11 ________________Anemia em pré-escolares e intervenção nutricional com snacks fonte de ferro 1. INTRODUÇÃO 1.1. ANEMIA E DEFICIÊNCIA DE FERRO Anemia é definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como a condição na qual o conteúdo de hemoglobina no sangue está abaixo do normal como resultado da carência de um ou mais nutrientes essenciais. Os principais efeitos adversos e conseqüências são: fadiga generalizada, anorexia, menor disposição para o trabalho, apatia, retardo no crescimento, perda significativa de habilidade cognitiva, baixo peso ao nascer, mortalidade perinatal e dificuldade de aprendizagem (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004). A anemia é comum mesmo entre famílias de melhor nível socioeconômico e sua tendência secular no Brasil é de aumento (MONTEIRO et al., 2000). Estima-se que a deficiência de ferro é responsável por cerca de 50% de todas as causas de anemia (WHO/FAO, 2006). Outras possíveis causas são: hemólise por malária, deficiência da glicose-6-fosfato desidrogenase, defeitos hereditários na síntese de hemoglobina e deficiências nutricionais, por exemplo, vitamina A, B , C e ácido fólico. Perdas de sangue tais como 12 as associadas com esquistossomose, infestação por ancilóstomo, Trichuris trichiura, amebas, hemorragia em crianças e traumas também podem resultar em ambos: deficiência de ferro e anemia (WHO, 2001). No caso de infestação por Ancylostoma duodenale ou Necator americanus, as perdas de sangue ocorrem tanto pelo próprio sangue sugado pelo parasita, como 12 ________________Anemia em pré-escolares e intervenção nutricional com snacks fonte de ferro também pelo sangramento decorrente da lesão na mucosa intestinal. Já a competição por alimento pode ser causada pela infestação por Ascaris lumbricoides e Giardia lamblia (QUEIROZ e TORRES, 2000). Além desses fatores, a deficiência de ferro pode ser causada pelo inadequado consumo dietético e geralmente é acompanhada de desnutrição e infecção crônica (DRAPER, 1997). A prematuridade infantil e o baixo peso ao nascer, associados ao abandono precoce do aleitamento materno exclusivo, são as causas mais comuns que contribuem para a espoliação de ferro no lactente (QUEIROZ e TORRES, 2000). O leite materno tem conteúdo relativamente baixo de ferro, embora seja um ferro melhor absorvido que o ferro encontrado no leite de vaca. A deficiência de ferro comumente desenvolve-se após os 6 meses de idade, principalmente se a alimentação complementar não prover suficiente quantidade de ferro, mesmo para as crianças amamentadas exclusivamente ao peito (WHO, 2001). O principal problema durante o primeiro ano de vida e, de modo geral, durante toda a infância é suprir ferro nutricional suficiente e assegurar que uma proporção adequada desse ferro seja absorvida. Os estoques de ferro presentes no recém-nascido e o ferro oriundo do leite materno provêm ferro suficiente para atender as demandas da criança até os 6 meses de idade, após esta fase outras fontes de ferro são necessárias (DRAPER, 1997). Os recém-nascidos de baixo peso têm menores reservas de ferro, sendo 13 ________________Anemia em pré-escolares e intervenção nutricional com snacks fonte de ferro maiores os riscos de apresentarem sinais de deficiência em idade mais precoce (LÖNNERDAL e DEWEY, 1996). Além desses aspectos, devem ser considerados o baixo nível sócio- econômico e cultural, as condições de saneamento básico e de acesso aos serviços de saúde, o fraco vínculo na relação mãe-filho e a multiparidade com intervalo interpartal curto, impossibilitando a reposição das perdas nutricionais da gestação anterior e, deste modo, causando a anemia na gestante e muitas vezes, no recém-nascido (QUEIROZ e TORRES, 2000). Por todas as conseqüências já bem conhecidas da deficiência de ferro, a WHO a categoriza como um dos dez mais sérios problemas de saúde no mundo atual. Cerca de 40% das pessoas em países em desenvolvimento sofrem de deficiência de ferro. Este índice em 2000, no Brasil, era de 45%. Já na Etiópia atingia 85% e na China, 8%. Nos últimos 15 anos, a deficiência de ferro tem assumido maior importância devido a evidências de sua relação com prejuízo mental, afetando, por exemplo, o quociente de inteligência (QI), que apresenta queda de 5 a 7 pontos em crianças deficientes (UNICEF, 2004). De acordo com dados de mortalidade da WHO, cerca de 0,8 milhões de mortes por ano podem ser atribuídas à deficiência de ferro. Em termos de perda de vida saudável, expressa em DALY´s (Disability-Adjusted Life Years), a anemia por deficiência de ferro ocupa o 14º lugar no rank das principais causas de DALY´s perdidos no mundo no ano de 1990 (UNILEVER, 2001). 14 ________________Anemia em pré-escolares e intervenção nutricional com snacks fonte de ferro O ferro desempenha importantes funções no metabolismo humano, tais como transporte e armazenamento de oxigênio, reações de liberação de energia na cadeia de transporte de elétrons, conversão de ribose a desoxirribose, co-fator de algumas reações enzimáticas e inúmeras outras reações metabólicas essenciais (COOK et al., 1992). Normalmente, cerca de 70 a 90% do ferro é captado pela medula óssea para ser utilizado na produção da hemoglobina (QUEIROZ e TORRES, 2000). O ferro é estocado no fígado, sob as formas de ferritina e hemossiderina (WHO/FAO, 2006). Mais de 65% do ferro corporal encontra-se na hemoglobina, cuja principal função é o transporte de oxigênio e gás carbônico. Na hemoglobina, um átomo de ferro divalente encontra-se no centro de núcleo tetrapirrólico, formando o núcleo heme (QUEIROZ e TORRES, 2000). Cerca de 90% do ferro dos alimentos estão na forma de sais de ferro, denominados não-heme. O grau de absorção deste tipo de ferro é altamente variável e depende das reservas de ferro do indivíduo e de outros componentes da dieta. Entre os fatores que interferem positivamente na absorção de ferro estão as carnes e os ácidos orgânicos como o cítrico, málico, tartárico, lático e, principalmente, o ácido ascórbico. Entre os inibidores da absorção estão os polifenóis, fitatos, fosfatos e oxalatos (BOTHWELL et al., 1989). Os outros 10% do ferro da dieta estão na forma de ferro heme, provenientes principalmente, da hemoglobina e mioglobina. O ferro heme é bem absorvido, e sua absorção é pouco influenciada pelas reservas 15 ________________Anemia em pré-escolares e intervenção nutricional com snacks fonte de ferro orgânicas de ferro ou por outros constituintes da dieta (CARDOSO e PENTEADO, 1994). Ainda não existem conclusões sobre a porcentagem de absorção de cada forma de ferro. HALBERG (1981) e FAIRWEATHER-TAIT (1992) consideram 25% de absorção do ferro heme e 10% do ferro não heme. Já MONSEN et al. (1978), considerando uma dieta com biodisponibilidade média, acreditam em valores de 23% de ferro heme absorvido e 5% de ferro não heme. Os mesmos autores relatam valores de 14% de absorção de ferro heme de um cereal fortificado com hemoglobina. Além disso, o nível das reservas de ferro do indivíduo pode se relacionar com a porcentagem de absorção do mineral. Indivíduos deficientes em ferro, quando comparados a indivíduos normais, absorvem 2 a 3 vezes mais o ferro heme e 6 a 10 vezes mais o ferro não heme (UZEL e CONRAD, 1998), por este motivo é tão difícil concluir acerca da absorção exata de ferro em grupos populacionais, que normalmente consomem alimentos com ferro heme e não heme. O ferro heme entra no enterócito e por ação enzimática é liberado dentro da célula, passando a fazer parte de um compartimento intracelular comum transitório, no qual é armazenado como ferritina ou transportado para a região basolateral do enterócito, e desta para a circulação. A absorção do ferro não-heme ocorre por duas vias que agem de forma simultânea. A primeira parece tratar-se de absorção passiva, onde a captação de ferro é proporcional à concentração do ferro no lúmen intestinal. Esta via predomina em indivíduos com reservas de ferro aumentadas. A 16 ________________Anemia em pré-escolares e intervenção nutricional com snacks fonte de ferro outra via envolve receptores e proteínas de união, ainda não completamente caracterizadas, em um processo que é saturável e susceptível a inibição competitiva. Esta via predomina em indivíduos com reservas de ferro diminuídas (GARCÍA-CASAL e LAYRISSE, 1998). Nas células da mucosa o Fe2+ é oxidado a Fe3+. Essa oxidação é direta no ferro não-heme e após prévia ruptura do anel porfirínico, no caso do ferro heme (BOTTONI et al., 1997). As modificações nas reservas de ferro do organismo causam apenas limitadas variações na excreção do ferro – de 0,5 mg/dia na deficiência a 1,5 mg/dia nos indivíduos com sobrecarga (WORWOOD, 1996). Até mesmo o ferro proveniente das hemácias retiradas da circulação, cuja meia vida é de 120 dias, é reaproveitado (QUEIROZ e TORRES, 2000). A anemia é o último estágio da deficiência de ferro. O primeiro estágio, depleção de ferro, afeta os depósitos e representa um período de maior vulnerabilidade em relação ao balanço marginal de ferro, podendo progredir até uma deficiência mais grave, com conseqüências funcionais. Neste estágio há diminuição da ferritina sérica. O segundo estágio, deficiência de ferro, é referido como uma eritropoiese ferro-deficiente e caracteriza-se por alterações bioquímicas que refletem a insuficiência de ferro para produção normal de hemoglobina e outros compostos férricos, ainda que a concentração de hemoglobina não esteja reduzida. Neste estágio há declínio da concentração de ferro sérico e aumento na capacidade de ligação de ferro (HADLER et al., 2002). Mais de 50% de todos os casos de equilíbrio 17 ________________Anemia em pré-escolares e intervenção nutricional com snacks fonte de ferro negativo de ferro enquadram-se nestes dois estágios. Se as pessoas são tratadas com ferro, elas não desenvolvem disfunção ou doença (MAHAN e SCOTT-STAMP, 2002). O terceiro e último estágio, anemia ferropriva, caracteriza-se pela diminuição dos níveis de hemoglobina, com prejuízos funcionais ao organismo, tanto mais graves quanto maior for essa redução (ASCN, 1985; YIP, 1994; SZARFARC et al., 1995; BEARD et al., 1996). A redução na concentração de hemoglobina presente neste estágio é o parâmetro universal para definir anemia (COOK et al., 1992). A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que o número de pessoas anêmicas em todo o mundo aproxime-se de dois bilhões (WHO, 2001). A mais severa forma da deficiência de ferro é a anemia, que em crianças, está associada a um aumento da mortalidade e suscetibilidade a infecções, afetando também o desenvolvimento comportamental, tanto o motor quanto a função cognitiva (LÖNNERDAL e DEWEY, 1996). No período de 1973/74, na cidade de São Paulo, um inquérito populacional evidenciou 22,7% de anemia em uma amostra de crianças entre 6 e 60 meses de idade (SIGULEM et al.,1978). Outro estudo, no período de 1984/85 mostrou uma prevalência de 35,6% de anemia em crianças na faixa de 0 a 59 meses (MONTEIRO & SZARFARC, 1987). Em 1995/96, estudo com processo de amostragem semelhante ao realizado no inquérito de 1984/85 observou 46,9% das crianças em estado anêmico (MONTEIRO et al., 2000). Em todos os estudos pôde-se verificar maior 18 ________________Anemia em pré-escolares e intervenção nutricional com snacks fonte de ferro prevalência de anemia no estrato de menor nível sócio-econômico, o que contribui para ampliar as desigualdades sociais quanto à anemia. No Brasil, segundo estimativas, a anemia ferropriva acarreta um custo anual para a economia brasileira de 605 milhões de dólares em tratamentos e perda de produtividade e de outros 2 bilhões de dólares com baixos rendimentos escolares. O Ministério da Saúde, visando à redução da prevalência de anemia ferropriva estabeleceu, em 1999, o Compromisso Social para Redução da Anemia por Carência de Ferro no Brasil. O compromisso tem por signatários instituições governamentais, associações da indústria de alimentação, movimentos de defesa do consumidor, movimentos pela segurança alimentar e nutricional, instituições acadêmicas e de pesquisas, sociedades científicas e organismos internacionais. O compromisso tinha como meta a redução da anemia ferropriva em pré- escolares e escolares brasileiros em 1/3 até o ano de 2003 (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, 2003, 2004). De acordo com a RDA (Recommended Dietary Allowances), crianças de 1 a 3 anos devem ingerir, diariamente, 7 mg de ferro, enquanto crianças de 4 a 8 anos 10 mg (FNB/IOM, 2000). Mais importante do que suprir as necessidades de ferro, deve-se dar atenção à quantidade de ferro biodisponível, o qual tem relação com os fatores estimuladores e inibidores de sua utilização presentes numa mesma refeição (OSÓRIO, 2002). Estudos randomizados e controlados, que avaliaram a performace cognitiva de crianças em idade escolar, encontraram resultados positivos e 19 ________________Anemia em pré-escolares e intervenção nutricional com snacks fonte de ferro consistentes, sugerindo que crianças mais velhas também se beneficiam do tratamento com ferro (UNILEVER, 2001). Assim como todos os problemas de saúde pública, a anemia ferropriva tem sua origem em um contexto mais amplo, no qual a sua ocorrência está determinada não só pelos fatores biológicos, como também pelas condições socioeconômicas e culturais vigentes (OSÓRIO, 2002). 1.2. PARÂMETROS BIOQUÍMICOS NA ANEMIA E DEFICIÊNCIA DE FERRO Existem diversos parâmetros laboratoriais para detecção da deficiência de ferro e da anemia por deficiência de ferro. A diferenciação destas condições se torna mais difícil quando a deficiência e estados de infecção ocorrem simultaneamente. A deficiência de ferro pode ser avaliada pelo nível da ferritina do soro, pela saturação da transferrina, pela capacidade total de ligação do ferro, pelo nível de protoporfirina eritrocitária livre e outras medidas (LÖNNERDAL e DEWEY, 1996). A fim de aumentar o valor diagnóstico destes testes, recomenda-se que seja utilizada uma combinação de dois ou três deles. Infelizmente, muitos exames são caros para serem aplicados em grande escala e necessitam de técnicas laboratoriais mais avançadas (DALLMAN, 1996). A deficiência ocorre primeiramente nos estoques de ferro, seguida por déficits no transporte e nos compartimentos eritrocitários, caracterizando 20 ________________Anemia em pré-escolares e intervenção nutricional com snacks fonte de ferro neste último a anemia (COOK et al., 1992). O caminho inverso se faz na correção terapêutica da deficiência de ferro, sendo a hemoglobina o parâmetro mais utilizado para avaliação de programas de fortificação com ferro (BOTTONI et al., 1997). A verificação do estado nutricional em ferro baseada somente na anemia pode levar a erro-diagnóstico por duas razões. Primeiramente, algumas crianças podem ter anemia que não se deve à deficiência de ferro. A deficiência de ácido fólico, vitamina B ou vitamina A podem ser causas 12 significativas de anemia dependendo dos padrões nutricionais e da presença de parasitas intestinais. Em segundo lugar, quando a deficiência de ferro ainda não é severa o suficiente para se determinar anemia, a triagem que utilize a hemoglobina e o hematócrito como únicos indicadores não será eficiente (LÖNNERDAL e DEWEY, 1996). O “padrão ouro” para o diagnóstico do estado nutricional em ferro é a hemossiderina na medula óssea, uma vez que a ausência de ferro na medula é indiscutivelmente um indicativo de depleção. Porém, trata-se de um exame invasivo, pois utiliza material proveniente de mielograma ou biópsia, não sendo apropriado para triagem (BEILBY et al., 1992). O estoque de ferro determinado através do exame na medula óssea correlaciona-se bem com a ferritina sérica, que representa outra medida do estoque de ferro, além de ser um parâmetro possível para estudos epidemiológicos (COOK et al., 1992; WHO, 2001). A correlação demonstra
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