. O direito à liberdade defendido por Sala zar era, pois, o direito à liberdade possível dentro da autoridade necessária13, identificada por Salazar com o Governo, guardião do bem comum e dos direitos fundamentais da pessoa humana, cujo imperativo levará João Antu nes Varela a defender que o salazarismo não ignorou os direitos fundamen tais do homem14. Subordinação que não implicava, em princípio, o recurso à arbitrariedade. Como demonstrou Gadamer, a autoridade não é, necessaria mente, um preconceito ilegítimo e injustificado; se há autoridade contrária à nio José de BRITO, "O pensamento político de Salazar/Breves apontamentos", in AA. VV., Salazar sem máscaras, Lisboa, Nova Arrancada, Sociedade Editora SA, 1998, pp. 17-21. * Ibidem,?. 205. 9 Ibidem; idem, "Relevância do factor político e a solução portuguesa" (na sessão inaugural da I Conferência da União Nacional, em 9 de Novembro de 1946, realizada no Liceu D. Filipa de Lencastre), in o/>. cif., p. 261. 10 Apud António FERRO, Salazar. O homem e a sua obra (1933), Lisboa, Fernando Pereira- -Editor, s.d., p. 167. 11 Ibidem, pp. 96-97. 12 Oliveira SALAZAR, "No fim da campanha"(paiavras radiodi fundi das em 11 de Fevereiro de 1949, ao encerrar-se o período de campanha eleitoral), in Discursos e notas políticas, IV, 1943-1950. Coimbra, Coimbra Editora. Lda, 1951, p. 392. Veja-se António José de BRITO, op. a'/., pp. 18-19 13 IDEM, "Ideias falsas e palavras vãs" (na reunião das comissões dirigentes da União nacional, realizada numa sala da Biblioteca da Assembleia Nacional, em 23 de Fevereiro de 1946), in Discursos e notas políticas, IV, 1943-1950. Coimbra, Coimbra Editora. Lda, 1951, p. 205. 14 Veja-se o depoimento deste antigo ministro da Justiça de Salazar cm Jaime Nogueira PINTO, (org.), Salazar visto pelos seus próximos (1946-68), Lisboa, Bertrand Editora, Venda Nova, 1993, pp. 114-115. 10 ¡Sorberlo Ferreira da Cunha razão e à liberdade, também há autoridade que se compagina, harmoniosa mente, com elas, quando essa autoridade é fonte de conhecimento (fonte de verdades) e quando tem como seu fundamento último um acto racional e livre de reconhecimento (reconhece-se que o outro - um especialista, um economista, etc. - está acima de nós em juízo e perspectiva sobre certos pro blemas e, consequentemente, que o seu juízo é preferível ao nosso)15. Por tanto, a autoridade não reclama, necessariamente, obediência cega nem proí be pensar; a sua essência não é, pois, a irracionalidade mas um imperativo da razão que admite no outro um conhecimento superior ao nosso16. Ora é desta constatação - que nem toda a autoridade é uma violência arbitrária e de que a autoridade, além de legítima, é necessária e desejável - que Salazar tira quer o imperativo da ordem quer a sua recusa da identificação da autoridade com a "obediência cega" e a abdicação da razão17. Deste ponto de vista, a autorida de não é, necessariamente, inerte e negativa18; embora essencialmente con servadora enquanto acto racional, a autoridade está presente em todos os momentos históricos - como a transformação e a inovação19. Poderá parecer que Salazar ao dizer a António Ferro, em 13 de Novembro de 1945, que teríamos, alguns dias depois, eleições "tão livres como na livre Inglaterra" alterou a sua opinião relativamente ao peso relativo daqueles princípios, tal como os valorizou em 1932 e em 194620. Não é verdade. Aceitar "eleições livres" não significava que Salazar as apreciasse e, muito menos, que as jul gasse a solução mais adequada para resolver os problemas nacionais. As cir cunstâncias impunham-lhe "eleições livres", que o mesmo é dizer, político- -partidárias. Mas abominava essa solução política, quer porque a Revolução do 28 de Maio de 1926 se fizera contra os Governos de partido quer porque assentava numa filosofia política onde as ideias abstractas tinham precedên cia sobre as realidades concretas, onde o indivíduo (e os seus alegados direi tos inalienáveis) se antepunha à sociedade. Ora, para Salazar, a práxis política não se esgotava na razão; já desde 1916 advertia para os perigos duma exces siva confiança nas ideias abstractas, como se fossem omnipotentes ou delas 15 Hans GADAMER, Verdad y método, I: Fundamentos de una hermenéutica filosófica, 5.a ed., trad, de Ana Aug Aparicio e Rafael Agapito, Salamanca, Ediciones Sigúeme, 1993, pp. 346-49. 16 IDEM, "La verdad en las ciencias del espíritu" (1953), in Verdad y Método, II, trad, de Manuel Olasagasti, Salamanca, Ediciones Sigúeme, 1992, p. 45. Veja-se a este propósito Georgia WARNKE, "Legitimate prejudices", Laval Théoiogique et Philosophique (Québec), vol. 53(1), 1997, pp. 89-102. 17 IDEM, Verdad y método, /..., pp. 347-48. 18 Ibidem, pp. 341 ess. i? íbüknhp- 349. 20 Apud Antonio FERRO, Solazar. O homem e a sua obra (1933), Lisboa, Femando Pereira- -Editor, s.d., p. 97.
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