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A abolição do trabalho PDF

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A abolição do trabalho Bob Black 1985 Conteúdo Nunca ninguém deveria trabalhar. 4 O divertimento é o oposto do trabalho. 6 O que dirão estas crianças sobre os seus pais e os professores que trabalham? 7 Notas 14 2 “Existe tanta liberdade numa moderada ditadura desestalinizada como num ordinário local de trabalho americano. A hierarquia e a disciplina no escritório ou na fábrica é idêntica àquela que encontramos na prisão ou num convento.” 3 Nunca ninguém deveria trabalhar. O trabalho é a gênese de grande parte da miséria do mundo, é causa de muito do mal que acontece. Somosobrigadosaviversoboseudesígnio.Paraacabarcomosofrimento,temosqueparardetrabalhar. Isto não significa que tenhamos que desistir de fazer coisas. Mas sim, provocar uma revolução jocosa, uma nova onda de vida baseada no divertimento. Por divertimento entenda-se festividade, criação facultativa, convívio. O divertimento não é passivo, é muito mais do que o jogo das crianças. Invoco a aventura colectiva num prazer generalizado, numa exuberância gratuitamente interdepen- dente. Necessitamos de mais tempo de pura preguiça e descanso indiferente ao salário ou à ocupação. Reparem, uma vez saídos do emprego quase todos nós queremos representar, o que conduz ao esgota- mento. Oblomovismo e Stakhanovismo1 são dois lados da mesma invenção humilhante. Uma vida jocosa não é compatível com a realidade. O pior, é a maneira de encarar a vida como mera sobrevivência. Curiosamente—outalveznão—todososantigosideólogossãoconservadoresporquecrêemnotrabalho. Alguns,comoosmarxistaseamaiorpartedosanarquistas,crêemneleporqueacreditamempoucacoisa. Os liberais dizem que há que eliminar a discriminação no emprego. Nós dizemos, há que acabar com ele. Os conservadores apoiam o direito ao trabalho. Imitando o travesso genro de Karl Marx, Paul Lafargue, apoiamos o direito à preguiça. Os esquerdistas são a favor do emprego permanente. Nós estamos a favor do desemprego iminente. Os trotskistas agitam-se por uma revolução permanente. Nós debatemo-nos por uma orgia latente. Todososideólogosquedefendemotrabalhosãoestranhamenterelutantesemconfessarqueofazemem seuprópriobenefício.Semprepreocupadoscomosalário,ashoras,ascondiçõesdetrabalho,aexploração, a produtividade, a rentabilidade, estão dispostos a falar, mas sobre o trabalho. Estes peritos que se oferecem para pensar por nós raramentepartilham as suas consusões sobre o trabalho, projectando-nos assim a vida. Até lançam larachas uns aos outros sobre particularidades. Sindicatos e administrações embora hesitantes sobre o preço, concordam que temos que vender o tempo da nossa vida em troca da sobrevivência. Os marxistas pensam que devíamos ser governados por burocratas. Os “libertarianos”2 optam por homens de negócios. As feministas nada têm a obstar, desde que sejamos governados por mulheres. É óbvioqueestesideólogostêmdiferentesopiniõesacercadomododeiludiroroubonopoder.Obviamente, nenhum deles põe qualquer objecção ao que se passa, desde que continuemos a trabalhar. 1 Oblomovismo:comportamentodeOblomov,heróipatéticodanoveladeGoncharov.Autorquepreferecontemplarediscutir oUniverso,incluindooseupróprioatributo,emvezdetomarparteactivanaresoluçãodosseusprópriosproblemaseparticiparna vida.Stakhanovismo:umaideologianaex-UniãodasRepúblicasSocialistasSoviéticas(URSS),quetemporobjectivoencorajar otrabalhoduroeomaisrentávelpossível,seguindoassimoexemplodeStakhanov,ummineirodosanos30e40,cujopadrãode produtividadeganhoufama. 2 “Nofinaldaguerrainter-imperialistade1939–45,nasceunosEstadosUnidosdaAméricaumnovolibertário!Emlinguagem “snob”dizem-se,sepossívelcomumapontadesotaquecaliforniano,os“libertarianos”.Estacorrenteéessencialmenteconstituída poreconomistasque,talcomoMiltonFriedman,vãodesenvolverasteoriasdeOppenheimercontraainvervençãoestatalnaesfera económica.[…]ÉapartirdacríticadoEstado-ProvidênciaqueDavidFriedmandaráumadefiniçãodo“libertarianismo”:Aidéia central do “libertarianismo” é que as pessoas deveriam poder viver de acordo com os seus desejos. Rejeitamos completamente a idéia de que as pessoas devem ser protegidas à força contra elas mesmas” […] Opondo-se a toda a intervenção estatal na esferaeconómicaousocialsãoinimigosabsolutosdosocialismodeEstado.Estastomadasdeposiçãolevaramos“libertarianos”a aliarem-seaosconservadoresdoPartidoRepublicano,sendoumatalaliançajustificadapelanecessidadedeumauniãocontrao comunismomundial,eadegarantiro“laíssezfaire”económico.Adoutrinaacaba,defato,porconduziraumareinvenção,ouantes, aumaperfeiçoamentodasociedadecapitalista.Aposta-senumdeixarfazertotal,poroposiçãoaumaeconomiaautoritariamente dirigida.[…]AguerradoVietnameeasrevoltasestudantisfavorecem,em1969,arupturadaaliança“conservadores-libertarianos”, apesar de alguns destes últimos apelarem ao voto nas eleições em que Reagan foi eleito. A partir desta ruptura, o movimento estruturou-se,originando,entreoutros,o“PartidoLibertário”queconcorreemquasetodasaseleiçõesqueanimamavidapolítica norte-americana”.(M.Bakoufelier,inrevistaMaldiçãon.º1—1986). 4 Talvez não estejam a levar a sério o que estou a dizer. Não somente estou a brincar como também estou a falar a sério. Ser jocoso não significa ser burlesco, embora a frivolidade não seja trivialidade. Muitasvezesconvémtratarafrivolidadedeummodosério.Gostaríamosqueavidafosseumjogo,mas umjogodealtaaposta.Queremosjogarparanosdefendermos.Serjocosonãoéser“quaaludic”3.Temos em grande estima o torpor, mas só é recompensador quando pontuam outros prazeres e passatempos. Nãoestamosapromoveradesocupaçãocomoumadisciplinaadministrada,chamadao“descanso”,longe disso. O descanso quer dizer não trabalhar por amor ao trabalho, é o tempo em que saímos do emprego semtodaviadeixardepensarnele.Muitagenteexisteque,aoregressardeférias,ficatãodeprimidaque só descansa depois de retomar o seu posto. A diferença entre o trabalho e o descanso reside no fato de no trabalho sermos, pelo menos, pagos pela nossa cedência e enfraquecimento. Não estamos a tentar definir jogos. Quando dizemos querer abolir o trabalho, queremos mesmo dizer isso, definindo os nosso termos de um modo não idiossincrático. A nossa mínima definição de trabalho é aquela em que somos obrigados a produzir, isto é a produção compulsória. Ambos são princípios essenciais.Otrabalhoéaproduçãopelaeconomiaoupormeiospolíticos,porpessoasdecabelosruivos ou por pregadores, por outras palavras, a cenoura é igual ao pau. Porém, nem tudo o que criamos é trabalho e ele nunca é propositadamente executado, é-o para que alguém saia beneficiado da sua produção. É isto que significa o trabalho. Defini-lo é desprezá-lo. E assim sendo, é muitas vezes pior do que a sua própria definição. É necessária uma cuidada elaboração do tempo. Adiantando, o trabalho é um crivo nas sociedades, incluindo as industrializadas, sejam elas capitalistas ou comunistas. Por isso ele é variado, conforme às suas características para realçar todo o ódio que em si encerra. Usualmente, (e isto é ainda mais verdadeiro em sociedades cuja economia se encontre estatizada, do que nas de “livre mercado”, onde o Estado é na maior parte dos casos, o único empregador e onde toda a gente é empregada) o trabalho é uma ocupação e é “salariato”, o que quer dizer que tenho que te vender ao “Plano”. No entanto, 95% dos americanos que trabalham fazem-no para alguém. Na defunta URSS ou na actual Cuba, ou em qualquer outra experiência do “socialismo de Estado”, o qual necessita da força da adulação, o número dos empregados aproxima-se dos 100%. Enquantooscamponesesdodenominado“terceiromundo”—noMéxico,Brasil,Turquia—sededicam à agricultura, uma tradição que dura há muitos milénios, todos os que trabalham na indústria e nos escritórios são empregados que estão bem vigiados. Pagamos impostos ao Estado e renda aos senhorios para podermos adquirir o sossego. Este é, aliás, um negócio que continua de vento em popa. Todavia, o trabalho moderno tem muito piores implicações. As pessoas não só trabalham como têm tarefas. Cada um tem uma tarefa a cumprir, o que equivale a produção diária. Mesmo quando a tarefa não nos dá muito que fazer (o que praticamente não acontece), a monotonia da sua obrigatoriedade esgotaanossapotencialidadededivertimento.Oempregosignificaoalugueldasenergiasdeumapessoa por um limite de tempo razoável. E por mais engraçada que a tarefa seja, aquilo que tem de ser feito durantequarentahorasporsemana,jánãofalandodascondiçõesemquetemdeserexecutado,ésomente umfardo.Oobjectivosãooslucrosdosproprietáriosquenãocontribuememnadaparaoprojecto.Isto é o verdadeiro mundo do trabalho: um trabalho burocraticamente impudente, sexualmente devastador e discriminatório, com os chefes cabeças ocas a explorar e a escapar dos seus subordinados, se for caso disso, bem entendido. O capitalismo na vida real suborna aquele que mais produz por exigência dum controlo central. A degradação que muitos trabalhadores experimentam é a condição imposta pela denominada “disci- plina”.Foucaultclassificou,demodosimplesesatisfatório,estefenómenode“complexado”.Adisciplina consiste na totalidade do tempo estipulado no emprego. Por outras palavras, cumprir sem sem ficar isento da vigilância do trabalho corrompido, do trabalho forçado, da produção contigente, etc. A dis- ciplina é aquilo que a fábrica, o escritório e a empresa partilha com a prisão, a escola e o hospital psiquiátrico. É uma coisa historicamente original e terrível. Muito para além das capacidades de alguns ditadoresdemoníacoscomoNero,GengisKhaneIvan“oterrível”.Paratodososseusmaléficospropósi- tos,nuncadispuseramdomecanismoparaocontrolodosseussúbditostãoperfeitocomoaqueledeque dispõem os modernos déspotas. Disciplina é o diabólico modo moderno de controlo. É uma inovadora intrusão que necessita de ser interditada na primeira oportunidade. 3 “Quaaludic”:dequaalude,umcândidonomeparaosedativohipnótico“methaqualone”,conhecidonaEuropapor“Mandrax”. 5 O divertimento é o oposto do trabalho. O divertimento é sempre voluntário. Quando é forçado, é trabalho. É axiomático. Bernie de Koven definiu o divertimento como uma “suspensão de consequências”. O que não é aceitável se significar que o divertimento não tem consequências. Jogar e dar são hermeticamente relativos, são procedimentos e facetas transaccionais do mesmo impulso, o instinto do divertimento. Ambos partilham um desprezo aristocrático pelos resultados. O jogador ganha alguma coisa quando joga. É por isso que ele joga. Mas o prémio é a experiência obtida pela actividade — seja ela qual for. Alguns estudantes atentos ao divertimento, como Johan Huizinga (Homo Ludens) definem o jogo como uma acção onde se seguem regras. Respeito a erudição de Huizinga, mas rejeito os seus constrangimentos. Há inúmeros bons jogos — xadrez, basquetebol, monopólio, “bridge” — que têm regras, porém, existe no divertimento muito mais coisas do que aquilo que existe nesses jogos. Preservação, sexo, dança, viagens — estas práticas nãopossuemregrasmasnãodeixamporissodepoderemserdivertimento.Podemosjogá-lascomregras, mas, pelo menos, sem ser imperioso estabelecê-las com antecedência. O trabalho troça da liberdade. O perfil oficial é que todos temos direitos e vivemos em democracia. Outrosinfelizesquenãodispõemdasmesmasliberdadesqueanóssedispensa,sãoobrigadosavivernum Estado omnipotente e inquisidor. Estas vítimas obedecem a ordens, não importa a sua arbitrariedade. A autoridade conserva-as debaixo de uma apertada vigilância. O Estado controla até ao mais pequeno pormenor a vida de cada um. Os informadores fazem regularmente relatórios para as autoridades. Os guardas encarregues do controlo somente entregam os seus relatórios aos superiores, sejam “públicos” ou “privados”. A dissidência e a desobediência são punidas. Tudo isto é suposto ser uma má coisa. Obviamentequeédefatopéssimoetrágicoviveremsemelhantesociedade.Todavia,oqueacabámos de relatar é também a descrição do emprego moderno. Os liberais, conservadores e “libertarianos” que sequeixamdototalitarismosãofonéticosehipócritas.Existetantaliberdadenumamoderadaditadura desestalinizada como num ordinário local de trabalho americano. A hierarquia e a disciplina no escri- tório ou na fábrica é idêntica àquela que encontramos na prisão ou num convento. Na verdade, como Foucault e outros mostraram, prisões e fábricas nasceram ao mesmo tempo e os seus membros imitam conscientementeastécnicasdecontroloumdooutro.Umtrabalhadoréumescravotemporal.Opatrão determina as horas a que tens de entrar, quando é que tens de sair e o que tens de fazer durante esse espaço de tempo. Ele decide a quantidade de trabalho que tens de fazer e a rapidez em que o realizas. Ele é livre para te controlar, até para te humilhar, guiar e se ele achar necessário, escolhe a roupa que devesvestirouquantasvezespoderásiràcasadebanho.Comalgumasexcepções,podedespedir-tecom ousemcausaalguma.Eletemosseusespiõesesupervisoresemcimadetiepossuiumprocessodecada trabalhador.E,seotrabalhadorcometeumactode“insubordinação”,comoseelefosseumacriançamá, não só o despede, como também o desqualifica para futuros empregos. É claro que as crianças recebem o mesmo tipo de tratamento em casa e na escola, justificado pela sua imaturidade. 6 O que dirão estas crianças sobre os seus pais e os professores que trabalham? Amaioriadasmulheresedoshomenstêmqueestaracordadosdurantedécadasdassuasbrevesvidas paraconquistaremosseus“salários-marmitas”.Nãoéilusóriodenominaronossosistemadedemocracia, capitalismooumelhoraindadeindustrialismo,masoseuverdadeironomeéfascismofábricaeoligarquia deofício.Quemafirmarqueestaspessoassãolivresestáamentirouéestúpido.Tuésaquiloquefazes.Se fazescoisaschatas,estúpidasoumonótonas,acabaráschato,estúpidoemonótono.Aexistenterastejante “cretinização” é revelada pelo trabalho mais do que, inclusive, pelo triste mecanismo da televisão e da educação. Um povo que se encontra arregimentado, habilitado para o trabalho pela escola, colocado entre parêntesis pela família e finalmente no lar para a terceira idade, está habituado à hierarquia e psicologicamenteescravizado.Assuasaptidõesàautonomiaencontram-setãoatrofiadasquetemmedo do que possa significar a liberdade. Cada membro desse povo transporta para dentro da família a sua treinadaobediêncianotrabalhoiniciando,destemodo,areproduçãodosistemaemdiferentescaminhos: políticos, culturais e outros. Uma vez esvaziada no trabalho a vitalidade do povo, os indivíduos ficam aptos para se submeterem em todas as coisas à hierarquia e ao saber dos peritos. Uma vez submetidos, as pessoas estão prontas a serem usadas. Estamos tão ligados ao trabalho que nem sabemos o mal que nos faz. Temos que confiar nos ob- servadores exteriores de outros tempos ou culturas para apreciar a extremidade e a patologia da nossa presenteatitude.Weberqueria-noscomunicaralgumacoisaquandoreferiuasemelhançaexistenteentre o trabalho e a religião — o Calvinismo1. Passados quatro séculos, emerge hoje apropriadamente rotu- ladodeculto.Teremosquetrazeraténósavisãodaantiguidadeparacolocarotrabalhonaperspectiva exacta. Os nossos antepassados viam o trabalho tal como ele é. O capitalismo recebeu a bênção dos seus profetas. Vamospretender,porummomento,queotrabalhonãonosprejudica.Vamosesquecerqueotrabalho não afecta a formação do nosso carácter. Vamos fingir que o trabalho não é, nem chato, nem cansativo, nem humilhante. Mesmo assim, o trabalho irá troçar das nossas aspirações humanistas e democratas e ocupar muito do nosso tempo. Sócrates disse que o trabalho manual faz de nós maus amigos e maus cidadãos porque não temos tempo para cumprir as responsabilidades da amizade e da cidadania. Ele tinha toda a razão. Por causa do trabalho, pouco importa o género ou tipo, estamos sempre a olhar 1 “Calvinismo”:religiãofundadaporJ.Calvino—oterceirohomemdarevoluçãoprotestantequenasceuemNoyon,perto deParis,a10dejulhode1509.Poucodepois,influenciadopelareformadeLutero,acreditouterencontradotambémevidentes contradiçõesentreas“SagradasEscrituras”eateologiacatólica.Destemodo,em1534renunciouaosseusbenefícioseclesiásticos eabandonouFrançaparaserefugiarnaSuíça,ondeescreveu“DaInstituiçãodaReligiãoCatólica”.Comasuadoutrinaredigida lançou-se à acção em Genebra onde triunfava a rebelião de Zwinglio. Muito mais intransigente do que Lutero e Zwinglio, não aceitou,comoestesofizeram,situarasuareligiãoaoserviçodoEstado.AquiloquetentoufoisubmeteroEstadoàsuareligiãoe paraissoapresentou-secomorepresentantedeDeus.Compreendendoqueestavamameaçadosdecairdebaixodaintransigência teocrática de Calvino, os habitantes de Genebra ergueram-se contra ele e expulsaram-no. Calvino retirou-se para Estrasburgo, cidadeondecasoucomumaviúvachamadaIdelettedeBure.Entretanto,osseguidoresdeCalvinotinhamconseguidoimpor-se em Genebra, o que permitiu este de entrar como vencedor na cidade, da qual foi um autêntico rei e senhor até ao dia da sua morte, em 1564. O reinado de Calvino foi um reinado de terror. Possuía vigilantes de bairro que denunciavam todos quantos se opunham ou mostravm reticências em aceitar o calvinismo. A lista das vítimas de Calvino foi interminável. Entre os quais recordemosaterrívelmortenafogueiradomédicoespanholMiguelServet,queousoupolemizarcomele.Foi,noentanto,Calvino que deu à doutrina do trabalho toda a sua importância no pensamento e na vida cristã. Fez dela o fundamento de uma ética socialqueexerceráprofundaedurávelinfluência,naSuíça,nosPaísesBaixos,naInglaterra,naEscóciaenosEstadosUnidosda América.Omandamentodotrabalhotem,paraele,umaautoridadeparticularpelofatodo“Criador”,aopromulgá-lo,sedara simesmocomoexemplo.Aociosidadeeapreguiça,assimcomoablasfémia,sãoofensasàmajestadedivinaeéporissoqueelas são“amaldiçoadasporDeus”.AdoutrinadeCalvinoencontra-seexpostanolivroacimacitado. 7 paraorelógio.Aúnicacoisa“livre”,aquechamamos“tempolivre”,éotempoquenadacustaaopatrão. Aquilo a que designamos “tempo livre” é, a maior parte das vezes, o momento em que nos preparamos para voltar, ir e retomar ao trabalho e dele recuperar. “Tempo livre” é eufemismo, considerando o fator produtivo. Não só as despesas de transporte, como também o tempo que levamos para chegar ao trabalho, são despesas que nós suportamos e tempo gratuito que nos é roubado. Não foi por acaso que Edward G. Robinson, num dos seus filmes de “gangsters”, exclamou: “O trabalho é para os ‘marrões’!”. Platão e Xenofonte atribuem a Sócrates, e obviamente partilham com ele, a opinião de que o tra- balho provoca efeitos destrutivos no trabalhador como cidadão e ser humano. Heródoto identificou a desobediência ao trabalho como uma contribuição da cultura clássica Grega no seu mais feliz momento. Cícero declarou que “quem trabalha por dinheiro vende-se e coloca-se na categoria de escravo”. A sua candura hoje é rara. No entanto, as sociedades primitivas contemporâneas que costumamos olhar de cima produziram porta-vozes que esclareceram os antropólogos do Ocidente. Nas palavras de Pospisil, os Kapauku do Oeste do Irian têm um sentido de equilíbrio na vida. Por isso, só trabalham dia sim, dia não, sendo o propósito do dia de “folga” o de “recuperar a energia e a saúde perdidas”. Os nossos antepassados, ainda no século XVIII, embora já estivessem bem avançados no caminho para a nossa realidadedehoje,pelomenostinhamconsciênciadaquiloquenósesquecemosequeéopontovulnerável da industrialização. A sua devoção religiosa à “Segunda-Feira Santa”, que deste modo estabelecia a se- mana dos cinco dias (150 a 200 anos anteriormente à sua consagração na lei), foi o desespero dos donos das primeiras fábricas. Resistiram durante muito tempo ao toque do sino, o antecessor do relógio de ponto.Defato,foiprecisosubstituir,aolongodeumageraçãoouduas,oshomensadultospormulheres habituadasàobediênciaecriançasqueerapossívelmoldaracondizercomasnecessidadesdaindústria. Mesmo os camponeses explorados do “antigo regime” conseguiram recuperar uma parte substancial do trabalho que pertencia aos seus senhorios. Segundo Lafargue, 1/4 do calendário dos camponeses de França eram domingos e feriados. E as figuras de Chayanov das aldeias da Rússia Czarista (as quais nãoconstituíramexactamenteumasociedadeprogressista)demonstramigualmenteque1/4ou1/5dos dias do campesinato eram dedicados ao repouso. Os Mujiques admirar-se-iam com o fato de nós só trabalharmos. E nós deveríamos fazer o mesmo. Paraentendermosaenormidadedoestrago,proponhoqueconsideremosasantigascondiçõeshumani- táriasquandoohomemvadiavacomocaçadornumasociedadesemgoverno,ousemdonodepatrimónio. Hobbes suspeita que a vida era uma luta constante pela (sobre)vida, uma vida imunda, bruta e curta. Uma guerra furiosa contra a natureza áspera e com a morte a aguardar os mais fracos ou aqueles que não são capazes de enfrentar a luta. Na actualidade isto é usado para meter medo às comunidades para que não se habituem a viver sem governantes. Tal como acontecia na Inglaterra de Hobbes, num períododeguerracivil,quandoesteescreveu,em1657,“Leviathan,ortheMatter,FormandPowerofa Commonwealth”(Leviatão,ouamatéria,formaepoderdoEstado).OscompatriotasdeHobbestinham encontrado formas alternativas de vida, particularmente na América do Norte, mas a compreensão de outras maneiras de viver era muito remota. (As classes mais desfavorecidas, aqueles que se encontravam mais próximos das condições dos aborí- genes da América do Norte, compreenderam-nas melhor e acharam-nas atractivas. No século XVII, os ingleses que desertaram ou que tinham sido capturados, recusaram retomar ao seu país de origem.) “A sobrevivênciadomaisforte”—aversãodeThomasHuxleydoDarwinismo—eraumaavaliaçãomuito mais correcta sobre a realidade da situação económica na Inglaterra Vitoriana do que a da selecção natural, uma evolução facultativa, como Kropotkine provou no seu livro “A Ajuda Mútua”. Kropotkine sabiaoqueestavaadizer.Asuacondiçãodecientistageógrafoeaoportunidadeinvoluntáriaparareali- zar esses estudos quando foi exilado na Sibéria, permitiram essa prova científica. Como algumas teorias sociais e políticas referem, a história que Hobbes e os seus antecessores contaram foi, na realidade, uma autobiografia irreconhecível. No artigo intitulado “The Original Affluent Society” (Idade da Pedra, Sociedade da Abundância), o antropólogo Marshall Sahlins ao estudar os colectores de caça fez explodir o mito Hobbesiano. Os colectores de caça trabalham muito menos do que nós. Além disso, é difícil distinguir esse trabalho daquilo que nós consideramos hoje como divertimento. Sahlins diz que o “trabalho” dos caçadores e colectores em busca de alimento é intermitente e melhor do que o trabalho permanente. O descanso é abundante.Aocontráriodamaioriadenós,dormemduranteodia.Otrabalhoquefazem—trabalham 8 uma média de 4 horas por dia e supondo que aquilo que fazem é aos nossos olhos trabalho —, são esforços que parecem ser efectuados com habilidade e que provocam a evolução da capacidade física e intelectual. O trabalho indiferenciado em grande escala, como disse Sahlins, é impossível. Este tipo de trabalho (como modernamente também se designa, não qualificado), só se tomou possível com a industrialização. Assim, a definição de Friedrich Schiller sobre o divertimento, é satisfatória. Para ele, o divertimento é a única ocasião em que o Homem realiza a sua capacidade humanitária ao dar pleno “divertimento” a ambas as partes da sua dupla natureza: pensar e sentir. Como ele afirmou, “o animal só trabalha quando necessita de alimentos e diverte-se quando satisfaz essa necessidade”. (Uma versão moderna, de Abraham Maslow — indecisamente crescente —, é a contraposição entre a deficiência e a motivação da produtividade). Divertimento e liberdade são, aos olhos da produção, objectos que se fundem um no outro. Mesmo Marx, que pertence (por todas as suas boas intenções) ao panteão produtivo, observou que o domínio da liberdade não principia enquanto o trabalho sob a coação da necessidade e da utilidade externaexistir.Nuncachegouaconduzirclaramenteestaafortunadacircunstância,àaboliçãodotraba- lho. É um pouco anómalo, afinal, ser pró e anti-trabalhador, mas nós podemos sê-lo. A aspiração para ir atrás ou à frente na vida é evidente em qualquer sociedade ou na história cultural da pré-indústria europeia, como o testemunha entre outros, M. Dorothy Georges na sua “England in Transition” (Ingla- terraemTransição)ePeterBurke,noseu“PopularCultureinEarlyModernEurope”(CulturaPopular no Início da Europa Moderna). Também pertinente é o ensaio de Daniel Bell “Work and Its Discontents” (O Trabalho e os seus Descontentamentos), o primeiro texto, penso eu, que refere a revolta contra o trabalho. E, em tantas palavras, que se fossem compreendidas tornar-se-iam uma correcção importante ao volume onde se encontram reunidas, “O fim da ideologia”. Nem os críticos, nem os sacerdotes repararam que “O fim da ideologia”deBell,nãoquerdizerofimdainquietaçãosocial,massim,oprincípiodeumanovafasenão constrangida e ignorante da ideologia. Foi Seymour Lipset, não Bell, que anunciou, ao mesmo tempo, no seu livro “Political Man” (Homem Político), que “os problemas fundamentais da revolução industrial foram resolvidos”. Como Bell realçou, a “The wealth of Nations” (A riqueza das nações) de Adam Smith, para além do seu evidente entusiasmo com o mercado e a divisão do trabalho, presta mais atenção ao pior lado do trabalho do que Ayn Rand ou os economistas de Chicago, ou qualquer outra referência moderna de Smith. Adam Smith observou que a compreensão da grande maioria dos homens é formada no local de emprego. “O homem que passa a sua vida executando funções (…) geralmente torna-se estúpido e ignorante, tão e mais estúpido e ignorante, quanto aquilo que o ser humano pode ser”. Aqui, em poucas palavras, está a minha crítica do trabalho. Em 1956, Bell identificou, na época dourada da imbecilidade de Eisenhower e da auto-satisfação americana, o não organizado, o não organizável e o mal estar dos anos 70 e, desde então, tudo aquilo que não se pode explorar é ignorado. E, uma das coisas que frequentemente se ignora é a revolta contra o trabalho. Não figura em nenhum texto escrito por economistas, tais como Milton Friedman, Murray Rothbard, Richard Posner porque, do ponto de vista destes senhores, a questão, como é costume ser afirmado no “Star Trek”, “não conta”. Se estas objecções, feitas por amor à liberdade, não persuadiram os humanistas da urgência de mudança, há outras que não podemos menosprezar. Otrabalhoéperigosoparaatuasaúde.Naverdade,otrabalhoéhomicídiodeumpovoouassassíniode umacomunidade.Directamenteouindirectamente,otrabalhoirámataramaiorpartedostrabalhadores. TodososanosmorremnaUSA,entrecatorzemilevinteecincomiltrabalhadoresvítimasde“acidentes” no trabalho e mais de dois milhões ficam deficientes. Registe-se que estes algarismos são estabelecidos por uma estimação conservadora, o que constitui uma aproximação insultuosa. Portanto, não calculam meiomilhãodecasosdedoençasoriginadasanualmenteporviadotrabalho.Deiumavistadeolhosnum livrodemedicina,comcercade1200páginas,sobredoençasocupacionais.Oquedesselivroretireiforam raspas superficiais. A estatística conta com casos evidentes, como os cem mil mineiros com doenças nos pulmões e dos quais quarenta mil morrem todos os anos. Uma fatalidade superior à sida [Nota: sida é o mesmo que AIDS — a tradução deste texto é de Portugal], por exemplo. Isto pode fazer-nos reflectir 9 se tomássemos em conta a pretensão de alguns, quando se diz que a sida aflige particularmente os sexualmentepervertidosequeestesdeveriamcontrolarosseusvícios.Porém,aactividadedomineiroé sacrossanta.Oqueaestatísticanãorevelaéonúmerodepessoas,maisdedezmilhões,quetêmassuas vidas encurtadas pelo trabalho. E isto é, portanto, homicídio. Pensamos nos médicos que se matam a trabalhar até aos 50 anos. Pensamos em todos aqueles que trabalham até à morte. Mesmo que não morras, ou não fiques inválido dentro do trabalho, vais com todas as tuas forças trabalhar,voltardotrabalho,procurartrabalho,outentaresquecerotrabalho.Amaioriadestaspessoas são vítimas do automóvel e fazem disso uma actividade obrigatória. Temos também que contar com a poluiçãoindustrial,oalcoolismoeoutrasdrogasevíciosqueotrabalhoincentiva.Ocancroeasdoenças de coração são modernas aflições, muitas das vezes provocadas directa ou indirectamente pelo trabalho. Assim,otrabalhoinstitucionalizaanossamaneiradeviver.Aspessoaspensamqueoscambojanos(e mais recentemente os habitantes do Ruanda, por exemplo) eram malucos quando se exterminavam uns aosoutros,masseráquesomosdiferentes?Matamospessoasatrabalharemparapodermosvender(outro exemplo) “Big Macs” e “Cadillacs”, aos sobreviventes. As nossas quarenta ou cinquenta mil pessoas que anualmentesofremacidentessãovítimas,nãomártires.Morrerampornada,oumorrerampelotrabalho. Contudo, o trabalho não é algo pelo qual valha a pena morrer. Más notícias para os liberais: brincarmos às regulamentações é inútil neste contexto de vida e morte. Aintençãoeraqueagovernamental“OccupationalHealthandSafetyAdministration”policiasseocerne do problema, que é a segurança no local de trabalho. Mesmo antes de Reagan e o Tribunal Supremo a sufocarem, a OHSA era uma farsa. Com os níveis orçamentais da era Carter, anterior e “generosa”, (em termos contemporâneos), um local de trabalho podia esperar a visita de um inspector da OHSA uma vez em cada quarenta e seis anos. O controlo da economia por parte do Estado não é solução. O trabalho é, (se ele é alguma coisa), muito mais perigoso nos estados socialistas do que aqui. Milhares de trabalhadores russos morreram ou ficaram feridos na construção do metro de Moscovo. Há histórias decorrentes sobre desastres nucleares soviéticosqueforamabafadosequefazemparecerTimesBeacheThreeMileIslandexercíciosanti-aéreos deescolaprimária.Poroutrolado,adesregulamentaçãoqueestánamodanosdiasquecorremnãofará melhor e provavelmente irá doer. Do ponto de vista da saúde e da segurança, por exemplo, o trabalho atravessou a sua fase mais tenebrosa nos dias em que a economia mais se aproximou do laissez-faire. Historiadores como Eugene Genovese afirmaram de forma persuasiva que os trabalhadores de fábrica assalariados da América do Norte e da Europa estavam numa pior situação do que os escravos das plantações do Sul. Do ponto de vista da produção, qualquer novo arranjo das relações entre burocratas e homens de negócios pouca diferença parece fazer. Umatentativasériadeimporatéospadrõesbastantevagosqueteoricamentepodemserimpostospela OHSA, provavelmente iria provocar o colapso da economia. Aparentemente, aqueles que os deveriam impor sabem disso, visto que nem sequer tentam interceder junto da maior parte dos infractores. Oqueatéaquidissenãodevesercontroverso.Muitostrabalhadoresestãofartosdotrabalho.Háaltas e crescentes taxas de absentismo, desacatos, roubos e sabotagens praticados por empregados, greves selvagens e uma tendência generalizada para “rentabilizar” o trabalho ao máximo. Talvez estejamos a encaminhar-nos em certa medida para uma rejeição consciente e não apenas visceral do trabalho. E mesmo assim, a impressão dominante, generalizada entre os patrões e os seus agentes, mas também muito divulgada entre os trabalhadores, é que o trabalho é inevitável e necessário. Eudiscordo.Éhojepossívelabolirotrabalhoesubstitui-lo,namedidaemquesirvaparafinspositivos, por uma panóplia de actividades de um tipo novo. A abolição do trabalho requer uma abordagem sob doispontosdevistadistintos.Oquantitativoeoqualitativo.Noquedizrespeitoaoaspectoquantitativo, temos de reduzir drasticamente a quantidade de trabalho que está a ser feita. Presentemente, a maior parte do trabalho é inútil ou pior do que isso, por conseguinte, deveríamos simplesmente ver-nos livres dele.Poroutrolado—epensoqueesteéocernedaquestãoeonovopontodepartidarevolucionário—, teremos que agarrar no que é importante fazer e transformar essa actividade numa agradável variedade dedivertimento,arteepassatempo.Nãosedistinguindodeoutrosprazeres,exceptoqueelesacontecem para chegar a produtos finais úteis. Certamente esse pormenor não os deverá tornar menos atractivos. Aí todas as barreiras artificiais do poder e da propriedade poderão cair. A criação poderá tornar-se recriação. E todos nós poderemos deixar de ter medo uns dos outros. 10

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