1 2 Para minha mãe e para Nicholas 3 Agradecimentos Agradecimentos infinitos à minha maravilhosa agente, Clare Conville, a Jake Smith-Bosanquet e a todos da C&W, e a meus editores, Claire Wachtel, Selina Walker, Michael Heyward e Iris Tupholme. Minha gratidão e meu amor a todos os meus familiares e amigos por me iniciarem nesta jornada, por lerem os primeiros esboços e pelo apoio constante. Agradecimentos especiais a Margaret e Alistair Peacock, Jennifer Hill, Samantha Lear e Simon Graham, que acreditaram em mim mesmo antes de eu o fazer, a Andrew Dell, Anzel Britz, Gillian Ib e Jamie Gambino, que chegaram depois, e a Nicholas Ib, que sempre esteve aqui. Obrigado também a todos da GSTT. Obrigado a todos vocês da Faber Academy, especialmente a Patrick Keogh. Para encerrar, este livro não teria sido escrito sem os conselhos da minha turma — Richard Skinner, Amy Cunnah, Damien Gibson, Antonia Hayer, Simon Murphy e Richard Reeves. Tenho enorme gratidão por sua amizade e apoio. Que por muito tempo os FAGs controlem seus narradores selvagens. 4 Nasci amanhã hoje eu vivo ontem me matou Parviz Owsia 5 Parte Um Hoje 6 O quarto é estranho. Nada familiar. Não sei onde estou, nem como vim parar aqui. Não sei como vou fazer para voltar para casa. Aqui passei a noite. Fui acordada por uma voz de mulher — primeiro achei que ela estivesse na cama comigo, depois percebi que era apenas o noticiário e que o que eu estava ouvindo era o despertador do rádio-relógio — e, quando abri os olhos, me vi aqui. Neste quarto que não reconheço. Meus olhos se acostumam com a penumbra e olho ao redor na semiescuridão. Há uma camisola pendurada atrás da porta do armário — adequada para uma mulher, porém bem mais velha do que eu — e calças escuras dobradas cuidadosamente sobre o encosto de uma cadeira à mesa, mas não consigo ver muito mais. O rádio- relógio parece complicado, mas encontro um botão e dou um jeito de silenciá-lo. É então que ouço uma inspiração entrecortada atrás de mim e percebo que não estou sozinha. Eu me viro. Vejo uma grande área de pele e cabelos escuros entremeados de branco. Um homem. Seu braço esquerdo está para fora das cobertas e há um anel de ouro no dedo anular da sua mão. Reprimo um gemido. Então este aqui não só é velho e grisalho, penso eu, como também é casado. Não apenas transei com um homem casado, mas fiz isso no que parece ser a casa dele, na cama que ele provavelmente compartilha com a esposa. Volto a deitar para tentar me recompor. Eu devia sentir vergonha. Imagino onde estará sua esposa. Será que preciso me preocupar com a possibilidade de ela voltar a qualquer momento? Eu a imagino de pé do outro lado do quarto, gritando e me chamando de piranha. Uma medusa. Uma massa de serpentes. Fico pensando em como irei me defender, caso ela realmente apareça. Porém, o cara na cama não parece muito preocupado. Ele se virou e continuou roncando. Fico deitada o mais imóvel possível. Normalmente eu consigo me lembrar de como vou parar em situações como essa, mas não é o caso hoje. Deve ter sido uma festa, uma ida a um bar ou clube. Eu devia estar muito bêbada. Bêbada o suficiente para não me lembrar de absolutamente nada. Bêbada o suficiente para ter ido para a casa de um homem que usa aliança e tem pelos nas costas. Eu afasto as cobertas o mais suavemente possível e me sento na beirada da cama. Antes de mais nada, preciso usar o banheiro. Ignoro os chinelos aos meus pés — afinal, transar com o marido de outra é uma coisa, mas eu jamais seria capaz de usar os sapatos 7 dela — e ando devagar, descalça, até o patamar da escada. Estou ciente da minha nudez, com medo de escolher a porta errada, de dar de cara com algum inquilino, com um filho adolescente. Aliviada, vejo que a porta do banheiro está entreaberta, entro e a tranco. Sento no vaso sanitário, depois dou descarga e me viro para lavar as mãos. Estendo o braço para apanhar o sabonete, mas há algo errado. De início não consigo perceber o que é, mas então eu vejo. A mão que segura o sabonete não parece ser a minha. A pele é enrugada, as unhas não têm esmalte e estão roídas até o sabugo e, tal como o homem deitado na cama que acabei de deixar no quarto, há uma aliança simples de ouro no meu dedo anular. Olho aquilo por um instante, depois mexo os dedos. Os dedos da mão que seguram o sabonete também se mexem. Engulo em seco, e o sabonete mergulha na pia. Olho para o espelho. O rosto que vejo me olhando de volta não é o meu. O cabelo não tem volume e está bem mais curto do que costumo usar, a pele nas faces e sob o queixo é flácida, os lábios, finos, a boca, curvada para baixo. Dou um grito, um grito contido sem palavras que se transformaria em um berro de choque caso eu o deixasse sair, mas então noto os olhos. A pele ao redor deles está marcada com rugas, é verdade, mas apesar de tudo vejo que são os meus olhos. A pessoa no espelho sou eu, porém com vinte anos a mais. Vinte e cinco. Mais. Não é possível. Ao começar a tremer, agarro a beira da pia. Outro grito começa a crescer dentro do meu peito e agora irrompe em um som estrangulado. Dou um passo para trás, me afastando do espelho, e é então que eu as vejo. As fotos. Grudadas com fita adesiva na parede, no espelho. Fotos entremeadas com post-its amarelos, com anotações a hidrocor, úmidos e encurvados. Escolho um ao acaso. Christine, diz, e uma seta aponta para uma foto minha — essa nova eu, essa velha eu — sentada em um banco num cais, ao lado de um homem. O nome parece familiar, mas apenas de modo distante, como se eu me esforçasse para acreditar que fosse o meu. Na fotografia, nós dois estamos sorrindo para a câmera, de mãos dadas. Ele é bonito, atraente, e quando olho mais de perto vejo que é o mesmo homem com quem dormi, aquele que deixei na cama. A palavra Ben está escrita embaixo, e, perto dela, Seu marido. Engulo em seco e arranco a foto da parede. “Não”, penso. “Não! Não pode ser...” Olho rapidamente as outras fotos. São todas de nós dois. Em uma estou usando um vestido feio e desembrulhando um presente, em outra nós dois usamos casacos impermeáveis combinando e estamos na frente de uma cachoeira, 8 enquanto a nossos pés um cachorrinho fareja. Perto dela há uma foto minha sentada ao lado dele, bebericando suco de laranja e usando a mesma camisola que vi no quarto ao lado. Recuo um pouco mais, até sentir os azulejos frios contra as minhas costas. É então que tenho o vislumbre que associo com memória. Quando minha mente tenta se fixar nele, ele esvoaça para longe, como cinzas apanhadas pela brisa, e percebo que na minha vida existe um outrora, um antes, embora antes do quê eu não saiba, e um agora, mas não há nada entre os dois além de um longo e silencioso vazio que me trouxe até aqui, até nós dois, até essa casa. Volto para o quarto. Ainda tenho a foto na mão — aquela na qual estou com o homem com quem acordei —, e seguro-a na minha frente. — O que está acontecendo? — pergunto. Estou gritando; lágrimas correm pelo meu rosto. O homem se senta na cama, de olhos semicerrados. — Quem é você? — Sou seu marido — responde ele. Seu rosto está sonolento, sem nenhum sinal de irritação. Ele não olha para o meu corpo nu. — Estamos casados há anos. — Como assim, “casados há anos”? — pergunto. Tenho vontade de sair correndo, mas não há para onde ir. — O que você quer dizer? Ele se levanta. — Tome — diz, e me entrega a camisola, esperando até eu vesti-la. Está usando calças de pijama grandes demais para ele e uma camiseta regata branca. Ele me lembra o meu pai. — Nós nos casamos em 1985 — continua ele. — Há 22 anos. Você... — O quê...? — Sinto o sangue fugir do meu rosto, o quarto começar a girar. Há um relógio tiquetaqueando em algum ponto da casa, e o som parece tão alto quanto o de marteladas. — Mas... — Ele dá um passo na minha direção. — Como...? — Christine, você tem 47 anos. Olho para ele, para esse estranho que sorri para mim. Não quero acreditar nele, não quero sequer escutar o que ele está dizendo, mas ele prossegue. — Você sofreu um acidente. Um acidente terrível. Machucou a cabeça. Você tem dificuldade para se lembrar das coisas. — Que coisas? — pergunto, querendo dizer: “Com certeza não os últimos vinte e cinco anos, certo?” — Que coisas? 9 Ele novamente dá um passo na minha direção, aproximando- se de mim como se eu fosse um animal assustado. — Tudo — responde ele. — Às vezes a partir dos vinte e poucos anos. Às vezes até antes disso. Minha mente gira, num turbilhão de datas e idades. Não quero perguntar, mas sei que preciso. — Quando... quando foi o acidente? Ele olha para mim e seu rosto é um misto de pena e medo. — Quando você tinha 29 anos... Fecho os olhos. Mesmo que minha mente tente rejeitar essa informação, de alguma forma sei que é verdade. Eu me escuto começar a gritar de novo e, ao fazer isso, esse homem, esse Ben, vem até onde estou, parada de pé à porta. Sinto a presença dele perto de mim, não me mexo enquanto ele enlaça a minha cintura, não resisto quando ele me puxa de encontro a seu corpo. Ele me abraça. Juntos balançamos suavemente, e percebo que aquele movimento parece familiar de alguma maneira. Faz com que eu me sinta melhor. — Eu amo você, Christine — diz ele, e embora eu saiba que devia dizer que o amo também, não o faço. Não digo nada. Como posso amá-lo? Ele é um estranho. Nada faz sentido. Quero saber tantas coisas. Como cheguei aqui, como consigo sobreviver. Mas não sei como perguntar. — Estou com medo — digo. — Eu sei — retruca ele. — Eu sei. Mas não se preocupe, Chris. Vou cuidar de você. Sempre cuidarei de você. Você vai ficar bem. Confie em mim. Ele avisa que vai me mostrar a casa. Eu me sinto mais calma. Pus calcinhas e uma camiseta velha que ele me deu, depois vesti um robe. Saímos para o patamar da escada. — O banheiro você já viu — diz ele, abrindo a porta ali perto. — Este é o escritório. Há uma mesa com tampo de vidro com o que adivinho ser um computador, embora pareça ridiculamente pequeno, quase um brinquedo. Perto dele há um gaveteiro porta-arquivos de metal cinza, e, na parede acima, um calendário de planejamento. Tudo está arrumado, organizado. — Eu trabalho aqui, de vez em quando — diz ele, fechando a porta. Atravessamos o patamar e ele abre outra porta. Uma cama, uma penteadeira, mais armários. Parece quase idêntico ao quarto 10 onde acordei. — Às vezes você dorme aqui — continua ele —, quando tem vontade. Mas em geral não gosta de acordar sozinha. Entra em pânico quando não consegue descobrir onde está. — Faço um sinal de concordância. Eu me sinto como um possível inquilino a quem mostram um apartamento novo, ou quem sabe alguém que se candidata a dividir uma casa. — Vamos descer. Eu o sigo escada abaixo. Ele me mostra uma sala de estar — sofá marrom com poltronas combinando, uma tela plana afixada na parede, que ele me diz ser uma televisão —, uma sala de jantar e uma cozinha. Nada daquilo é familiar. Não sinto absolutamente nada, nem mesmo quando vejo uma fotografia nossa emoldurada sobre um aparador. — Tem um jardim nos fundos — diz ele, e olho pela porta de vidro que leva para fora da cozinha. O dia está começando a clarear, o céu noturno começa a se tornar azul-escuro, e consigo ver a silhueta de uma grande árvore, mas pouca coisa além disso. Percebo que não sei nem em que parte do mundo estamos. — Onde estamos? — pergunto. Ele fica atrás de mim. Vejo nós dois, refletidos no vidro. Eu. Meu marido. Na meia-idade. — Norte de Londres — responde ele. — Crouch End. Dou um passo para trás. O pânico começa a aumentar. — Meu Deus — digo. — Não sei nem onde eu moro... Ele segura a minha mão. — Não se preocupe. Você vai ficar bem. Eu me viro para encará-lo, esperando que ele me diga de que maneira vou ficar bem, mas ele não o faz. — Posso preparar o seu café? Por um momento fico aborrecida com ele, mas então respondo: — Sim. Sim, por favor. — Ele enche uma chaleira. — Puro, por favor — digo. — Sem açúcar. — Eu sei — diz ele, sorrindo para mim. — Quer torrada? Respondo que sim. Ele deve saber tanto a meu respeito e, contudo, isso ainda parece a manhã depois da primeira noite que passamos com alguém que mal conhecemos: tomar o café da manhã com um estranho na casa dele, imaginando quando será aceitável ir embora e voltar para casa.