Luciana Hidalgo EDIÇÃO REVISTA SUMÁRIO Para pular o Sumário, clique aqui. Nota da autora 22 dezembro 1938 Os anjos vão arriando a formosa fina pluma por onde sahi o verbo estrondo Como eu vim terra tambardilho Eu vou passar revista corpos homes cahidos carbonizados e os mortos reverter vossos corpos juntos vossos espíritos (...) Vois habitantes da terra eu apresento as suas nações As virgens vem em cardume a mim Jesus eu estou nuclo ulisse viana 1964 As mais linda humanidade reis príncipes chefes nações palácios luxuosos governadores estados e glórias Pare não se movimente Passagem livre para todos Reconheceram o filho do home Eu preciso destas palavras – escrita Rosangala Maria diretora de tudo eu tenho Não bater com peis é paraíso dos homens Eu vou deixa este globo esplendo Posfácio Agradecimentos Referências bibliográficas Outras publicações Créditos A Autora NOTA DA AUTORA Esta reedição de Arthur Bispo do Rosario – O senhor do labirinto, que sai quinze anos após a primeira versão, é um inevitável apelo à memória. Lembro-me do ano intenso que passei no hospício em que Bispo viveu, do encontro com cada uma de suas obras, das entrevistas com uma centena de pessoas, da viagem até a cidade natal do biografado, Japaratuba, em busca de raízes afetivas e estéticas. Lembro-me, sobretudo, do dia em que encontrei, num livro antigo da igreja local, o registro de batismo de Arthur Bispo do Rosario. Na época vibrei com o achado jornalístico, mas temi violar a intimidade de um homem que repetia à exaustão: “Um dia eu simplesmente apareci.” Ao se dizer um enviado dos céus, ordenado por anjos, Bispo apagou pegadas no mundo dos humanos e transformou a fronteira entre realidade e fantasia numa linha sem importância. A mim, restou o equilíbrio instável entre os mundos. E a ideia, cada vez mais concreta, de que escrevia uma quase biografia, onde a verdade podia ser traiçoeira e o chamado delírio, por vezes tão real. O renovado interesse por esse personagem tão comovente deu vida longa ao livro (sucessivas reimpressões), sendo até hoje lido, analisado e discutido em várias áreas, em especial na universidade. Pela obra, tive ainda a grande honra de ganhar um prêmio Jabuti em 1997. E o livro acabou virando filme, O senhor do labirinto, dirigido por Geraldo Motta (codireção de Gisela de Mello) e produzido pela Tibet Filme. Nesse processo, tive a satisfação de escrever o roteiro com o diretor e verter literatura em cinema. Todo esse percurso culmina agora com a reedição do texto, tão flexível à ação do tempo, que tudo repara, patina, aperfeiçoa. Reli, rescrevi, cortei, acrescentei. Foi como se o livro continuasse a se escrever, fluxo contínuo, anos a fio, apesar de mim. E, ainda assim, o atual livro é todo o primeiro. Cabe observar que os textos de abertura de cada capítulo são fragmentos de escritos de Bispo, extraídos de suas obras com o devido respeito à grafia original. Ao final desse grande labirinto de palavras, histórias e bordados, eu saí outra. Ao revisitá-lo, na vertigem entre fatos e ficções, vida e obra, diria que o livro é, como Bispo, o resultado da delicadeza de todo esse equilíbrio. Bispo, o resultado da delicadeza de todo esse equilíbrio. Luciana Hidalgo 22 DEZEMBRO 1938 – MEIA NOITE ACOMPANHADO POR – 7 – ANJOS EM NUVES ESPECIAS FORMA ESTEIRA – MIM DEIXARAM NA CASA NOS FUNDO MURRADO RUA SÃO CLEMENTE – 301 – BOTAFOGO ENTRE AS RUAS DAS PALMEIRAS E MATRIZ EU COM LANÇA NAS MÃO NESTA NUVES ESPÍRITO MALISIMO NÃO PENETRARA – AS 11 HORAS ANTES DE IR AO CENTRO DA CIDADE NA RUA PRIMEIRO DE MARÇO – PRAÇA – 15 – EU FIZ ORAÇÃO DO CLEDO NO CORREDOR PERTO DA PORTA – VEIO MIM – HUMBERTO MAGALHAES LEONI – ADVOGADO MESTRE PARA ONDE EU IA PERGUNTOU – EU VOU MIM APRESENTAR – NA IGREJA DA CANDELÁRIA – ESTA FOI MINHA RESPOSTA Adois dias do Natal de 1938, Arthur Bispo do Rosario descansava, olhos vagos, no quintal do casarão da família Leoni. De repente a cortina preta que revestia o teto do mundo rasgou e deu passagem a sete anjos. Meia-noite, vinham ao seu encontro. Bispo recebeu os seres de outros mundos e os acolheu em algum canto de si mesmo. Era a glória absoluta, afinal, eles o reconheciam. Como Jesus Cristo? “Está falando com ele”, arriscaria a resposta, a partir de então, o eleito. Dopado pelo exército angelical, entre visões e quimeras, Bispo saiu pela rua deserta. Peregrino da solidão, estava acostumado a caminhar sem paradas obrigatórias Rio afora, madrugada adentro. Bateu o portão da casa na Rua São Clemente, em Botafogo, andou alguns quarteirões e subiu no primeiro bonde que o levaria a seu destino. Ao patrão Humberto Leoni confidenciou a anunciação e saiu, sob escolta, rumo à Igreja da Candelária. Botafogo, Flamengo, Catete, Centro. Na Rua Primeiro de Março, a fileira de cruzes pontuava o reto caminho e reforçava a solenidade da romaria. Aquela seria mais uma de suas errâncias insones, não fosse o clarão azul a evidenciá-lo, a ele, o escolhido, de carona no rastro dos anjos. Bispo fez do roteiro mágico a sua rua da amargura. Vagou por dois dias, arrastando-se numa via-crúcis ecoada por ordens inauditas. Com as costas riscadas por uma cruz luminosa, andou ao som de segredos celestiais soprados ao ouvido. O ponto final desse calvário místico foi o Mosteiro de São Bento, onde ele enfim chegou, para se apresentar. Como se o esperassem, entrou na capela e anunciou: era o juiz dos vivos e mortos, o Cristo. Silêncio apostólico. Perdido entre o fato e a ficção, Bispo entendeu que os frades do mosteiro o acolhiam. Afinal, era um enviado de Deus, posto garantido pelo crucifixo entalhado em seu corpo. O dia 24 de dezembro de 1938 foi um divisor de águas psíquico para Arthur Bispo do Rosario. Os sinos dobravam por ele, os céus se abriam para reverenciar sua majestade, mas ele acabaria sob o domínio da autoridade máxima na Terra. Despejado da sanidade, rendido a fantasias no Centro do Rio, foi detido pela polícia e enviado ao hospício da Praia Vermelha. Numa noite de Natal, saltou do delírio para a realidade crua. Ou vice- versa. OS ANJOS VÃO ARRIANDO A FORMOSA FINA PLUMA POR ONDE SAHI O VERBO ESTRONDO Arthur Bispo do Rosario beirava os 30 anos quando foi registrado no Hospital Nacional dos Alienados. Sem documentos, deixou o casarão de Botafogo, os serviços domésticos prestados aos Leoni, para ter o corpo desapropriado pela psiquiatria. Rendido ao misticismo, autoalardeado Jesus, deixava de ser Arthur e substituía a identidade por uma grande autoridade na liturgia cristã. Algo de si parecia se extraviar, o eu se partia. Começava aí, talvez antes disso, toda uma fabulação em torno de si mesmo que transformaria a fronteira entre realidade e ficção numa linha sem muita importância. As lacunas na ficha de Bispo no manicômio permaneceriam em branco. A idade era presumida, a naturalidade desconhecida. O diagnóstico psiquiátrico, no entanto, era preciso, científico: esquizofrenia-paranoide. Os delírios de grandeza de natureza mística, calcados em signos do catolicismo, anjos e iluminações, não seriam tolerados na rotina do hospício. Embora, para ele, tratassem de visões, não alucinações. Daí talvez a sua compulsão para, a partir de então, fundir autêntica e forjada autobiografia. Nascido em Japaratuba, Sergipe, quando indagado sobre sua história, Bispo passaria a evitá-la. “Um dia eu simplesmente apareci”, respondia, vago, articulando todo um discurso de si que fugia à origem. Alguns fatos, entretanto, insistiam, e tudo passava a caber no labirinto de verdades e fábulas do qual Bispo foi engenhoso senhor. Ele morava e trabalhava no casarão da Rua São Clemente até o arrastão imaculado tomar posse de seus sentidos. Ali se esmerava em serviços gerais com afinco. Os Leoni nunca souberam ao certo o que moveu Bispo no périplo pela cidade às vésperas do Natal. O itinerário era, para eles, desconhecido, mas Bispo se encarregaria de descrevê-lo, esmiuçá-lo, autor das próprias escrituras. Muitos anos mais tarde, bordaria num estandarte palavras que, entrelaçadas, narravam o circuito místico, distribuíam pistas. Bispo inscreveu no panô todo o processo de seu reconhecimento por anjos, com os quais ele se deixou flutuar até o Centro. Seu percurso, desde Botafogo, incluiu Palácio do Catete, Praça XV, Rua Primeiro de Março, Igreja da Candelária e outros pontos da geografia carioca. Os anjos seguiam em nuvens especiais, ele ia de bonde. Na época os Leoni tentaram apurar seu paradeiro, perdidos em suposições. Humberto sabia da devoção de Bispo a São José e o procurou na igreja com o
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