JOSÉ ADRIANO DE FREITAS CARVALHO, UNIVERSIDADE DO PORTO, FACULDADE DE LETRAS; CITCEM Alexandre Herculano, poeta religioso 1 Quando dizemos «poeta religioso» queremos aludir à sua produção poética que, directa ou indirectamente, tem como eixo organizativo a relação do poeta com Deus, o Deus cristão, melhor talvez, católico. Devemos anotar, porém, que deste ângulo de abordagem da sua poesia não decorre que 5 8 tenhamos de nos ocupar da complexa questão da religiosidade de Alexandre o I Herculano1 – não queremos dizer, porque não é o mesmo, apenas as suas ideias alh religiosas em confronto com grandes questões do seu tempo –, religiosidade arv C que já foi definida como «áspera e funda…, cavada mais tarde com notas as eit de solenidade augusta e de rigorismo implacável»2. Nem necessário seria Fr e d prevenir que não se trata de um poeta que cante os mistérios da fé ou sobre o n a dri A é 1 António José Saraiva, Herculano e o liberalismo em Portugal. Os problemas morais e culturais os dcrai sitniastnaiusmraoç»ã)o, ddaor raelggiummea ( 1o8r3g4an-1i8za6ç0ã),o L ài ssbuoaa ,a p1o9l4o9g, é5ti9c-a9 2d,e telinbteorua,l eem c rnisottãáov,e ls ec abpeímtu lqou (e« Lo icbreurazlaimsmenot oe JSO permanente de dados, mesmo se aparentemente constantes, de contextos muito distintos (épocas, obras e GIO finalidades), não permite perceber, mais além da retórica do apologeta, a complexa problemática da religio- LI sidade de Herculano. Por outro lado, parece-nos que haverá também que reflectir sobre o conceito que de RE liberdade tinha Herculano , tentando defini-lo na sua extensão e compreensão (dimensões metafísicas…, TA jurídicas…, sociais…). OE 2 Vitorino Nemésio, A mocidade de Herculano até à volta do exílio (1810-1832), I, 1934, 69, notas poe- O, P ticamente certeiras, mas que sugerem bem a necessidade de um estudo que, sem paixão e sem preconceito, N aborde a religiosidade de Herculano. Será violento perguntar por que nunca se terá encarado, quanto mais LA U não fosse por mera hipótese frente ao seu «rigorismo implacável», a questão sob o ângulo da sua «filiação» C R de defensor de «o velho cristianismo» – ele «um católico a quem repugnava tudo quanto se tinha feito desde E H o Concílio de Trento» (M. Oliveira Ramos, in Dicionário bibliográfico português, XXI, 35) - nesse janse- E nismo que, sob certos aspectos, parecia ainda vivaz à religiosidade mais tradicional da primeira metade do DR Oitocentos português? E, depois, até que ponto esse possível jansenismo, sempre tão fácil de conjugar nos AN modos de oposição política de tintas regalizantes e, à mistura com um anti-jesuitismo herdado dos refor- EX mistas do século XVIII, de oposição ao papa, não lhe ditou, como argumento de actualidade, as referências AL eles se interrogue com a unção teológica3 ou com a simples devoção afectiva a que estamos habituados quando falamos em poesia religiosa de acordo com o seu paradigma até aos fins do século XVIII, paradigma que Herculano, esporadicamente também cultivou – Loas ao Menino Jesus in Abóbada – e que ainda não desapareceu dos horizontes literários, como revela alguma poesia do século XX. Não deixa de ser curioso que a sua produção poética de carácter religioso – um «religioso» que, com mais variedade de temas e de tons, ecoará num Guerra Junqueiro ou até no dramatismo de certos versos de José Régio – abre e encerra (pelo menos a que quis e tal como a quis publicar em 1850) por poemas centrados no mistério da redenção significados na cruz (o sacrifício) de Cristo: A Semana Santa e A cruz mutilada. Sublinhemos, porém, que Herculano, se foi o único dos grandes românticos portugueses a publicar um conjunto de poesia religiosa – uma excepção que, talvez, nos deveria levar a interrogar sobre algumas «ausências» no nosso Romantismo, um romantismo que ele queria tradicionalmente cristão e patriótico4 –, não foi, porém, como certeiramente apontou algum crítico aquando do primeiro centenário do seu nascimento, um poeta de arroubos místicos…5 2 Neste momento apenas nos ocuparemos da obra poética que reuniu e publicou em 1850 e que, depois, reeditou em 1860 e em 1872, não sem antes 6 ho I 8 ltehxet dosis poeringsianra uism – c eomns tuamnt ec alasboo, rA d eS eqmuea nreas uSlatnartaa,m u imnú nmoetáravse lv aaurimanetnetso d doos al arv texto, e em outro, A vitória e a piedade, um quase novo poema – que foram, C as eit Fr de aos «velhos católicos» de Johann von Döllinger, mesmo se será importante dilucidar o sentido dessas no referências? E atrevemo-nos a lembrar quanto o jansenismo, correcta ou incorrectamente perspectivado, dria atravessa como um fantasma algumas cartas de Alexandre de Almeida Garrett a seu célebre irmão João A Baptista como vemos em Cartas apologéticas e históricas sobre os sucessos religiosos em Portugal de é os 1834 até 183… entre os dois irmãos A.J.L.A. Garrett e João Baptista Leitão de Almeida Garrett – Membro JO d19a6 «1C, 3o1m, i3s2s,ã 3o3 E, c4l4e,s 4iá5s, t4ic9a. »P oer Dalegpou, tcaodmo od ad iNssaeçmãoo,s ,I nastrsoindaulçoãuo M e .n Ootlaivse direa SReagmisomsu snedr oH Seprcinuala, nSoã o« uPmau clao-, S O tólico a quem repugnava tudo quanto se tinha feito desde o Concílio de Trento» in Dicionário bibliográfico GI LI português. Estudos de Inocêncio Francisco da Silva aplicáveis a Portugal e ao Brasil continuados por RE Brito Aranha e com amplo estudo crítico da obra monumental de Alexandre Herculano por J.J. Gomes de A Brito, Tomo XXI, Lisboa, Imprensa nacional, 1914, 35. (Citaremos sempre abreviadamente por Dicionário T OE bibliográfico português, XXI, seguida da respectiva paginação). NO, P mar 3q Juoeã «o NAar rpooieos, inaa, Aselsesxãaon ddere 2 H9.e3r.1c9u1la0n doa p Cinâtmoua roa cdroisst Piaanriessm, aop crooxmi ma afév,a a- ssei ndgeeslteaz nao dsas au pneçrãsop deoctsi vpari amoe airfiors- LA tempos e dos primeiros crentes» in Dicionário bibliográfico português, XXI, 44. CU 4 Jacinto do Prado Coelho, «Herculano Poeta – Uma imagem em negativo» in Alexandre Herculano. R E Ciclo de conferências comemorativas do primeiro centenário da sua morte.1877-1977, Porto, Biblioteca Mu- H E nicipal do Porto, 1979, 99-114 (112). DR 5 Luís de Magalhães, na Homenagem da cidade do Porto, realizada por iniciativa da Academia, opúsculo AN em que colaboraram «vários escritores e poetas ilustres», in Dicionário bibliográfico português, XXI, 242; EX Gomes de Brito, porém, realçava «a poesia solene e mística de Semana Santa» in Dicionário bibliográfico AL português, XXI, 411. pela primeira vez, notadas sistemática e cuidadosamente pelo seu amigo Joaquim José Gomes de Brito6 que, como confessa, não tendo podido ver a edição de 1872, se limitou ao confronto das três primeiras (1838, 1850, 1860), trabalho que, minuciosamente, completou António C. Lucas, na edição global da poesia herculaniana nos dois volumes correspondentes das Obras completas sob a direcção de V. Nemésio (1978). Convém, entanto, recordar alguns dados a ter em conta quando abordamos A. Herculano do ponto de vista do poeta religioso: 1º – O que o poeta oferecia em 1850 era um conjunto de poemas seus divididos em dois livros: o primeiro, A harpa do crente, e Poesias várias, o segundo. Só o primeiro nos interessa directamente aqui, pois o outro é um conjunto de poesias de temas vários, ainda que alguma, mesmo se «apaixonadamente política» como O mosteiro deserto, por exemplo7, pudesse, pela data (1832) e pelo assunto, ter figurado no primeiro livro, isto é, em A harpa do crente. 2º – Como aludimos já, A harpa do crente de 1850 não corresponde exactamente nem em texto nem em número ao conjunto de poemas que, em três séries e com o mesmo título, fora publicado em 1838. Com efeito, além de publicar algum poema então inédito, da reescrita de outros e da alteração de algum título, em 1850, Herculano, por razões que não explicou, mas que o seu amigo Serpa Pimentel tentou explicar8 com razões atinentes à política 7 dnãaoq uveollet omu oam peunbtloic –a rr oa zpõoeesm qau eD, .à P feadlrtao dqeu em ceolnhsotra, vaa cdraí tpicraim teemira r eedpieçtãidoo d –e ho I 8 al A harpa do crente (1838) e com o qual chorava a morte do Rei-Soldado em arv C 1834. as 3º – Nessa edição de A harpa do crente de1850 e nas outras duas que se Freit e seguiram em sua vida, o poeta eliminou toda a cronologia e dedicatórias d o n com que tinha feito acompanhar os poemas da edição de 1838, decisão a dri que, já em 1914, deplorava, e com razão, Gomes de Brito9. Partindo de uma é A os JO S O 6 Gomes de Brito, «Alexandre Herculano. Segunda parte. Estudos crítico-bibliográficos» in Dicionário LIGI bibliográfico português, XXI,345-474. RE 7 Jacinto do Prado Coelho, «Herculano Poeta – Uma imagem em negativo», ed. cit., 103. Note-se que, A T segundo nos parece, muitos dos versos mais «políticos» de O mosteiro deserto não deixam de fortemente OE ecoa8r C eimta dAo v pitoórr iGa oem ae psi eddea Bdrei…to,, q«uAel eHxearncdurlea nHoe rreccuollahneou. , Sdeegsudne daa p praimrteei. rEa shtourdao, se mcr íAti choa-rbpibal dioog crárefinctoes.» in NO, P Dicionário bibliográfico português, XXI,400. LA 9 Gomes de Brito, «Alexandre Herculano. Segunda parte. Estudos crítico-bibliográficos» in Dicionário CU bibliográfico português, XXI, 410-411. A falta de atenção às datas parece ter levado, em páginas com juízos ER ainda válidos, Fidelino de Figueiredo, Historia da literatura romântica portuguesa, Lisboa, Livraria Clás- E H sica Editora, 1913, 94, a escrever: «A Semana santa, de 1838, é a cada momento cortada de divagações…». DR O poema é de 1829 e, apesar do labor poético a que Herculano o submeteu, cremos que o que Fidelino de N A Figueiredo considerava «divagações» se manteve em 1850… e seguramente na edição de Poesias (1903) que EX utilizou o Mestre… AL poesia datada, o poeta oferecia, desse modo, uma A harpa do crente quase a-histórica e digo quase, porque, em nota final, deixou-nos a indicação de que A Semana Santa, de 1829, era o «poema da sua mocidade»…, isto é, dos seus 19 anos…, e a A vitória e a piedade datou-a, também em nota, do cerco do Porto nas lutas de 1832-1833.10 4º – As edições seguintes do século XX, ora reproduziram a edição de 1850-1872 (quase sempre a de 1872), ora editaram a de 1872 juntando-lhe o poema D. Pedro. Ainda que com a respectiva advertência, também assim procedeu António C. Lucas e, sem qualquer advertência, o anónimo, mas correcto, editor de A harpa do crente pela editora Europa-América (s. l.,s. d.). 5º – Assim estando as coisas, ao estudar hoje A harpa do crente deveremos ou não levar em consideração esse poema excluído (D. Pedro)? Deveremos ou não considerar os poemas (Mocidade e morte e A cruz mutilada) que Herculano publicou em 1850 e que não constavam da edição de 1838? A consideração das diversas etapas da proposta de 1850 (1829- 1838, 1839-1850) permitiria talvez compreender melhor não só a noção de exílio (não é exactamente a mesma em 1829-30, e depois em 1832-1834) – o que não quer, evidentemente, dizer que as duas noções, por vezes, não se contaminem –, mas também o porquê de inserir, em 1850, um poema como Mocidade e morte e encerrar a colecção com A cruz mutilada, poema que 8 ho I 8 aca6bºa r–a dPee spsuoballimcaern atev,u les atmenednote eemm 1c8o4n9s…id e r ação que não iria focar o al arv desenvolvimento histórico do itinerário religioso do poeta, porque, embora C as não rectilíneo, é um verdadeiro itinerário puramente interior (talvez, por Freit isso o terá despido de todas as referências históricas) o que ele quis oferecer e d em 1850 – de A Semana Santa a A cruz mutilada –, mas, sim, a sua cartilha o n a de «crente» – tão importante e tão esquecida à hora de estudar algumas dri é A perspectivas sobre temas como «o padre em Herculano», por exemplo –, JosO coo emx íalitoe…nç,ã oa oesrapçeãcoia le àa ssuoal idcoãno…cep eç ãaos drees Dpeecutsiv…a,s Ccorinsstoe…qu,ê noc hiaosm neam s…ua, S O GI concepção de liberdade, optei por ter em consideração todos os poemas LI E publicados até 1850. Esquecer D. Pedro em qualquer abordagem, mesmo R TA em uma muito sumária como esta, da poesia religiosa de Herculano – uma E PO poesia onde não há lugar nem para a Virgem Maria…, nem para os santos – NO, seria esquecer o único santo (e, para mais, santo protector) do seu Olimpo A UL – «Alma gentil, que assim nos hás deixado, / Entregues à alta dor, / Anjo C R E H E R 10 Para a relação da produção poética de Herculano com as circunstâncias da sua biografia são preciosas, D N além das notas e dedicatórias das três séries de A Harpa do crente (1838), a apaixonante exploração que faz A EX Vitorino Nemésio, A mocidade de Herculano até à volta do exílio (1810-1832), ed. cit, II, 67, 78, 85, 182, 242, AL 243-245, 249, 281,302 et passim. das preces nos serás, perante / O trono do Senhor» (101)11 – e esquecer as Loas ao Menino Jesus seria esquecer não só o seu único poema em que o mistério da Encarnação é celebrado por ocasião da visita dos Reis Magos (só dois…) ao presépio. O que, cremos, já é dizer algo do trovador (assim se definiu tantas vezes), das notas (bíblicas, tanto que, em alguns versos, lhes anotou a matriz e destacou o género: salmo…, lamentação) e dos tons (alguma vez apocalípticos) da sua harpa («Eleitos, vinde! Ide, precitos!»… «Tremei! Do altar à sombra/Também há mau dormir de sono extremo!»)…, ampla orquestração de contrapontos quer melódicos (os diferentes metros que emprega, muitas vezes até no mesmo poema numa evidente intenção contrapontística), quer temáticos (eu/outros, crente/ímpio, solidão/mundo, livre/escravo, pátria terrestre/Pátria Celeste, etc.) que, pelo que se refere a este último aspecto que remete para o exílio, parece redutor exemplificar apenas com algum extracto de O mosteiro deserto12… 7º – Postos estes condicionalismos, devemos ainda prevenir que não nos demoraremos em perspectivas genéticas e comparativistas, pois, além da ignorância atinente à mais recente bibliografia sobre tais perspectivas da obra de Herculano, pensamos que o leitor poliglota que ele foi, é, provavelmente, desde este ponto de vista, uma «floresta de enganos»… L’air du temps deve ser mais que suficiente para justificar aproximações de leituras e até de pistas que o próprio autor alguma vez gostou de evocar… Baste recordar 9 aAq.u Li,a mcoamrtoin eex neãmop ploo,d eqruiaamnt oesv otíctaurl-onso ds aosu tMroésd tiatanttioosn ds op pooéetitqau peosr t(u18g2u0ê)s .1d3e ho I 8 al 3 Carv A. Herculano que se proclama o vate…, o profeta…, o cantor…, o trovador eitas dos tempos de agora, igualmente se proclama o crente de todos os tempos. e Fr d Por isso, Deus pôde atravessar, como memória actuante, toda a sua poesia. o n Desde os tempos do Génese (Deus) e dos tempos atribulados do «povo dria querido» de Jerusalém (A Semana Santa) e do aparecimento do «Herói», é A «qou eJ, udsetpo»o…is ,d aC trrisibtou lqaçuãeo s, opforedue en ad ecvreu,z à ,s eamté ealhoas ndçaa d«ep áDtreiua sa ec adbor usonlhdaaddao»- JosO S poeta («E, do vencido consolando a sombra, /Por vós eu perdoei»), saber GIO perdoar (Vitória e piedade), passando pelo desespero e conversão do jovem ELI R moribundo minado pela doença (Mocidade e morte). A T E O P O, N 11 Por simples comodidade de trabalho, as referências entre ( ) remetem para as páginas da edição de A LA U harpa do crente, Lisboa, Europa-América, s.d.; as indicadas por ( PI) e (PII) estão tomadas da edição de C R Poesias I e II, Lisboa, Bertrand, 1978. E H 12 António José Saraiva e Óscar Lopes, História da literatura portuguesa, Porto, Porto Editora, s.d. (4ª E ed.), 715-716. DR 13 Para este e outros autores em quem Herculano «aprendeu» algumas notas da sua Harpa, serão sempre de AN ter em conta Jacinto do Prado Coelho, «Herculano Poeta – Uma imagem em negativo», ed. cit., 111, 112, 113 EX e ainda as que sugere Fidelino de Figueiredo, Historia da literatura romântica portuguesa, ed. cit., 93, 94, 98. AL Deus é, antes de mais, o criador omnipotente – «Em cada pedra, em cada flor, se escuta / Do Sempiterno a voz, e vê-se impressa / A dextra sua em multiforme quadro» (58) – que o poeta adora e louva («Nas horas do silêncio, à meia noite, / Eu louvarei o Eterno…. E a lua, resplendente / Pare em seu giro, ao ressoar nest’harpa /o hino do Omnipotente»), um cântico com que ele acompanha o hino de toda a criação, ele que, como homem e como indivíduo, sabe que, desde sempre, existia «no tipo imenso / Das gerações futuras / mente do meu Deus». Daqui tanto o «Louvor a Ele / Na Terra e nas alturas!», como a consideração da mão providente de Deus que do nascimento à morte cuida da sua criação: aves («a avezinha…, «o flamingo nos paúis)…, animais («a gazela» nos «desertos», «o cervo» na «selva amena»…, «o tigre» «no antro»…, «o touro» na «relva» )…, cearas…, «o velho pinheiro»… e, como «o medonho crocodilo» que, «se Deus mandou /Qual do norte a nuvem impelida / assim ele passou», todos passam…É «à sombra [desta] Providência posto» que, «tranquilo, e sem temor», se coloca o poeta com os seus, ainda que «frouxos hinos», «hinos de amor». (84) Ele canta (é, como veremos, um dos modos da sua oração) um Deus omnipotente, criador, cuidadosamente atento às suas criaturas e que contrasta com o Deus «bárbaro tirano» que pintam «os vis hipócritas» para, mentindo, «dominar com o férreo ceptro / O vulgo cego e insano». Estes não amam Deus, receiam Deus…, maldizem Deus... e tudo para «O trono dos déspotas da terra / Ir colocar nos céus». «Quem os 0 ho I 9 cmruê néd ou)m, c oímmpoi,o s»e m(8 4v)i oelê on csieau, smeruán fdáoc il( qduee p pearcreab Here, réc uulman mo uén, dtoan àtsa sa vveeszseass,… o al arv onde, em lugar de um Deus criador, poderoso, atento e, como vamos ver, justo, C as consolador, misericordioso, reina um Deus «tirano» que serve para justificar Freit a «tirania». Ao conceber Deus como «tirano»…, «déspota» o ímpio opõe-se e d a Deus tanto enquanto liberdade criadora como enquanto providência, esse o n a cuidado de Deus para com a sua criação em que, atentemos, o poeta não só dri é A sente «Das variegadas flores, derramadas / Na sinuosa encosta da montanha,/ JosO D(5o8) a, lctoarm doa tsaomlibdéãmo sruebfliencdtior -asoes e asrseas p, r/ó …pr idai glinboe ridnacdeen scor iaaod oCrar:i a«dLoirv erregs uaivdeos», S O GI vós filhas da espessura, / Que só teceis da natureza os hinos» (58)…, «Como é LI E livre / A vaga do oceano, é livre no ermo /A bonina rasteira ou freixo altivo. / R TA Não lhes diz: “Nasce aqui, ou lá não cresças” / Voz humana...», como acontece E PO em qualquer «pomposo jardim de verme ilustre, / Chamado rei ou nobre» (62). NO, O nascer…, o crescer…, tal como o baquear e o murchar é decisão de «da vida A UL o Senhor». «Céu livre, Terra livre….» (63). A liberdade é, consequentemente, C ER algo inerente ao ser criado e que há que admirar e defender. H E Deus, porém, é também juiz – «Ao Deus nosso juiz, ao que distingue / R ND culpados de inocentes»…» (108) – e a sua justiça é tal como a sua vingança, A EX «terrível» (40), pois não só pode conduzir os «fortes» ao cativeiro – «Eles L A em Babilónia, aos punhos ferros, / Passam de escravos miseranda vida» (37) –, como também separando «o joio do bom grão» «arroja» /Para os abismos a ruim semente…» (34). É o juízo final que, em A Semana Santa, o poeta, «o suor do pavor na fronte» (35),vê e, indeciso se em visão ou sonho, evoca com tons de Apocalipse (32-35). A este Deus «terrível» (40,76) que não perdoa crimes, mas perdoa erros – «Reclinar-me-ei à sombra / Do amplo perdão do Eterno; / Que não conheço o crime / E erros não pune o inferno» (98), medita O Soldado – não temem «os espíritos radiosos» que já não são da Terra (33), «o virtuoso» que, morrendo, logo é chamado «ao gozo eterno», mas teme-o «o ímpio» – «A quem não perdoa Deus? Somente ao ímpio / No dia da aflição, / Quando pesa sobre ele, por seus crimes, / Do crime a punição» (83) – que, saciado de «crimes», é sumido «no inferno» (101). E já aludimos a quem são, antes de mais, os ímpios…, os que maldizem Deus…, os blasfemos… A estes junta o poeta aquele «para quem a morte ou a vida é forma, / Forma somente de mais puro barro» que «nada [crê], e em nada [espera], isto é, «o ateu» (43-44). Confrontando-o, «no dia da aflição» (44), com «o conforto do cristão», aponta-lhe, diante do silêncio dos elementos, o suicídio que mais não «promete rica messe de gozo, a paz do nada», «a solidão das dores», / Onde maldigas teu primeiro alento, / Onde maldigas teu extremo arranco, / Onde maldigas a existência e a morte» (44). No entanto, o poeta pensa que se «o que não crê» contemplasse, à noite, 1 n/ uHmuma saonlaid vãooz ceo mo otu am dualt uAarrr ádbaisd tau –rb «aEs» a (q6u1i) ,n persitnec vipaalelm, aeon tqeu, aalr rniãsoq ucehmegoas,, ho I 9 al «Desse vulgo, que ao som de infernais hinos / Cava fundo da pátria a arv C sepultura» (66) –, a natureza (a brisa…, a lua…, o mar), «ele chorara, / as Qual eu chorei, as lágrimas de gozo, / E adorando o Senhor, detestaria / De Freit e uma ciência vã seu vão orgulho» (61). Independentemente o que esta, como d o n outras passagens da sua obra, possa representar, no seu quadro cultural de a dri condenação do racionalismo ateu dos seus dias a cavalo entre os fins do é A séé qcuuelo, eXmVbIoIrIa e l hoess caonmteevçeojsa dao m seéscmulao cXonIXde, noa çqãuoe fiimnaplo, rHtaerrác ualqaunio d neãsota clhaer JosO S O atribui o mesmo «crime» que a «os vis hipócritas» – alguma vez, Herculano GI LI defini-los-á melhor (107) – que, com «lábios de impostor, que engana os E R homens / Com seu meneio hipócrita, calando / Na alma lodosa da blasfémia TA E o grito» (30)…, ou a esse « hipócrita vil» «Que escarnece do Eterno, e a si se PO engana», ou a «os que nunca ao infeliz disseram / De consolo palavra ou de NO, A esperança» (29). Apesar de negar a existência de Deus, talvez porque o que UL C «os lábios negam, / e o coração confessa» (43), não «foi da ciência incrédula ER H o sectário» que «na face [da cruz] / Afrontas gravou com mão profusa». (113). E R Negar a existência de Deus, em boa filosofia, não sei se em boa teologia, não ND A será o mesmo que escarnecer do Eterno (69)…, pintá-lo como tirano…, em EX L A seu nome enganar os tristes…(107). Para estes e para os que, tão ímpios como eles, os seguem, porque «Além do limiar da eternidade / O mundo não tem réus, / O que legou à terra o pó da terra /Julgá-lo cabe a Deus» (108; P.II230), pedirá Herculano, em 1833 (A Vitória e a piedade), a misericórdia dos vencedores para com os vencidos na luta pela liberdade. Compreende-se que em A harpa do crente Deus não seja reduzido a esse Omnipotente «terrível» que domina a perspectiva dessa A Semana Santa celebrada em quarta-feira santa – «Trevas da quarta-feira, eu vos saúdo!» (26) – «Entre as tristezas / E os terrores e angústias, que resume / Neste dia […] a avita crença» (34), e não em sexta-feira santa, como poderia esperar- se, tendo em conta o tradicional horizonte das glosas do Ad sexta autem hora tenebrae facta suntsuper universam terrae usque ad horam nonam (Matth., 27, 45; Marc., 15, 33)14. Deus, porque «é bom», está disposto a receber aqueles que, como o ateu, negam a sua existência – «Ateu, entra no templo;/ Não temas esse Deus que os lábios negam/ E o coração confessa. A corda do arco / Da vingança, em que a morte se debruça, / Frouxa está; Deus é bom: entra no templo» (43) –, como atesta o poeta comovido, tal como os outros que assistem na noite das cerimónias, a quem «correm dos olhos lágrimas suaves / De compunção» (43). E mesmo se alguma vez a alma foi assaltada por «blasfémia ideia» que lhe «Calou, à luz do raio, / Seu hino à natureza», «voz» interior lhe diz que «Se ergueste a Deus um 2 ho I 9 h// inSoe u/ Enomm dei ansã od em aamldairggausr/a Q; /u Sane dtoe asme otusrtbraas toe mgraart:o // NNoos Ddeiauss ,d qe uvee nét upraai,, al arv confia, / Do raio ao cintilar» (55). Mas Herculano, explicitando que o perdão C as não é apenas um atributo de um Deus desincarnado, mas de um Deus que Freit morreu na cruz – Cristo –, diante de «a cruz que se eleva, / Como um farol e d de vida em mar de escolhos», contempla os todos aqueles que, monges ou o n a não, «passaram / Acurvados na dor , as mãos ergueram / Para o Deus que dri é A perdoa, e que é conforto / Dos que aos pés deste símbolo da esp’rança /Vêm JosO dcoenrrsaomloa r– s«eSue c oor acçáãliox a/fl Ditao »a.(m69a)r gEusrtaa an opçrãoov adre ousm c éDuesu lsh qe udee éra cmo,n f/o Ertloe… se, S O GI consolou: bálsamo santo / Piedosa fé no coração lhe verte» (43)…, «A paz LI E de Deus do mundo me consola» (66) – é essencial na compreensão do Deus R TA de Alexandre Herculano e, por isso, consolo…, consolar…, consolação…, E PO conforto…, confortar… e outros de possível conotação com eles (piedade…, NO, piedoso) são dos lexemas mais utilizados, senão mesmo os mais utilizados, A UL em A Harpa do crente, o que tem como consequência olhar a «Religião! C R E H E R 14 Para referir dois exemplos, recordem-se de Lope de Vega, o romance A la muerte de Cristo nuestro D N Señor e a canção A la tormenta de la pasión de Cristo (Rimas sacras, ed. facsimilada, Madrid, C.S.I.C. 1963, A EX 109r, 116v, respectivamente) e Francisco Manuel de Melo, o Las tinieblas de la muerte de Cristo («La cítara AL de Erato», Romance XXVIII, Obras métricas, Braga, 2006, I, 157 ). Do mísero conforto, / Abrigo extremo de alma, que há mirrado / O longo agonizar de uma saudade, / Da desonra, do exílio, ou da injustiça, /Tu consolas aquele, que ouve o Verbo, / Que renovou o corrompido mundo / E que mil povos pouco a pouco ouviram…».(67; PII213, 214-215) Estas últimas referências podem introduzir à presença de Cristo na poesia religiosa do poeta. De um Cristo que é «o Herói»…, «o Verbo»…, «o Amigo do povo»…, «o Justo», mas, curiosamente, nunca Jesus, nome que, talvez, lhe parecesse demasiadamente afectivo em contraste com o tom trágico de quase toda a sua harpa, que, mesmo se compreensível pela pose de trovador bíblico do poeta, não é propriamente o instrumento que esperaríamos. Nem sequer nesse delicado poema em que, como dissemos, celebra a incarnação de Cristo o nome de Jesus é referido (o título do poema é uma feliz atribuição do editor moderno, mas em prosa poderíamos considerar uma Meditação de Jesus, publicada em O Panorama, 1841, que, aliás, nos remeteria para A Semana Santa…), preferindo-lhe as perífrases de «Santo Filho de David / divinal / Salvador da raça humanal»…, «alto infante, Redentor »…, «Real tronco de Jessé / Mui fermoso»… (II, 194-196), epítetos que, com facilidade, poderiam encontrar-se na poesia do mesmo tema dos séculos XVI e XVII. De qualquer modo, Cristo é uma constante da sua poesia, muitas vezes apenas traduzida pela presença do seu símbolo redentor: a cruz («a redentora cruz») (116). 3 com o emE o,u ptroorsq mueo am «elnotuocsu, rnaã do as ec rcuazn»s o–u P daeu plurosd diigxairt oans osetau so caountohre qciume,e anqtousi ho I 9 al de erudito leitor da Bíblia – «não morreu toda /Após dezoito séculos» (27) arv C – como pensavam aqueles «homens de alto esforço, / Que nos rimos da as herança [de fé], e que insultamos / A Cruz e o templo e a crença de outras Freit e eras» (25) – «Quem chore / Do sofrimento o Herói ainda existe». E, como d o n já tinha prevenido logo na abertura de A Semana Santa ao reivindicar o seu a dri «eu» de crente – «Creio que Deus é Deus e os homens livres» – face a esse é A «(hniópso»c rqiusiea sm oaius antãeoís smeroás qduee dai fceorleenctteivs idliandhea gpeántrsi)a, qeuscea, rdnee cdiiav e(rrseotos mmeomdooss JosO S O um verbo que já encontrámos) da fé cristã herdada, o poeta é um dos que GI LI chora «Pelo Amigo do povo, assassinado / Por tiranos, e hipócritas, e turbas E R / Envilecidas, bárbaras e servas». (27) O poeta sabe, como cristão – «Eu, TA E o cristão, trovador do exílio» (107) – que esse sofrimento do «Amigo do PO povo» foi o sacrifício da redenção do homem caído pelo pecado e, assim, NO, A lembrou, uma única vez (se bem li), explicitamente, a «cruz da redenção» UL C que, gravada na «pedra tumular», protege a espera da ressurreição final e que ER H «na hóstia / Do sacrifício o sacerdote [eleva] sobre as vizinhas aras» (27), E R renovando esse sacrifício redentor. A redenção do homem implicava a sua ND A renovação – «o Verbo, / Que renovou o corrompido mundo» (67), renovação EX L A que Herculano, num subtil jogo com a compreensão do lexema «Verbo», conota imediatamente com a expansão da palavra renovadora «que mil povos pouco a pouco ouviram». E se atentarmos que, logo antes, a renovação pela religião é o «abrigo» dos que sofrem saudade…, desonra…, exílio…, injustiça e que, logo depois, «O nobre, plebeu, dominador, ou servo, / o rico, o pobre, o valoroso, o fraco, /Da desgraça no dia ajoelharam / No limiar do solitário templo», não será violento acentuar desde já que para o poeta a redenção-renovação foi, antes de mais – não estou a dizer exclusivamente –, uma renovação moral, logo social. Compreende-se melhor, creio, que ao contemplar A cruz mutilada à luz do «estremo /Raio de sol, passando fugitivo / na tangente do orbe» lembre que, precisamente foi a cruz-Cristo que trouxe ao mundo «Liberdade e progresso», um mundo que, como lembrou já, «Com a injúria e o desprezo, e que te inveja /Até na solidão, o esquecimento». (113) Mas o poeta é ainda, se é possível, um pouco mais explicito ao imaginar o dramático diálogo «acusador» da cruz mutilada e votada ao abandono pelos «[seus] remidos» com o próprio redentor-renovador: «E do seu Cristo, do divino mártir, / Que a ti, suplício e afronta, a ti maldita / Ergueu, purificou, clamando ao servo: “Ergue-te, escravo! / És livre, como é pura a cruz da infâmia./ Ela vil e tu vil, santos, sublimes / Sereis ante meu Pai. Ergue- te, escravo! Abraça tua irmã: segue-a sem susto/ no caminho dos séculos. Da Terra / Pertence-lhe o porvir, e o seu triunfo / Trará da tua liberdade 4 ho I 9 oé dteiao»lo g(1i1c7a)m. eCnrties toc oér,r eacstsoim, ,n ãuom triendhean, toers-creunsaodvoad oser-rliiab elretmadborrá, -loo ,q uceo,m soe al arv conclusão obrigatória na moldura cultural dos tempos de Herculano, que C as combater pela liberdade seja combater por Deus-Cristo. Freit Herculano, porém, apontou mais alguma consequência, de ampla e d ressonância social, da sua contemplação do sacrifício de Cristo. Se «a o n a piedade de Deus» é, como vimos, «o amplo manto» com que «o coração dri é A busca ir abrigar-se / No futuro » (61), pois Deus é bom, pai e, por tal, perdoa, JosO teaxmpibréamnd oC…ri/s toA oés os eeuxse mpeprlsaerg udiod osreers »a v(i1l0ta8d, o6, 7a)f rEo nHtaedroc,u lqauneo ,« uPmerad ovoeuz, S O GI mais com subtileza, não diz que quem perdoou era o «Herói», «o Verbo», LI E «o Justo», mas, sim, sublinhando a sua humanidade, «o Filho do Homem». R TA Por isso, pode apelar, em 1833, nesse comovente A vitória e a piedade para E PO a imitação desse «Filho do Homem» por parte dos vencedores da luta pela NO, liberdade, para o perdão aos vencidos: «É tempo de olvidar ódios profundos A UL / de guerra deplorável» (108). Por isso também, se, consequentemente, apela C ER a que «Piedoso o livre seja» (107), ele, por sua parte, «o cristão, trovador do H E exílio, /Contrário em guerra crua, / Mas que não [sabe] verter o fel da afronta R ND /Sobre uma campa nua», murmurou «sobre a jazida» do «infeliz» «um hino» A EX «E, do vencido, consolando a sombra», em nome dos seus companheiros L A
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