revista portuguesa de arqueologia vol. 16 2013 1 Índice 05–26 Teorías y métodos de la arqueología cognitiva Ángel Rivera Arrizabalaga 27–61 O sítio do Neolítico Antigo de Cortiçóis (Almeirim, Santarém) João Luís Cardoso, António Faustino Carvalho & Juan Francisco Gibaja Bao 63–79 Perscrutando espólios antigos: a anta de Sobreira 1 (Elvas) Rui Boaventura, Maria Teresa Ferreira & Ana Maria Silva 81–101 Entre mortos e vivos: nótulas acerca da cronologia absoluta do Megalitismo do Sul de Portugal Rui Boaventura & Rui Mataloto 103–131 Zambujal (Torres Vedras, Lisboa): relatório sobre as escavações de 2002 Michael Kunst, Elena Morán & Rui Parreira 133–135 Magnetic prospecting at Zambujal in 2001: a test for archaeological prospection Helmut Becker 137–141 Some notes on a small collection of faunal remains from Zambujal Simon Davis 143–147 Datações 14C do Casal do Zambujal Jochen Görsdorf 149–165 A Idade do Ferro no concelho da Amadora Elisa de Sousa 167–185 Ocupação sidérica na área envolvente do teatro romano de Lisboa: o Pátio do Aljube Lídia Fernandes, João Pimenta, Marco Calado & Victor Filipe 187–212 Crónica de onomástica paleo-hispânica (20) António Marques de Faria 213–226 A fauna da Idade do Ferro e da Época Romana de Monte Molião (Lagos, Algarve): continuidades e rupturas na dieta alimentar Cleia Detry & Ana Margarida Arruda 227–242 La emisión RRC 469 de Cneo Pompeyo hijo Luis Amela Valverde 243–275 Uma necrópole na praia: o cemitério romano do Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros (Lisboa) Jacinta Bugalhão, Ana Margarida Arruda, Elisa de Sousa & Cidália Duarte 277–292 As lucernas do Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros, Lisboa Carolina Grilo 293–302 Apostilas epigráficas – 3 José d’Encarnação 303–321 Os mausoléus da villa romana de Pisões: a morte no mundo rural romano Carlos Pereira, António M. Monge Soares & Rui Monge Soares 323–350 A diarquia sueva: sociedade e poder no regnum dos Quados ocidentais e no Regnum Suevorum (358–585 d.C.) José Galazak 351–367 Faiança portuguesa: datação e evolução crono-estilística Tânia Manuel Casimiro 369–381 Fortificação, espaço conventual, saneamento e circulação na Idade Moderna em Almeida (Guarda): resultados de intervenções arqueológicas André Teixeira, Teresa Costa & Luís Serrão Gil 383–392 Os cachimbos cerâmicos do Palácio Marialva Marco Calado, João Pimenta, Lídia Fernandes & António Marques 3 * Portanta, Associação Perscrutando espólios antigos: de Arqueologia Ibérica; Município de Odivelas; UNIARQ - Centro a anta de Sobreira 1 (Elvas) de Arqueologia da UL; CIAS - Centro de Investigação em Antropologia e Saúde da UC. Rui Boaventura* Maria Teresa Ferreira** ** iDryas-GAP lab - Grupo Dryas Ana Maria Silva*** Octopetala; CENCIFOR - Associação Centro de Ciências Forenses; CIAS - Centro de Investigação em Antropologia e Saúde da UC. *** Departamento de Ciências da Vida da FCTUC; CIAS - Centro de Investigação em Antropologia e Saúde da UC. Resumo Os espólios arqueológico e antropológico recolhidos por Nery Delgado na anta de Sobreira 1 em 1895 são alvo de revisão e valorização, demonstrando a utilidade do estudo global de colecções “antigas”. A anta apresenta um número mínimo de seis indivíduos, três adultos e três não-adultos, valor compatível com a quantidade de artefactos ali conhecidos. A datação relativa e absoluta colocam a utilização deste sepulcro entre meados e finais do IV milénio a.n.e. e na transição para o seguinte. Abstract The archaeological and anthropological remains recovered from the dolmen of Sobreira 1 by Nery Delgado in 1895 are the subject of revision and appreciation, demonstrating the usefulness of integrated studies on “old” collections. This dolmen presented a minimum number of six individuals, three adults and three non-adults, compatible with the amount of artefacts known from there. The relative and absolute dating places its use between the middle and the end of the 4th millennium BCE and in transition to the next one. 1 O estudo do espólio Introdução O presente trabalho reavalia o espólio da anta arqueológico e antro- de Sobreira 1 (Elvas, Alentejo), procurando con- pológico da anta de No âmbito do programa anual Mega-Osteo- ciliar algumas das possíveis abordagens para Sobreira 1 foi promo- vido e coordenado por logy, promovido pela Portanta, Associação de um melhor entendimento dos indivíduos ali depo- R. Boaventura, com a Arqueologia Ibérica, e desenvolvido no Museu sitados e o seu enquadramento nas práticas fu- fundamental colabora- Geológico em 2007 e 2008, foi possível pro- nerárias daquelas sociedades agro-pastoris1. ção para o estudo da colecção osteológica ceder à revisão e estudo de várias colecções A anta de Sobreira 1 foi intervencionada du- de M. T. Ferreira e D. arqueológicas, com especial atenção aos restos rante o mês de Junho de 1895 por iniciativa de Boutilier, sob a direc- osteológicos humanos, exumadas de sepulcros Joaquim Filipe Nery Delgado, então Director ção científica de A. M. dos IV e III milénios a.n.e. do Centro e Sul de dos Serviços Geológicos. Provavelmente con- Silva. Portugal. tou com a colaboração de colectores daquela 63 Revista Portuguesa de Arqueologia - volume 16 | 2013 | pp. 63–79 Rui Boaventura | Maria Teresa Ferreira | Ana Maria Silva instituição, pois nesse ano foram desenvolvidas 1976–1977). No entanto, a localização da várias campanhas de prospecção na região anta de Sobreira 1 não parece corresponder de Elvas no âmbito do levantamento geoló- a nenhum dos potenciais sepulcros anotados. gico do território português (Delgado, 1895; Por outro lado, a informação constante naque- Carneiro, 2001, 2005; Leitão, 2004). O espó- les apontamentos não teve a atenção devida lio exumado foi posteriormente depositado no nas décadas seguintes, pois muitas das antas actual Museu Geológico, hoje com o código de listadas foram posteriormente inventariadas sítio MG1762. Alguns dos artefactos estudados ad novo por outros autores, ainda que conhe- apresentavam ainda coladas as etiquetas ori- cedores das referidas listas, nomeadamente ginais, assim como, associadas ao espólio oste- por António Dias de Deus e Abel Viana (Deus ológico, havia etiquetas de cartão (já não as & Viana, 1953; Viana, 1950; Viana & Deus, originais porque dactilografadas), referindo 1952, 19553, 1957) e pelo casal Leisner “11-6-95 // Dolmen de Vila Fernando // 1 km. (1959). a N.-64º-O. do Monte // S. Romão”. Apesar da limitada repercussão dos trabalhos O apontamento de N. Delgado (1895) também e registos oitocentistas, a intervenção na anta datado de Junho de 1895, à semelhança do de Sobreira 1 não terá passado desaperce- espólio, é relativamente detalhado acerca do bida à população local, pois na década de tipo de espólio recolhido: 1930 ainda se mantinha uma vaga memória “Dólmen arrazado a 1 Kil. a N64ºO do monte da acção, “realizada pelos engenheiros portu- de S. Romão. Ali encontraram-se 3 facas de sílex, gueses que trabalharam nas edificações da Coló- 1 [setta], 8 ou 9 machados de pedra, 1 goiva, nia de Vila Fernando”, referindo-se a existência 3 tijelas de barro negro, 3 calotes cranianas hu- de “esqueletos colocados verticalmente”, tendo manos, e fragmentos de [ilegível]. O dolmen es- alguns materiais sido enviados para Lisboa. tava de [certo] modo destruído, sem [ilegível] as Isto é mencionado e confirmado por A. Viana pedras q. o formavam, e q. estavam tombadas (1950, p. 295) e A. D. Deus (Viana & Deus, no solo, como os affloramentos da camada de 1952, 1955). calcários para ali abrirem um pedreira!” Inicialmente, A. D. Deus e António Luís Agostinho, Ainda naquele apontamento, N. Delgado co- ambos funcionários da Colónia Penal de Vila meçava por referir a existência, hoje perdida, Fernando, desenvolveram entre 1934 e 1941 de outro sepulcro, todavia já esvaziado, talvez diversas pesquisas na região de Elvas. Uma uma cista megalítica, mas que não parece cor- dessas acções, encabeçada por A. L. Agostinho, responder a nenhum dos sepulcros mencionados incidiu na anta de Sobreira 1, alvo dos anterio- por autores posteriores: res trabalhos de N. Delgado. Certamente por “A 250m a N83ºO do monte de Villa Fernando isso, os parcos resultados limitaram-se à recolha [ou Conceição] veêm-se ainda os restos de uma de restos ósseos (Viana, 1950; Viana & Deus, sepultura prehistorica, ou protohistorica, forma- 1952 e1955), hoje sem paradeiro conhecido. 2 A anta de Sobreira da de lajes enterradas verticalmente no solo, e Posteriormente, entre 1941 e 1955, A. D. Deus 1 não tem ainda Código Nacional de formando um espaço rectangular alargado. Di- desenvolveu novas pesquisas nas antas de Elvas Sítio (CNS) na base de zem q. se encontrou ali um esqueleto, mas ha mto. e concelhos limítrofes, entretanto relatadas a A. dados do património tempo q. está abandonada; desde o começo das Viana (1950), bem como outras em colabora- arqueológico português, Endovélico. obras da colonia penal de Villa Fernando.” ção com aquele (Deus & Viana, 1953; Viana, Outros manuscritos de Carlos Ribeiro e N. 1956; Viana & Deus, 1952, 1955, 1957). 3 A publicação de Delgado, da segunda metade do século XIX, Os diversos relatos dos escavadores das antas A. Viana e A. D. Deus (1955) é a versão efectuados durante os trabalhos de prospec- vizinhas de Sobreira 1 (Viana, 1950; Deus & em língua portuguesa, ção geológica, nomeadamente das regiões Viana, 1953; Viana, 1952, 1955, 1957; Leis- com mais alguma do Centro e Alto Alentejo, onde Elvas se lo- ner & Leisner, 1959) realçaram a presença, por documentação, de caliza, listavam as coordenadas de algumas vezes abundante, de restos osteológicos huma- um primeiro trabalho publicado em língua dezenas de antas, realçando a atenção dada nos, com certeza resultante do grau de preser- castelhana (Viana àquele tipo de vestígio arqueológico (Neto, vação proporcionado pelo substrato rochoso & Deus, 1952). Revista Portuguesa de Arqueologia - volume 16 | 2013 | pp. 63–79 64 Perscrutando espólios antigos: a anta de Sobreira 1 (Elvas) calcário cristalino. Portanto, não será despicien- juntavam-se ao centro, formando círculo, encos- do recordar alguns desses sepulcros, dos quais tados uns aos outros; os corpos estendiam-se na se registaram relatos pertinentes para a antro- direcção dos esteios, lado a lado. Os cadáveres pologia funerária. foram, pois, arrumados radialmente, mas como o O túmulo ou jazigo de Genemigo, também re- espaço da câmara sepulcral não chegava para ferido como Jeremigo e Joãonimigo (Viana, serem estendidos, encurvaram-nos paralelamente 1950, Leisner & Leisner, 1959), situava-se no uns aos outros. O conjunto apresentava a confi- lado sul do tumulus da anta de Genemigo 3 guração de um suástica de ramos curvos” (Via- (Viana & Deus, 1952, 1955) e, provavelmen- na, 1950, p. 293 e figura 2; Viana & Deus, te, corresponderia a um tholos inserto naquela 1955). mamoa, à semelhança daquelas conhecidas na O jazigo de Alcarapinha, localizado entre área de Reguengos de Monsaraz (Leisner & 40 m e 60 m da anta de Alcarapinha 1 (CNS- Leisner, 1951). Terá sido escavado em 1934 3973; Viana, 1950; Viana & Deus, 1955), por A. L. Agostinho e A. D. Deus e, segundo in- situava-se junto de três sepulturas romanas, formações orais do primeiro escavador ao casal e correspondia a um espaço sem delimitação Leisner, a cerca de 6 m da anta, num espaço de pedras (com cerca de 3,5 m2), assentando de 5 x 3,5 m, a 0,6–0,7 m de profundidade, por no substrato rochoso. Segundo A. L. Agostinho, baixo de camadas de placas de 0,2 a 0,3 m, dentro apresentava sinais de enterramentos foram encontrados diversos ossos humanos e colectivos, encontrando-se a 0,3–0,5 m da su- artefactos (Leisner & Leisner, 1959, p. 54). A. perfície, muitos destruídos, provavelmente pela D. Deus (Viana & Deus, 1955, p. 160), para acção do arado. Esta descrição levou o casal além de referir que a distância entre a anta Leisner a considerá-lo um sepulcro megalítico e o “jazigo” era de apenas 2 m, acrescenta- destruído (Leisner & Leisner, 1959). Entretanto, va tratar-se de 12 esqueletos, dispostos numa A.D. Deus referiu ainda que a camada mais fila paralela ao corredor da anta. Próximo dos profunda daquele espaço “(...) era constituída crânios, cobertos por pequenas camadas de por uma oleosa e rija massa de cinzas e ossos pedras, encontravam-se vasos, contas e ídolos- calcinados, sobre a qual se recolheu diverso es- -placa. Ao fundo da fila existia uma área qua- pólio funerário” (Viana, 1950, p. 294). Na pu- drada de aproximadamente 1 m2, com mais de blicação de 1955 a descrição pormenorizava 100 calhaus redondos, de forma semelhante, a presença de carvões e conchas de moluscos, provavelmente provenientes dos cursos fluviais “variando a espessura de tal camada entre 5 e circundantes. Apesar de A. L. Agostinho referir 10 centímetros” (Viana & Deus, 1955, p. 161). que o material proveniente deste sepulcro esta- A anta da Herdade do Texugo 2 foi escava- ria depositado no hoje Museu Arqueológico de da em 1951 por A. D. Deus e A. Viana (1953). Vila Viçosa e, eventualmente, parte no Museu Na câmara havia uma divisão do conteúdo por Municipal de Elvas, desconhece-se o paradeiro meio de uma camada de pedras pequenas. Na dos restos ósseos, situação que era já referida camada superior encontravam-se dois esquele- pelo casal Leisner (1959). tos, em muito mau estado de preservação, ro- No mesmo ano, A. L. Agostinho e A. D. Deus deados por pequenos fragmentos ósseos. Na escavaram também a anta da Herdade da Al- camada inferior, os 14 crânios detectados en- carapinha 1, muito próxima de Sobreira 1, e contravam-se junto à base dos esteios, o que le- encontrada aparentemente intacta. Mais uma vou os autores a sugerir terem sido depositados vez, as descrições avançadas pelos dois investi- sentados (Deus & Viana, 1953, p. 236). Regis- gadores não são exactamente coincidentes. En- taram ainda uma concentração de restos ósseos quanto A. L. Agostinho refere que os esqueletos numa depressão junto do esteio de cabeceira. se encontravam “sentados” (Leisner & Leisner, A existência actual dos restos osteológicos dos 1959, p. 59), a descrição de A. D. Deus é mais casos descritos poderia esclarecer muitas das pormenorizada: “Dentro estavam sete esque- dúvidas suscitadas nas notícias antigas, bem letos dispostos da seguinte maneira: os crânios como permitir o seu estudo com novas aborda- 65 Revista Portuguesa de Arqueologia - volume 16 | 2013 | pp. 63–79 Rui Boaventura | Maria Teresa Ferreira | Ana Maria Silva gens metodológicas, à semelhança do efectu- com uma desproporcionada carência de mate- Fig. 1 – Anta de ado com a colecção de Sobreira 1. Contudo, rial osteológico, para uma melhor compreensão Sobreira 1 (círculo maior) e os outros ainda que nas notícias anteriores se refira o dos indivíduos daquelas comunidades neolíti- sepulcros megalíticos depósito dos respectivos espólios, sobretudo cas, que os construíram e utilizaram. da região de Elvas, nos Museus de Arqueologia do Paço Ducal de nomeadamente: 18- Anta de Genemigo Vila Viçosa e Municipal de Elvas, a ausência 3 e jazigo; 10- Anta dos restos ósseos humanos naquelas instituições 1. A anta de Sobreira 1 e a sua implantação de Alcarapinha reforça a sensação de que os seus escavadores 1, 11- Jazigo de não terão procedido à sua recolha sistemática A anta de Sobreira 1 localizava-se num dos ca- Alcarapinha; 15- Anta de Texugo e integral e subsequente depósito, tendo va- beços conhecidos ainda hoje por “Alcarapinhas” 2. A numeração lorizado somente o material artefactual. Para (Fig. 1), correspondendo a um relevo destacado corresponde àquela a região alentejana, onde a acidez dos solos de calcários cristalinos da plataforma de Elvas dos mapas originais (Adaptado de G. e V. não permite na maior parte dos casos a pre- (Fig. 2), encontrando-se ameaçada por uma Leisner (1959, Tafel 96 servação de material orgânico, nomeadamente frente de pedreira à data das visitas de N. Del- e 97). osteológico, a recolha daquele material, nor- gado e, ainda na década de 1950, do grupo malmente escasso, teria sido com certeza uma de Vila Fernando e do casal Leisner. Entretanto, importante mais-valia. Afinal, apesar dos mi- na década de 1990 este sepulcro já não foi en- lhares de sepulcros conhecidos para os IV e contrado, havendo que admitir-se já erradicado III milénios a.n.e. desta região, deparamo-nos (Dias & Lago, 1992, apud Lopes, 1993). Revista Portuguesa de Arqueologia - volume 16 | 2013 | pp. 63–79 66 Perscrutando espólios antigos: a anta de Sobreira 1 (Elvas) 1950; Viana & Deus, 1955) foram apresen- tadas sem qualquer tipo de escala, apenas indicando a orientação cardeal do eixo da estrutura, a este e, posteriormente, a sudeste (Fig. 3A–B). A primeira surgia como um sepul- cro quase completo de câmara poligonal com 7 esteios, sendo o de maior dimensão aquele de cabeceira, prolongando-se por um corre- dor, de que restavam apenas dois esteios do lado sul. A segunda planta (Leisner & Leisner, 1959, Tafel 10, 2) era apresentada com ape- nas 4 esteios de uma câmara poligonal, ainda que sem bloco de cabeceira, prolongando-se por um pequeno corredor, com um esteio longo do lado sul e outro menor a norte (Fig. 3C). A discrepância entre as duas primeiras plan- tas da anta de Sobreira 1, bem como as suas orientações, poderia dever-se a um registo baseado inicialmente na “viva memória” de A. D. Deus (Viana, 1950, p. 290), posterior- mente rectificado após visita de A. Viana ao sepulcro. No entanto, a planta do casal ale- mão, produzida durante a visita ao local em 8 de Outubro de 1953 (Arquivo Leisner, Leis58), apresenta a planta e alçado de uma anta com câmara poligonal alongada de 8 esteios de xisto, de que restavam quatro esteios in situ, da cabeceira e lado sul, e outros quatro, do lado Fig. 2 – As antas e a Sobreira 1 não se encontrava isolada naquela norte, parecendo não se encontrar totalmente geologia da região de região. Pelo contrário, na área em redor desta nas suas posições originais. Além da câmara Elvas. Sobreira 1 com anta registava-se uma densidade de sepulcros anotaram ainda um possível esteio de corredor um círculo maior. Mapa simplificado e baseado megalíticos relativamente elevada (Fig. 1), in- do lado sul. A dimensão aproximada do se- nas Cartas Geológicas diciando uma ocupação humana importante pulcro rondava os 2,40 m de comprimento por de Portugal, a eles associada, que conduziu a um período 1,50 m de largura máxima e 1 a 1,40 m de 1: 50 000, folhas 33C (1971), 36B (1972) e de construção e posterior utilização daquelas altura. O eixo de entrada da anta orientava-se 37A (1969). Serviços estruturas funerárias integráveis no fenómeno para E10º S (Arquivo Leisner, Leis58; Leisner & Geológicos de do Megalitismo. Infelizmente, o incremento da Leisner, 1959, p. 62 e Tafel 10, 2). Portugal. mecanização agrícola e algumas pedreiras Tendo em conta o apontamento de N. Delgado, conduziram ao desaparecimento da maioria os dados descritivos e gráficos mais detalhados das antas daquela área depois da década de do casal Leisner levam a considerar como mais 1950. Resta portanto saudar as publicações plausível a sua planta e alçado. Aliás, a pos- existentes de investigadores anteriores, que nos sibilidade de estes terem registado uma anta permitem hoje um conhecimento menos trunca- diferente não nos parece crível, porque eles te- do daquelas realidades. rão visitado muitos dos sepulcros megalíticos de As únicas plantas conhecidas da anta de So- Elvas, nomeadamente de Vila Fernando, na com- breira 1 (Fig. 3) foram providenciadas por A. panhia de A. L. Agostinho, quiçá no ano de 1934, Viana e A. D. Deus (Viana, 1950; Viana & durante a visita para o desenho dos materiais Deus, 1955), e pelo casal Leisner (1959, Ta- depositados no Museu de Elvas, ou em anos pos- fel 10, 2). As duas primeiras plantas (Viana, teriores, quando ficaram hospedados em casa 67 Revista Portuguesa de Arqueologia - volume 16 | 2013 | pp. 63–79 Rui Boaventura | Maria Teresa Ferreira | Ana Maria Silva Fig. 3 – Plantas da anta de Sobreira 1: A – (Viana, 1950); B – (Viana & Deus, 1955); C-D – planta e espólio (Leisner & Leisner, 1959, Tafel 10: 2). daquele funcionário (Agostinho, 1945 – Doc. 1) sido construída com esteios de xisto, apesar e de quem obtiveram diversas informações pes- de ter sido implantada em substrato calcário soais acerca das escavações efectuadas (Leisner cristalino, distando cerca de 1 km da zona & Leisner, 1959). Mas também, em 1953, pode- mais próxima de rochas hercínicas (Fig. 2). rão tê-lo efectuado com a orientação de A. D. Deus, com quem mantinham contacto e já tinham visitado no ano anterior outros sepulcros da re- 2. O espólio funerário gião, conforme se depreende do epistolário do casal alemão com A. Viana (Leisner, 1952, 1954 O espólio conhecido da anta de Sobreira 1 – Doc. 3-4; Viana, 1952 e 1954 – Doc. 2 e 5). corresponde àquele recolhido e listado no Importa ainda realçar o facto de esta anta ter século XIX, constituído por peças líticas e ce- Revista Portuguesa de Arqueologia - volume 16 | 2013 | pp. 63–79 68 Perscrutando espólios antigos: a anta de Sobreira 1 (Elvas) Fig. 4 – Geométrico râmicas, e restos osteológicos humanos, sem crescente ou ponta qualquer notícia de registo acerca do seu tipo de seta (no canto de jazida ou contexto estratigráfico. A maior superior direito), restantes líticos parte dos objectos e artefactos foram apresen- lascados e conta tados pelo casal Leisner (1959, Tafel 10, 2; Fig. bitroncocónica 3D). Optou-se no entanto, por redesenhá-los de Sobreira 1 (Foto do Arquivo para este trabalho, adicionando mais alguns Leisner, DGPC). elementos. As excepções foram um fragmento de uma peça aparentemente de sílex e talha- da bifacialmente, que poderia ser uma ponta de seta ou uma espécie de geométrico do tipo crescente (Leisner & Leisner, 1959, Tafel, 10, 2), uma provável pequena lâmina de quartzo hialino — referida por A. Viana — e “uma con- chinha” de lesma Testacella maugei4, hoje não relocalizados no Museu Geológico. O referido crescente / ponta de seta já não é mencionado no inventário realizado na década de 1990, mas teve o seu desenho efectuado com data de 1 de Maio de 1944 (Arquivo Leisner, Leis58), posteriormente publicado (Leisner & Leisner, 1959). Além disso apenas foi possível encon- trar no arquivo do casal Leisner uma fotografia pouco nítida da referida peça (Fig. 4), que não permitiu sanar as dúvidas colocadas. O conjunto de líticos lascados (Fig. 5, 1–4) é então constituído por três lâminas de sílex, Fig. 5 – 1-4 – Líticos lascados de Sobreira sem e com retoque, uma ponta de seta de sí- 1 (des. F. Sousa). lex branco de base convexa com barbelas, o 5-6 – Esfera de possível geométrico crescente ou ponta de seta, calcário e conta de colar talvez de sílex, e uma lasca de quartzo hiali- (des. I. Conde no, assemelhando-se a um esboço de ponta de e R. Boaventura) seta (Fig. 4). Curiosamente, A. Viana & A. D. Deus (1955, p. 17), ao descreverem o espólio anotavam três pontas de seta, provavelmente referindo-se àqueles três elementos, indicando uma peça de sílex e duas de quartzo. Estes re- feriam ainda um “fragmento de faca de cristal de rocha negro”, acima mencionado e não lo- calizado, mas também já não registado pelo casal Leisner (1959). 4 Além de Os nove instrumentos líticos polidos (Fig. 6) per- referência fazem o conjunto mais numeroso e coincidem na publicação, com as versões dos autores anteriores. Neste A. Viana (1951) confirmava a grupo, com base na classificação utilizada nou- existência deste tros trabalhos (Boaventura, 2001, 2009), foi elemento no Museu possível anotar uma goiva, cinco enxós e três Geológico por machados, ainda que um destes últimos apre- informação de O. V. Ferreira. sentava a parte distal de tal forma romba que 69 Revista Portuguesa de Arqueologia - volume 16 | 2013 | pp. 63–79 Rui Boaventura | Maria Teresa Ferreira | Ana Maria Silva a sua utilização como martelo deve ser anota- da. Todas as peças são genericamente de anfi- bolite, apresentando um polimento parcial das suas superfícies, sobre- tudo do terço distal, com a excepção da goiva, o possível machado e uma enxó, que têm as superfícies mais extensi- vamente cuidadas. Aliás, esta característica deve- rá relacionar-se com as secções transversais cir- culares destes três instru- mentos, que suscitaram maior labor, restando os outros instrumentos com secções poligonais. Além dos instrumen- tos líticos mencionados, recolheu-se ainda uma conta bitroncocónica de anfibolite (Figs. 5 e 6). A pedra afeiçoada está apenas representada por uma esfera em pe- dra calcária integral- mente picotada, que resultou na produção daquele sólido geomé- trico (Fig. 5, 5). Regista- -se ainda um seixo de quartzito achatado tra- pezoidal sem sinais de percussão ou abrasão. Os fragmentos cerâmi- cos recuperados permi- tiram a reconstituição Fig. 6 – Instrumentos de de um número máximo to, a reconstituição apresentada pelo casal pedra polida de Sobreira 1: de sete e um mínimo de cinco recipientes, dois alemão deste último vaso deve ser encarada 1– goiva (MG- 176.12); ou três deles carenados (Fig. 7). Contudo, com precaução, pois os dois fragmentos, do 2-3 – machados (MG- 176.15 e 176.14); apenas dois desses contentores foram publi- fundo e carena (MG-176.5) e do bordo e ca- 4 – machado ou martelo cados pelo casal Leisner (1959, Tafel 10, 2, rena (MG-176.2) não encaixam em nenhuma (MG- 176.19); 5-9 – enxós (MG- 18, 12; Fig. 3D): respectivamente uma taça das suas fracturas. Apesar da similitude de 176.20, 176.17, 176.13, 176.18 e 176.18). quase completa e um recipiente carenado fe- pastas cerâmicas, estes são aqui representa- (des. I. Conde chado, com um mamilo na carena. No entan- dos separadamente (Fig. 7, 5 e 6). O outro e R. Boaventura). Revista Portuguesa de Arqueologia - volume 16 | 2013 | pp. 63–79 70
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