As comunidades aldeãs no antigo egito Autor(es): Cardoso, Ciro Flamarion Publicado por: Universidade Federal do Rio de Janeiro URL URI:http://hdl.handle.net/10316.2/33198 persistente: Accessed : 30-Dec-2022 01:31:00 A navegação consulta e descarregamento dos títulos inseridos nas Bibliotecas Digitais UC Digitalis, UC Pombalina e UC Impactum, pressupõem a aceitação plena e sem reservas dos Termos e Condições de Uso destas Bibliotecas Digitais, disponíveis em https://digitalis.uc.pt/pt-pt/termos. Conforme exposto nos referidos Termos e Condições de Uso, o descarregamento de títulos de acesso restrito requer uma licença válida de autorização devendo o utilizador aceder ao(s) documento(s) a partir de um endereço de IP da instituição detentora da supramencionada licença. Ao utilizador é apenas permitido o descarregamento para uso pessoal, pelo que o emprego do(s) título(s) descarregado(s) para outro fim, designadamente comercial, carece de autorização do respetivo autor ou editor da obra. 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Além do interesse intrínseco is relevant by itself, such communities do tema, já que tais comunidades constituíam being one of the mainstays of economy and um dos fundamentos da sociedade e da society in pharaonic Egypt; but also economia do Egito faraônico, o assunto because it allows us to explore some deep também atrai por permitir explorar as differences of opinion existing about how profundas divergências existentes a respeito human societies work and change, and the de como funcionam e mudam as sociedades direct impact on such debates of humanas, bem como o impacto direto, nos ideological factors as well. debates, de fatores ideológicos. Keywords: village communities; Palavras-chave: comunidades aldeãs; Egyptology; peasantry; Economic History. Egiptologia; campesinato; História Econômica. Em 1986 – há, portanto, mais de duas décadas – publiquei, na França, um artigo cujo tema eram as comunidades aldeãs do Egito faraônico (CAR- DOSO, 1986). O texto resultara de pesquisas levadas a cabo quando da preparação de uma tese apresentada em concurso público para Professor Titular de História Antiga na Universidade Federal do Rio de Janeiro, de- * Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense (UFF). Coordenador do Centro de Estudos Interdisciplinares da Antiguidade (CEIA). 96 PHOÎNIX, RIO DE JANEIRO, 14: 96-129, 2008. fendida e aprovada em 1987. Refletia, adicionalmente, os debates da época em torno do modo de produção asiático, renovados pelas publicações de especialistas italianos como Carlo Zaccagnini e Mario Liverani. Pareceu- me interessante, tanto tempo depois, retomar o assunto, verificando que mudanças de perspectiva podem ser sugeridas por mais de vinte anos de estudos egiptológicos, para não mencionar as pesquisas que eu mesmo de- senvolvi durante esse período relativamente longo.1 1. Debates antigos e modernos 1.1. As comunidades aldeãs vistas a partir do “modo de produção asiático” No relativo a sociedades como a do antigo Egito, foi o marxismo, em especial, nas discussões em torno da noção de “modo de produção asiático”, que tratou de desenvolver o conceito do que seria uma comunidade aldeã, bem como de examinar o seu papel na estrutura da formação econômico-social. Ao analisar as passagens principais acerca destes assuntos na obra dos fundadores do marxismo, é importante levar em conta alguns aspectos de seu contexto. Em primeiro lugar, o estado dos conhecimentos disponíveis de mea- dos a fins do século XIX acerca da Pré-História, Proto-História e História Antiga, bem como da História do Oriente Próximo e do Extremo Oriente em geral, se comparado ao que temos atualmente, deixava muito a desejar não somente no sentido dos modelos teóricos e explicativos disponíveis, mas também no concernente ao acesso, publicação, compreensão adequa- da das fontes,2 e ao conhecimento dos fatos e mecanismos econômico-soci- ais básicos. Um segundo fator a considerar é que, nos escritos de Marx e Engels, a História Oriental (e outras formações de tipo presumivelmente “asiáti- co”, como algumas da América pré-colombiana) nunca constituiu uma pre- ocupação central. Por conseguinte, as alusões à mesma são sempre rápidas, pouco desenvolvidas e baseadas em pesquisa insuficiente mesmo para a época. Com freqüência, sob a influência da noção de Hegel de uma ausên- cia de verdadeira História no mundo asiático, o raciocínio de Marx e Engels baseava-se em fontes relativas ao presente e ao passado recente “em se PHOÎNIX, RIO DE JANEIRO, 14: 96-129, 2008. 97 tratando da Turquia, da Pérsia e da Índia, em escritos que iam do século XVII ao XIX, predominantemente: o viajante Bernier, observações toma- das da obra dos fisiocratas ou dos economistas clássicos, relatórios da Câ- mara dos Comuns britânica”, supondo que as características ali descritas pudessem ser generalizadas para trás no tempo, até o passado mais remoto; o que era falso, evidentemente (SOFRI, 1969, parte I). Por fim, Bailey e Llobera apontam, com razão, o fato de que o perío- do em que escreveram esteve marcado por forte influência de Henry Maine e seus estudos comparativos das comunidades agrárias indo-européias “pri- mitivas” “ ou supostamente tais”, originando uma controvérsia acadêmica, ainda inconclusa em nossos dias, acerca do caráter igualitário e comunitá- rio “persistentemente comunitário em certos casos” das estruturas agrárias em muitas regiões do mundo e em épocas variadas (BAILEY; LLOBERA, 1981, p. 22-23, p. 42). Ora, ao refletir sobre essa temática hoje em dia, ela tem de ser revista à luz dos conhecimentos agora disponíveis, que, em mui- tos casos, não apóiam idéias como as de Maine e obrigam, com freqüência, a redefinir o que se entende por “comunidade aldeã”, bem como quais seriam os elementos básicos para a preservação ou destruição do seu caráter corporativo e solidário. Na troca de correspondência entre Marx e Engels, em junho de 1853, em parte, prévia, e, em parte, paralela à redação dos dois artigos de Marx para o New York Daily Tribune sobre a dominação britânica na Índia e seus efeitos, vê-se que, enquanto Engels achava que as obras de irrigação necessárias à agricultura em zonas desérticas podiam incumbir “às comunas, às províncias ou ao governo central” “em todos os casos, porém, configu- rando-se a ausência da propriedade privada da terra”, Marx, baseando-se em Bernier e num relatório parlamentar de 1812 sobre a Índia, pensava que tais obras hidráulicas competiam ao governo central, que detinha a proprie- dade do solo. Não relacionava, portanto, o controle local da irrigação entre os possíveis fatores da coesão comunitária (MARX; ENGELS, s.d., p. 334- 335, p. 337-338). Na segunda das cartas que escreveu, então, a Engels, nos artigos para o jornal e em passagens d’O Capital que reproduzem quase o mesmo raciocínio, podemos perceber as idéias fundamentais de Marx so- bre o “sistema de aldeia”, apoiadas em descrições relativamente recentes da Índia. As comunidades aldeãs teriam um “caráter familiar”. Em algumas delas, as terras eram cultivadas em comum e os produtos, repartidos entre as famílias; mais corrente, porém, seria o cultivo familiar de parcelas (“cada 98 PHOÎNIX, RIO DE JANEIRO, 14: 96-129, 2008. trabalhador ara seu próprio campo”), enquanto os baldios serviriam de pas- tagens comunais. A “inércia” das aldeias seria devido à sua dispersão, iso- lamento e, sobretudo, à sua auto-suficiência, explicável pela união, no seu interior, do artesanato doméstico (exercido pelas mulheres quanto à fiação e à tecelagem) e da agricultura, “o que lhes permitia subsistir, num nível inferior de bem-estar, sem muitas relações externas e sem que se desenvol- vessem os desejos e esforços indispensáveis ao progresso social”. O solo pertencia ao Estado, garantidor das obras de irrigação e auferidor do im- posto (neste caso, idêntico à renda do solo paga in natura); mas as comuni- dades eram possessoras comunitárias das terras aldeãs: isto, a união imedi- ata da agricultura e do artesanato, e uma divisão do trabalho fixa, invariá- vel, garantiriam a manutenção delas, desde tempos imemoriais, como uni- dades auto-suficientes, independentes umas das outras, estereotipadas, re- produzindo-se e multiplicando-se sempre sob a mesma forma. Inexistia a propriedade da terra, mas existiam, nas sociedades orien- tais, o usufruto e a possessão, tanto privados quanto coletivos. A maior parte da produção se destinava ao consumo imediato de cada comunidade; o excedente, apropriado majoritariamente pelo Estado, é que poderia, even- tualmente, animar trocas mercantis. Assim, a produção comunitária não dependia de uma divisão do trabalho ocasionada pelos intercâmbios: a so- ciedade se dissolvia em átomos estereotipados, isolados entre si. As comu- nidades aldeãs estavam, na Índia, marcadas pela presença das castas e da escravidão: esses elementos, naquele momento, não foram analisados em detalhe por Marx (MARX; ENGELS, s.d., p. 337-338, p. 35-43, p. 92-99; MARX; ENGELS; LENIN, 1970, p. 253-255, 281). No manuscrito conhecido como Grundrisse, mais exatamente no ca- pítulo do mesmo sobre as “Formas que precedem a produção capitalista”, texto redigido em 1857-1858, portanto, entre os artigos de 1853 e o primei- ro livro d’O Capital, publicado em 1867, a visão torna-se substancialmen- te diferente. A “comunidade superior” ou “englobante”, encarnada pelo dés- pota, aparece como a proprietária de todas as terras (sendo, portanto, as comunidades locais, em aparência, meras “possessoras hereditárias”); mas, de fato, o fundamental objetivo da situação é a “propriedade comunitária ou tribal”, produto da combinação da agricultura e do artesanato, permitin- do a auto-suficiência de cada comunidade que contém em seu interior a totalidade de suas condições de reprodução e, ao mesmo tempo, de produ- ção de um excedente (que será apropriado tributariamente pela “comunida- PHOÎNIX, RIO DE JANEIRO, 14: 96-129, 2008. 99 de englobante”). Os indivíduos são somente possessores da terra, em sua qualidade de membros da comunidade. Cada um deles se apropria real- mente do solo, mediante o processo de trabalho, à base de supostos que lhe parecem “naturais” ou “divinos”. Tal processo de trabalho ocorre segundo as duas modalidades já apresentadas em 1853: apropriação familiar de lo- tes trabalhados independentemente, ou trabalho coletivo da terra. O gover- no da comunidade pode aparecer unificado num “chefe tribal”, ou basear- se nas relações entre os chefes das famílias que a integram. A comunidade de tipo “asiático” seria a mais durável e difícil de destruir dentre as formas de comunidades agrárias, por duas razões: (1) a “propriedade comum ime- diata”, não passando cada indivíduo de um possessor e inexistindo qual- quer forma de propriedade privada; (2) a unidade, nas aldeias, de agricultu- ra e manufatura ou artesanato, garantindo o “ciclo auto-suficiente da pro- dução” (MARX, 1971, I, p. 434-435, p. 443, p. 445-446, p. 458). A parte de Engels na formulação da noção de modo de produção asiá- tico em geral, bem como das idéias acerca das comunidades, foi menor. No Anti-Dühring, atribuiu à circulação de mercadorias um papel primordial na dissolução de todas as modalidades de estruturas comunitárias (ENGELS, 1970, p. 173-174). Deixando de lado os debates interiores ao marxismo sobre tais ques- tões, ocorridos entre os escritos dos fundadores e meados do século XX, concentrar-nos-emos agora na discussão internacional da década de 1960 e princípios da seguinte em torno do modo de produção asiático, em boa parte solicitada pela circulação das idéias contidas nos Grundrisse de Marx, que só tiveram maior difusão, progressivamente, no período posterior à Segunda Guerra Mundial. Predominaram, nos debates da década de 1960, estudos de cunho teórico, pouco baseados na pesquisa aprofundada de ca- sos históricos concretos. Outrossim, tais escritos raramente tomaram as comunidades aldeãs como objeto central,3 e não representaram, a respeito, grande avanço efetivo em relação às formulações de Marx e Engels. Exceções ao que acabo de afirmar foram certos artigos mais ligados, já naquela fase, a pesquisas empíricas sérias, além de presos a preocupa- ções teóricas. Significativamente, desvendaram realidades bem diversas das idéias dos fundadores do marxismo em muitos pontos. Foi, por exemplo, o caso do texto de Pierre Boiteau, publicado em 1964, que, tratando de Madagascar no período pré-colonial, mostrou que “a ausência de apropria- 100 PHOÎNIX, RIO DE JANEIRO, 14: 96-129, 2008. ção privada do solo” não supôs, ali, uma homogeneidade das formas assu- midas pelos direitos sobre a terra: pelo contrário, demonstrou, na ilha estu- dada, a presença de uma grande diversidade de tais formas (BOITEAU, 1964). Outro exemplo é o artigo de Le Tranh Khoi sobre o Vietnã antigo, de 1973: em sua análise, as comunidades aldeãs não aparecem de modo algum como “primitivas” ou estáticas, nem são típicas de uma sociedade que só apresenta classes sociais em forma embrionária. Uma forma comunal mas não-igualitária de propriedade e de acesso à terra, mediante redistribuições periódicas do solo comunal, coexistia com a propriedade privada; e a exploração classista se realizava por intermédio de ambas as formas de propriedade, por via tributária, como pretende a teoria do “modo de produção asiático”, mas também de outras maneiras (LE TRANH, 1981). Certos trabalhos indicaram que uma comunidade aldeã pode perfeita- mente existir na ausência não somente do igualitarismo entre seus mem- bros, como também da propriedade coletiva da terra (BRODA, 1979; BRODA, 1976). Deve ser confessado, entretanto, que, com freqüência, a existência e as características das comunidades aldeãs do Oriente Próximo antigo têm sido postuladas pelos que acreditam em sua importância, e não, provadas. É assim que Ahmad Sadek Saad, ocupando-se do Egito faraônico, encarou a comunidade aldeã como algo evidente, de cuja existência não pareceu achar-se obrigado a apresentar provas (SAAD, 1975, p. 3, 6-7, 9, 15). Isso não é aceitável. Não é fácil, por certo, provar documentalmente a existência das co- munidades aldeãs antigas. A escrita, nas sociedades do antigo Oriente Pró- ximo, era usada quase sempre só para finalidades bem precisas e delimita- das, vinculadas à administração, aos reis e aos templos. Se a isso somarmos o acaso que presidiu à conservação dos documentos, poderíamos chegar à conclusão de que, mesmo se os especialistas estivessem todos de acordo em acreditar na existência e na importância das comunidades aldeãs, acha- riam poucas fontes (e bem pouco explícitas) para apoiar suas análises de tais comunidades. Não é razoável, por exemplo, esperar que os documen- tos nos “falem” por si mesmos sobre as comunidades. Esta ilusão dos histo- riadores tradicionais – “a crença de que fatos históricos prontos durmam nos documentos até que o historiador os desperte” – é particularmente absurda ao se tratar da História Antiga, na qual o estado das fontes exige PHOÎNIX, RIO DE JANEIRO, 14: 96-129, 2008. 101 sua exploração sistemática no contexto de um quadro teórico escolhido como ponto de partida. No concernente às comunidades aldeãs, não há razões, em especial, que levem a esperar que os escritos administrativos (os mais numerosos de que se pode dispor) nos revelem a sua estrutura interna. Quanto à Arqueologia, a verdade é que, salvo quando se estudam sociedades do Neolítico, raramente são escavadas aldeias. Assim sendo, autores já predispostos, em tal sentido, por sua posição ideológica e teórica podem, facilmente, tomar “o que é um desequilíbrio documental” como sendo “um desequilíbrio real” (LIVERANI, 1983, p. 147-148), e negar a própria existência das comunidades aldeãs, que apresentarão como algo a respeito do qual os documentos são mudos. O conceito de “modo de produção asiático”, em todas as suas moda- lidades, recebeu diversas críticas. Uma das mais interessantes foi a dúvida sobre o vínculo pressuposto entre o Estado e as aldeias – que tende a ser estático (ou, às vezes, cíclico) –, como \expressou Robert McC. Adams, pensando no caso da Mesopotâmia. Ele achou irrealista, por exemplo, su- por uma estrutura aldeã mais ou menos imutável ao longo de milênios, sobre a qual se sobrepusesse um Estado explorador. A relação entre Estado e aldeias foi, na verdade, variável, podendo levar, mesmo, a uma mudança importante nos padrões do assentamento aldeão. Na Mesopotâmia, des- contados os períodos mais antigos da urbanização, uma administração cen- tralizada e forte encorajava a multiplicação de estabelecimentos rurais dispersos e pequenos, favorecia investimentos em obras de irrigação com- plexas e podia, assim, contribuir para a prosperidade rural e o aumento da população camponesa; pelo contrário, o declínio do controle governamen- tal conduzia à congregação dos camponeses em aldeias e povoados maio- res que pudessem ser defendidos, com menor assistência estatal, contra ataques de nômades, e podia levar à queda demográfica, bem como a uma prosperidade rural diminuída (ADAMS, 1988, p. 35). Eu mesmo, ao redigir em 1986-1987 uma tese sobre a economia da Egito faraônico, cujas hipóteses derivavam da teoria do modo de produ- ção asiático em seu novo corte “italiano”, tive de constatar que a “lógica asiática” era somente uma das lógicas econômicas em jogo naquela eco- nomia e, pelo menos, desde 2000 a.C., ou pouco antes, não era a mais importante: em função de tal constatação, fui obrigado a mudar algumas das hipóteses tomadas como ponto de partida na pesquisa (CARDOSO, 1987, p. 297-298). 102 PHOÎNIX, RIO DE JANEIRO, 14: 96-129, 2008. Em justiça para com Zaccagnini e Liverani, no entanto, cabe recordar que viram a história das relações entre o Estado e as aldeias, no Oriente Próxi- mo antigo, como um processo que levou ao declínio progressivo das entidades aldeãs corporativas e a novas formas de organização econômico-social. 1.2. As comunidades aldeãs vistas em função de opiniões contrastantes sobre a natureza do Estado egípcio e suas formas e graus de controle social O Vigésimo Congresso da Sociedade Jean Bodin para a História Compa- rativa das Instituições reuniu-se em Varsóvia, em 1976. Seu tema foi a comuni- dade rural, definida como “qualquer grupo de homens que vivam juntos, ou uns perto dos outros, num quadro territorial restrito e explorando em comum a totalidade ou uma parte do solo”. Os resultados dessa reunião científica, no tocante à Antiguidade, foram publicados (THÉODORIDÈS et alii, 1983). Pa- recem-me, no conjunto, ao mesmo tempo, interessantes e decepcionantes. Uma das razões que levaram a resultados aquém do que se poderia esperar de um simpósio de tantos especialistas ilustres foi, creio eu, a defini- ção de “comunidade rural” previamente proposta aos participantes, que já reproduzimos. Desejou-se, sem dúvida, estabelecer um marco único de refe- rência, para poder conter debates sobre as mais diversas sociedades; o Con- gresso, além da Antiguidade, tratou das sociedades tribais, medievais, mo- dernas, etc. Mas, exatamente por isso, a definição adotada revelou-se pobre e limitadora. Verdadeiras comunidades rurais podem existir sem que haja ex- ploração comum do solo. Diríamos mesmo que, na África Negra e na Améri- ca Pré-Colombiana, mais freqüentemente podem ser achadas comunidades nas quais à propriedade comum do solo se associava a sua exploração por famílias nucleares restritas, se bem que os trabalhos preparatórios (a derru- bada das árvores nas áreas de agricultura de coivara, por exemplo) pudessem ser executados em comum quando excedessem as possibilidades de cada família isolada, no quadro das técnicas disponíveis. Outrossim, no que tange à Antiguidade próximo-oriental que me interessa aqui mais de perto, é evi- dente que o controle local ou regional da água poderia formar sólidos laços comunitários, mesmo na ausência de qualquer cultivo realizado em comum. Parece-me também que deveria ter sido discutida a associação íntima da agri- cultura e do artesanato, “ponto em que as opiniões de Marx se revelaram sólidas”, bem como as formas de acesso à terra e à água. PHOÎNIX, RIO DE JANEIRO, 14: 96-129, 2008. 103
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